Depois de uma traição, ficar ou sair?

A dor da infidelidade é impiedosa como uma arma apontada ao coração que dispara balas de vários calibres. A transgressão no amor rasga por dentro, corrói uma relação, destrói sentimentos. Como voltar a confiar?

Um homem trai a mulher. Uma mulher é infiel ao marido. Uma vez, várias vezes. As vezes que forem. O que se passa? Compreender ou sufocar esse comportamento? Encontrar argumentos, arranjar explicações, sentir a vida de pernas para o ar, o coração apertado. O choro, a culpa, o arrependimento, talvez. Contar ou ficar em silêncio. Ficar ou sair da relação. É possível sobreviver a uma traição, mas não é fácil recuperar a confiança.

Traição. Numa só palavra cabem diversas interpretações e não há definições certas ou erradas. Trair, explica o dicionário, é ser infiel, é não cumprir uma promessa, um compromisso ou um princípio. Trair é, afinal, um conceito objetivo ou subjetivo? “A própria noção de exclusividade é diferente de pessoa para pessoa”, destaca Luana Cunha Ferreira, psicóloga clínica, terapeuta de casal e familiar e professora na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. Uma noção mais fechada ou mais aberta. Convém, no entanto, cada casal definir o que a traição efetivamente é para marcar as linhas que delimitam a confiança e a intimidade. É uma questão importante que nos casos de infidelidade, segundo Luana Cunha Ferreira, doutorada em Psicologia Clínica e da Família, “é quase como se fosse o princípio do caminho da recuperação do casal em terapia”. Até porque a traição não acontece só a nível sexual ou erótico, “há também uma traição ao nível de uma intimidade mais emocional”.

Trair é enganar. É infringir um acordo numa relação amistosa ou amorosa. E aqui entram ideais, planos, promessas. José Pacheco, psicólogo clínico e sexólogo, refere que, como é previsível, se o acordo for implícito há mais probabilidade de haver conflito ou discórdia, uma vez que não há uma base clara, explícita. “Contudo, a maioria das relações amorosas assenta numa base implícita que, muitas vezes, emergiu no desejo de exclusividade do início da maioria das relações de paixão.”

Nem sempre há coerência nesta matéria, não é uma equação linear. “Uma pessoa teoricamente intolerante em relação à traição pode acabar por aceitá-la se tiver de se confrontar com ela. Por outro lado, outra pessoa, em abstrato mais liberal, aceita a traição, mas reage muito mal se, de facto, tiver de a enfrentar”, adianta José Pacheco. Um mais um nem sempre é igual a dois.

Rute Agulhas, psicóloga clínica e terapeuta familiar, reforça que o significado da traição não é igual para todos. “Varia em função da natureza da relação afetiva e também da história pessoal e dos recursos internos de cada um, com especial destaque para a autoestima, resiliência, segurança emocional e traços de personalidade.”

Uma coisa é certa. Qualquer traição mexe com a confiança e ativa questões relacionadas com o amor, o abandono, os piores medos.

O desencanto, o cansaço. Lutar ou fugir

Porque é que se trai? Por mil e uma razões, com múltiplos impactos, diferentes gravidades. Como uma forma de evitar conflitos, assuntos não conversados ou mal resolvidos. Por cansaço de lutar pela relação, como um escape. Ou por dependência sexual. Rute Agulhas esclarece que raramente a traição, no contexto de uma relação afetiva, se resume ao sexo ou a gostar ou não do parceiro. “Mais frequentemente, surge como uma forma de a pessoa se sentir viva face ao sofrimento ou desencanto que sente na relação que tem ou, ainda, fruto da dificuldade em lidar com alguma situação geradora de stresse que esteja a vivenciar ou que a sua relação esteja a atravessar.”

Sara Semedo, psicóloga clínica e terapeuta familiar e de casal, adiciona o medo. Trair por receio. “Muitas vezes, a vida acaba por perder o entusiasmo e a rotina, os filhos, o trabalho, a casa, levam a sentir medo que seja assim para sempre.” Não necessariamente por não amar ou querer terminar a relação, mas pela vontade de sentir emoções fortes. Para “poder interpretar outra personagem, mais livre, mais sexual, sem tantas responsabilidades”. É o resgate do entusiasmo, a procura do que já se foi ou do que se quer ser.

Há também o afastamento do casal, a sensação de maior vulnerabilidade, a disponibilidade para uma nova relação. “Traímos porque já não nos sentimos sexualmente atraídos pelo nosso parceiro. Traímos porque há mágoas e traumas na relação que não estão ultrapassados e traímos, às vezes, também por vingança ou por uma tentativa de reparação de qualquer coisa que tenha acontecido na relação”, desenvolve Luana Cunha Ferreira. E não só. “Também traímos porque nos queremos encontrar – sei que isto parece um cliché horripilante -, mas, efetivamente, quando vivemos no modelo de amor romântico, que valoriza tanto a fusão e o entendimento total entre dois parceiros, é muito fácil perdemos os contornos de quem somos e de nos esquecermos do que é que nos define e da forma como somos individualmente” , acrescenta. “E quando estamos com o outro, alguém que não é assim tão íntimo, esse contraste pode ajudar a descobrirmo-nos melhor e a voltarmos a entrar nos nossos sapatos, por assim dizer.”

Contar ou não contar? Depende da motivação de cada um, com o caso de cada um. Se a traição é mais sexual, um escape, o silêncio é o mais comum. Se há paixão fora da relação, um novo amor, é previsível que quem trai sinta necessidade de colocar as cartas na mesa. “Não podemos pôr tudo no mesmo saco, quem trai tem motivações muito diferentes”, defende Rute Agulhas. Há quem prefira esperar que os filhos cresçam ou o ambiente da relação fique mais leve para contar. Há quem prefira abrir o jogo e ver a reação.

No entanto, abrir ou não abrir o coração tem impacto na confiança do outro. “Se a pessoa que trai não conta, pode ser mais difícil para o outro confiar quando descobrir que foi traído. Quando conta espontaneamente, e acaba por não gerir o silêncio, pode ser positivo para quem recebe a informação.” O abalo pode ser menor quanto maior a honestidade, a sinceridade.

As relações são afetivamente mais exigentes, deseja-se ter no parceiro de sempre a previsibilidade e a novidade, o que nem sempre é fácil e que pode aumentar o risco de transgressão. Rute Agulhas partilha uma frase de Emily M. Brown do livro “Affairs. Um guia para sobreviver às repercussões da infidelidade”: “O affair secreto é muito semelhante ao rei que vai nu, toda a gente na família e muitos fora dela sabem que alguma coisa se está a passar, mas ninguém fala no assunto”.

Seja como for, as motivações da traição interferem na forma como se esconde, como se mantém o segredo, ou como se quer que se descubra. Teme-se o conflito e as consequências da revelação. Ou não. É o limbo entre fugir ou lutar. Ficar ou sair. Quebrar ou reparar.

Reorganizar e reconstruir. O “novo” casal

Uma traição e o Mundo desaba. De um lado, quem trai, do outro, quem é traído, e não há um modelo único de reação a uma situação que envolve o amor, uma relação, uma história em comum, uma família. Todos os cenários são possíveis. Segundo José Pacheco, é pouco previsível saber o que uma pessoa traída irá fazer. “Uma parte vai entender que a única saída vai ser a separação do ‘traidor’. Outra parte acabará por perdoar, aceitar e voltar a confiar no outro. Outra, apesar de manter a relação, irá mantê-la para ter a oportunidade de ganhar alguma vantagem das ‘falhas’ do outro. Outra ainda, não perderá a oportunidade de trair, como forma de reparar a traição do outro.”

Tudo pode acontecer e o que acontece está ligado ao que se espera do outro, o que se entende por relação e como ela está. Dor, resignação, gritos, lágrimas, silêncio. “Na maioria das vezes, é uma dor muito grande, um sentimento de desvalorização do que existia na relação e de si próprios, trazendo muita zanga e muitas inseguranças”, observa Sara Semedo.

É possível voltar a confiar depois de uma traição. É difícil se a situação não for bem resolvida. Primeiro, para Luana Cunha Ferreira, é necessário perceber quais os fatores individuais, da relação, familiares e até estereótipos em relação ao género que podem contribuir ou facilitar uma maior aceitação de uma traição. Os fatores mais importantes devem estar em cima da mesa até porque ultrapassar a infidelidade não é uma intervenção simples. “O processo de recuperação é efetivamente lento. Isto porque, muitas vezes, a pessoa que foi traída tem pensamentos intrusivos, desenvolve, às vezes, qualquer coisa muito perto de uma perturbação de stresse pós-traumático, não consegue deixar de pensar no que aconteceu, está sempre a ruminar, a comparar-se com a terceira pessoa.” E, por outro lado, prossegue a terapeuta, “a pessoa que traiu, muitas vezes, não consegue colocar de novo limites à relação e, portanto, coloca-se numa posição de culpado ou culpada e, a partir daí, parece que aceita tudo dentro da relação”.

Não basta analisar causas e consequências, também é necessário reorganizar padrões e dinâmicas da relação, ou seja, como é que o casal vai reconstruir o seu relacionamento. Quais as novas regras e como será o “novo” casal. “O primeiro passo para voltar a confiar é querer confiar”, sublinha Sara Semedo. Mas, atenção, confiar não é ter a certeza de que não voltará a haver traição, é acreditar que não vai acontecer, mesmo sendo uma possibilidade. É preciso fazer um caminho de ambos os lados, perceber o que aconteceu para pensar no que pode ser diferente. “É preciso transparência para que haja confiança.” E procurar ajuda, buscar algum sentido para a traição, encontrar uma nova narrativa.

Das duas uma, a confiança aguenta-se ou cai por terra. A traição é uma situação de crise, de muito stresse, e o futuro depende de como se lida com tudo isso. Rute Agulhas sustenta que é possível voltar a confiar, não é fácil nem rápido, é preciso tempo, envolvimento e esforço das duas partes. Para gerir esta crise, é importante, realça a terapeuta de casal, pedir ajuda a familiares ou amigos, desabafar, não ter vergonha, fazer o luto pelas perdas – de confiança, de segurança, de pertença. Um luto que não significa separação ou divórcio. É necessário, diz, “proteger os filhos, não partilhando com eles informação sobre a traição nem pedindo que escolham um lado. Isto apenas potencia conflitos de lealdade e sintomatologia que pode ser muito diversa”. Sim, é complicado seguir em frente. “A base afetiva tem de existir, naturalmente, mas não chega. É necessário que ambos o desejem e estejam realmente comprometidos e empenhados nesse processo. Devem pedir ajuda especializada se sentirem que não conseguem sozinhos”, aconselha Rute Agulhas.

Sara Semedo salienta mais alguns fatores que não devem ser esquecidos nestas circunstâncias. “As crises são sempre oportunidades para fazer diferente. O amor é capaz disto e de muito mais!” A ideia não é voltar ao que era, é construir algo diferente do que foi.

Depois de uma traição, há comportamentos que são prejudiciais, segundo a psicóloga Rute Agulhas:

• Revelar apenas parte da situação. O outro, desconfiado e inseguro, vai procurar mais informação (por vezes, de forma obsessiva) e, à medida que a descobre, a desconfiança sai reforçada.

• Tomar decisões importantes “a quente”, sem permitir algum tempo para pensar. Face à descoberta ou revelação de uma traição, as emoções mais negativas são ativadas, o que impede, naturalmente, um processo de tomada de decisão mais racional e refletido.

• Tentar suprimir as emoções que geram maior sofrimento. É importante sentir e tentar encontrar formas adequadas de regular essas emoções, sem evitamento.

• Pensar na separação como a única alternativa, não olhando para a situação como uma oportunidade para melhorar a qualidade e a satisfação da relação de casal.

• Centrar-se apenas na terceira pessoa.

• Focar-se numa possível vingança, como forma de retaliar (por exemplo, pensar em trair também o parceiro).

• Perdoar de forma muito prematura (quem é traído) ou exigir o perdão imediato (quem trai).