Dois casos descarados
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
Se logo a seguir a um confinamento geral da nação, um homem for condenado a cumprir pena em casa, em prisão domiciliária, como é que se vai sentir? Ainda mais reconfinado do que os outros cidadãos, detido em casa feita prisão ou… é mais do mesmo, já que não posso sair, fico quieto até que isto passe? Teletrabalho para presidiários, existirá?
Fiquei a pensar nisto depois de ouvir a advogada de defesa, suspirando sobre os papéis, sugerir a hipótese ao juiz:
– V. Exa. ponderará, se for caso de condenação, que seja uma pena de prisão suspensa na sua execução. No entanto, se o entendimento for de pena de prisão efectiva, que permita que a mesma seja cumprida no seu domicílio. O arguido também não está cá para dar o seu consentimento… mas V. Exa. fará a costumada justiça a que nos habituou ao longo destes longos anos em que nos conhecemos. Peço justiça, sotor.
Mas via-se que não acreditava numa saída leve. Por cima da linha azul da máscara, os olhos da advogada, cercados de experientes rugas, semifecharam as persianas em posição de não custa nada tentar. Porque o caso do seu cliente era, mais uma vez, de muitas vezes, ultrapassar a lei pela direita. E o procurador da República, ao fazer as alegações antes da advogada, fizera círculos repetitivos com os indicadores, deslocando o ar das mãos. Também ele não acreditava no arguido nem no que ele prometia.
– Vem o arguido acusado da prática de dois crimes de condução sem habilitação legal. O arguido, aqui em julgamento, admitiu ter conduzido… todavia, disse que é detentor de uma carta de condução inglesa e que lhe deram uma guia que também foi apreendida….
Pausa sofrida, parecia um professor na escola aborrecido com o zero de empenho, as tretas de um cábula. Com que então, carta inglesa… aprendeu no estrangeiro a conduzir pela direita, sim senhor, menino Carlos.
– A realidade é que nem a carta de condução inglesa aqui apareceu para ser observada, visualizada, nem a guia que o arguido aventa ter-lhe sido entregue apareceu… Portanto, não apareceu aqui nenhum documento que comprove que o arguido tem qualquer carta de condução quer no espaço europeu quer, através de carta inglesa, na convenção de Viena de 1969 que o habilitasse a conduzir.
E debitou o histórico de Carlos, expressivamente monocórdico:
– Ademais, é curioso que, com tanta habilitação legal para conduzir que o arguido invoca, tem três condenações por falta de habilitação legal em 2010, em 2012 em 2013, sucessivamente a penas de trabalho a favor da comunidade, prisão por dias livres, pena de prisão suspensa, prisão por dias livres… enfim!
(Há que tempos não ouvia esta, a prisão por dias livres. Que é, por assim dizer, uma modalidade de confinamento premonitória de regras da pandemia: ao fim-de-semana um cidadão apresenta-se ao serviço na penitenciária, e portanto, não pode mudar de concelho, ir a restaurantes, cafezinhos de postigo, conviver com a família. Toda a pena se cumpre em soluços de fim-de-semana detido, num máximo de 72 domingos).
Mas a prisão por dias livres não foi lição para o gentleman Carlos.
– O arguido aparenta ser alguém que não consegue mesmo deixar de conduzir e não consegue mesmo habilitar-se a conduzir. Assim sendo, entendemos que V. Exa. deverá condenar o arguido numa pena que V. Exa. entenda por adequada ao caso, disse o procurador.
Uma semana depois, o juiz decidiu-se por 18 meses de prisão, mas suspensos por três anos. Carlos tem três anos para não conduzir. E tirar a carta na Irlanda, no Botswana, nas Fiji, onde achar melhor. A advogada ficou tão feliz e admirada com a sentença
– Não estava à espera, este juiz é espectacular!
que me contou outro caso interessante da sua agenda de descarados. Um cliente acabara de lhe ligar perguntando se podia alugar um quarto da casa a uma acompanhante de luxo, uma menina, cobrando-lhe 20 euros por hora, se isto não seria ilegal e possível de lhe causar aborrecimentos…
– A casa é sua?
– É da minha irmã, mas ela não precisa de saber.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)