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Cuidar de quem perde a memória

Fotos: Diana Quintela/Global Imagens

Jaqueline dos Santos cuida a tempo inteiro da mãe, de 83 anos, que sofre de demência por corpos de Lewy e tem perda de memória e mobilidade

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A demência é progressiva e irreversível e deteriora a atenção, a linguagem, o pensamento. Os desafios são constantes e diários. A Alzheimer Portugal tem gabinetes de apoio e o Café Memória para quem quiser partilhar o que vem de dentro.

“O humor oscila, a doença evolui, às vezes me olha e me reconhece, outras vezes não, é tudo muito rápido. Às vezes, está triste, às vezes chora, e não entendo porquê.” Jaqueline dos Santos cuida da mãe, de forma diária e direta, há mais de dois anos. Em julho de 2019, deixou o emprego, era gestora de recursos humanos nas Finanças, pediu a reforma antecipada aos 52 anos, mudou-se de Porto Alegre, Brasil, para Lisboa, com a mãe e o marido. A mãe tem 83 anos, sofre de demência por corpos de Lewy, perda progressiva da função cerebral, a memória apaga-se, a mobilidade diminui. “Quase já não caminha, não consegue estar de pé sozinha.” Jaqueline tornou-se cuidadora a tempo inteiro e cuidar é um ato de amor. “Por amor, por gratidão, por tudo o que fez por mim. Devo tudo a ela, é o mínimo que podia fazer.”

A mãe, por vezes, tem alucinações, vê bichos em copos de água, palhaços em folhas de árvores caídas no chão, animais perigosos, cobras prontas a atacar. Há noites em que acorda aos gritos. Pergunta muito pela mãe que já morreu, vê familiares falecidos nos bailaricos dos programas de televisão. As conversas são cada vez mais curtas, incapaz de elaborar frases, vai repetindo palavras. “A gente aprende todos os dias, hoje faço coisas que não imaginava fazer, faço o que a doença impõe. A gente vai aprendendo a lidar com cada etapa da doença.” Um dia de cada vez.

Os números e as estimativas dão que pensar. Em 1994, havia 92 470 pessoas com demência em Portugal, em 2013 cerca de 182 mil, cinco anos depois perto de 200 mil. Em 2050, as projeções apontam para 350 mil. Há dez anos surgiu o Projeto Cuidar Melhor, iniciativa conjunta da Associação Alzheimer Portugal, da Fundação Gulbenkian e da Fundação Montepio, que envolve vários parceiros, e que tem trabalhado para a inclusão e a promoção dos direitos das pessoas com demência e no apoio a familiares e profissionais da área. “A vida dos cuidadores é afetada transversalmente quando assumem esse papel. As necessidades são muitas, nomeadamente de apoio psicológico e de capacitação, precisam que os ensinem como se faz”, refere Catarina Alvarez, psicóloga e coordenadora de projetos da Alzheimer Portugal.

O Cuidar Melhor tem 26 gabinetes de apoio espalhados pelo país, uma linha telefónica, e o Café Memória, 21 locais disponíveis, mediante várias parcerias, aos sábados de manhã. São pontos de encontro de pessoas com problemas de memória ou demência, familiares, cuidadores, amigos. “São sessões de duas horas, acolhemos as pessoas que vão chegando, há uma dinâmica de apresentação, lúdica e bem-disposta. Por vezes, temos um orador convidado, há atividades lúdicas ou estimulantes, sessões de dança, música, movimento. A pausa para o café fecha as sessões, meia hora para partilhar experiências. É uma resposta informal gerida por uma equipa técnica e o voluntariado é um dos pilares deste projeto”, adianta a psicóloga.

Partilhar experiências, entender a doença

Jaqueline dos Santos procura uma cama articulada para a mãe, que faz fisioterapia, tem apoio domiciliário todas as manhãs para a higiene, participou em várias sessões presenciais no Café Memória. “Socializei, entendi mais a doença. Sinto-me muito apoiada e muito acolhida pela Alzheimer Portugal desde a nossa chegada. Participo em grupos psicoeducativos, de apoio psicológico, de partilha de experiências.” Conseguiu ajuda para material de incontinência e quer ser voluntária no Café Memória. “Queria poder ajudar outras pessoas. A doença é da família, afeta todos, desgasta psicológica, física e emocionalmente. É uma doença muito triste.”

Numa das últimas conferências da Alzheimer Portugal, um homem com demência, que frequenta o Centro de Dia da Casa do Alecrim, em Cascais, um dos equipamentos sociais da associação, partilhou o seu testemunho. Sentiu algumas tonturas, perda de equilíbrio, andava pior, mexia-se pior. “Senti que fui piorando, comecei a perder autonomia, havia certas coisas que já era incapaz de fazer sozinho, conduzir, tomar banho, vestir-me”, revelou. “Sinto-me chateado, sinto-me triste, gosto muito de ser independente e, de certo modo, hoje isso é impossível.” Durante algumas horas do seu dia, sai de casa para conviver com gente. E isso faz-lhe bem.

O Cuidar Melhor prossegue o seu caminho. Já realizou 189 ações de consciencialização para o tema das demências, com 7569 participantes, e 122 atividades formativas para cuidadores e profissionais, que juntaram 1459 pessoas. As parcerias são importantes numa lógica de proximidade e dada a escassez de respostas inclusivas e integradas. De novembro de 2018 a dezembro de 2020, a rede de gabinetes de apoio na demência apoiou 5285 pessoas e realizou 7815 atendimentos.

“Trabalhamos em várias frentes, as necessidades são muitas, prestamos informação sobre a doença, temos uma linha de apoio, os gabinetes dão apoio a pessoas com demência e a todos os que direta ou indiretamente convivem com elas, cuidadores, familiares, amigos e profissionais que lhes prestam cuidados”, destaca Catarina Alvarez.

Os gabinetes orientam e encaminham para respostas que existem na comunidade. Nos 26 municípios onde estão implementados, desenvolvem atividades formativas, prestam serviços clínicos, nomeadamente avaliações neuropsicológicas e sessões de estimulação cognitiva à pessoa com demência, bem como apoio psicológico ao cuidador. Por força da pandemia, o Café Memória é feito online, esperando voltar ao regime presencial no início de 2022. E, para chegar a mais lugares, há ainda o Café Memória Faz-se à Estrada em formato itinerante.

“Há dez anos, relativamente às demências, havia muita falta de informação e ainda há, falta de apoio especializado, muito estigma e isolamento social, não se reconhecia o papel do cuidador informal. A transformação social da comunidade demora tempo”, salienta Catarina Alvarez. Houve mudanças, entretanto, surgiu o estatuto do cuidador informal, o testamento vital. E o trabalho continua porque há sempre muito a fazer no delicado campo das demências.

Factos e números

50% a 70%
A doença de Alzheimer é a forma mais comum de demência, representa entre 50% a 70% de todos os casos. Afeta, de forma progressiva, diversas funções cognitivas. As células cerebrais diminuem de tamanho e de número, acabam por morrer e os doentes perdem a capacidade de recordar informação.

Sintomas
Os sintomas podem ser subtis, frequentemente confundidos com sinais normais do envelhecimento, como lapsos de memória, dificuldade em encontrar as palavras certas para objetos do dia a dia. Esquecer pessoas ou lugar conhecidos, deterioração de competências sociais, discursos vagos, demorar mais tempo nas atividades de rotina ou não compreender instruções são sintomas mais específicos.

Causas
Não há causas conhecidas e não há cura. A ciência continua a analisar as alterações químicas que provocam danos às células cerebrais na doença de Alzheimer. Não existe um exame específico para o diagnóstico da demência. Fazem-se exames e avaliações para encaixar critérios e excluir hipóteses.

Apoio
A Linha de Apoio na Demência da Alzheimer Portugal está disponível através do número 963604626, todos os dias úteis das 9.30 às 13 horas e das 14 às 17 horas. Para pedidos de informações gerais sobre sintomas, contactos de especialistas, como lidar com pessoas com demência, entre outras ajudas