Dançar: bom para o corpo, melhor para o cérebro

A dança pode também integrar processos de intervenção psicológica

O nosso corpo reage à música. O pé acompanha o ritmo, a cabeça balança, os braços agitam-se. Mas o cérebro também dança. Os benefícios que distinguem esta forma de movimento de outras, como o exercício físico, passam sobretudo pela expressão das emoções: às vezes, uma dança vale mais do que mil palavras.

Usamos a palavra com frequência e, no entanto, é difícil defini-la. O dicionário diz que dançar é “uma série de movimentos executados com o corpo, de forma ritmada e coreografada, geralmente ao som de música”. Mas é muito mais do que isso. João Fernandes defende mesmo que não há uma definição geral que sirva para a forma como cada um olha a dança. Para o professor adjunto na Escola Superior de Dança (Lisboa) e doutorado em Motricidade Humana, “é um modo de expressão e comunicação que procura despertar um conjunto de sensações ou emoções e fazer-nos ampliar a reflexão sobre o que nos rodeia”.

O também coreógrafo refere que cada um tem a suas razões para dançar, mas que, no fundo, dançamos porque aí encontramos “um refúgio para as nossas incertezas, para os nossos problemas e para os nossos desejos, mas também uma forma de nos conseguirmos exprimir sem limitações”. E é nesta expressão emocional do que somos e do que sentimos que parecem estar ancorados os grandes benefícios de dançar.

“É muito frequente alguém pensar uma coisa, sentir outra e agir de forma incoerente tanto com o que está a pensar, como com o que está a sentir”, considera Sónia Rodrigues. A psicóloga social, executive coach e facilitadora de biodanza (um sistema de desenvolvimento humano através de vivências induzidas pela música e pela dança) garante que um dos benefícios de dançar é integrar os pensamentos, emoções e ações que, tantas vezes, andam em guerra dentro de cada um. Mas há outras vantagens mais prosaicas, detalha: o aumento da coordenação motora e do desenvolvimento da noção espaciotemporal, a libertação do stress e, se em grupo, a socialização, fomentando as relações interpessoais, o sentimento de pertença, autoestima e autoconfiança. “Dançar gera leveza, ligação, liberdade, alegria e descontração que são essenciais para regular o cansaço associado às responsabilidades e às tarefas diárias.” Por isso, aconselha: dancem. “Não importa se sozinhos, com amigos ou em família. O que importa é movimentar o corpo e permitir que a música nos dance.”

A biodanza em concreto, explica a facilitadora, não sendo uma terapia, tem efeitos potencialmente terapêuticos, já que “permite ao indivíduo um espaço e um tempo onde pode expressar, através da música, do movimento do corpo e do grupo, todo o seu potencial e conhecer genuinamente a sua identidade, quer na relação que tem consigo, quer na relação que tem com os outros e com a vida em geral”.

Da caverna à pista de dança

Nas paredes dos abrigos de rocha Bhimbetka – um sítio arqueológico património Mundial da UNESCO, localizado na Índia -, encontram-se pinturas rupestres com cerca de nove mil anos onde se veem representações de pessoas a dançar.

Apesar de ser impossível datar quando se tornou a dança parte da cultura humana, muitos historiadores e antropólogos acreditam que dançar será quase tão antigo como a própria Humanidade. E é uma área que tem vindo também a obter cada vez mais atenção por parte das neurociências. “De uma perspetiva evolutiva, o mais provável é que seja um mecanismo de vinculação social destinado a aumentar a cooperação social entre as pessoas”, define-nos o neurocientista Steven Brown, que se dedica a estudar as bases neurais, cognitivas e evolutivas das artes, incluindo a dança. Por outro lado, sublinha que não parece ocorrer nada de comparável no reino animal. “Existem sinais de acasalamento em animais que envolvem movimento, mas eles não mostram a sincronia da dança em grupo.” O investigador da Universidade McMaster, no Canadá, lembra que dançar é a prática de grupo mais sincronizada entre humanos, exigindo uma coordenação interpessoal, de espaço e tempo que não se encontra em nenhum outro contexto.

É que dançar, sobretudo em pares ou em grupo, por simples que pareça, exige capacidades extraordinárias. Através de técnicas de imagem cerebral, Steven Brown tem tentado perceber que partes do cérebro estão mais envolvidas no complexo processo de dançar. Concluiu que “há circuitos no cerebelo que parecem ser importantes para sincronizar o movimento com o ritmo acústico e são áreas no lobo parietal que medeiam a nossa navegação espacial”. Assim, tudo indica que seja “a conectividade entre o cerebelo e o lobo parietal que suporta a capacidade de junção entre cronometragem e navegação” que a dança implica.

Esta complexidade exigida ao cérebro para que haja sincronicidade, juntamente com o tipo de socialização que a dança em pares ou em grupo existe, mantém o bom funcionamento cerebral: além de diminuir os níveis de stress e aumentar os de serotonina (uma das hormonas do bem-estar), reduz o risco de demência e é uma terapia eficaz em pessoas com doença de Parkinson, segundo investigação recente.

Uma psicoterapia através do movimento

A dança pode também integrar processos de intervenção psicológica. A Dança Movimento Terapia (DMT), criada nos anos 1940 nos Estados Unidos, é uma técnica psicoterapêutica em contexto clínico que usa o movimento para promover a integração emocional e física, para treinar competências sociais perdidas devido à doença e que permite ao indivíduo exprimir-se, de forma livre e criativa, quando a palavra não é suficiente.

“A dança é uma forma de expressão natural do ser humano: uma criança quando está contente saltita, mexe-se, roda e corre. Há uma necessidade de se exprimir através do movimento”, realça a psicóloga clínica Liliane Viegas, presidente da PRAIA – Associação Portuguesa de Dança Movimento Terapia.

A responsável pelo Núcleo de DMT do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, onde trabalha no internamento, ambulatório e reabilitação, diz que a dança, no geral, é terapêutica por si só. Mas adiciona que “a passagem à psicoterapia através da dança só é possível com a parte verbal, que permite contextualizar a história do paciente, as suas dificuldades e o pedido de ajuda”. Por isso, o terapeuta tem de ter formação tanto em dança, como em psicologia clínica.

A forma como o paciente se move, de forma livre, de acordo com o tema que trouxe para a sessão, permite que seja feita uma análise do movimento, esclarece a psicoterapeuta. E destaca que são muitos os estudos de análise do movimento que relacionam a forma como nos movemos com as nossas dificuldades e mesmo com a psicopatologia. “Uma pessoa com uma depressão, geralmente, enfia o peito um pouco para dentro, mexe-se devagar, os movimentos são leves e têm pouca amplitude, traduzindo um certo fechamento ao Mundo e um desejo de se resguardar. Já uma pessoa com doença bipolar, na sua fase maníaca, é possível que apresente movimentos agitados, pouco controlados e muito exuberantes”, exemplifica.

“Às vezes, é difícil dizer determinadas coisas por palavras. É mais fácil exprimi-las com o corpo”, sintetiza. “E essa expressão, no momento presente e sem recurso a palavras, pode ser muito reparadora.”