Publicidade Continue a leitura a seguir

Cuidar até à exaustão

Fotos: Leonardo Negrão/Global Imagens

Célia Teixeira cuida há 11 anos, 24 horas por dia, do filho João. “Não sei até quando aguentarei sem quebrar”

Publicidade Continue a leitura a seguir

Os profissionais de saúde e os cuidadores informais são dois dos grupos mais afetados pelo burnout. A prestação de cuidados aos outros é geradora de grande stress e pode levar à exaustão emocional.

Os 14 anos a trabalhar em cuidados intensivos neonatais e pediátricos fizeram-lhe mossa. Quando se mudou para os cuidados de saúde primários, em 2018, a enfermeira Mónica Sousa ia já exausta. Admite que talvez já estivesse em processo de burnout não diagnosticado. E o que encontrou pela frente no centro de saúde encarregou-se de continuar essa erosão. “Cheguei desgastada e deparei-me com uma carga de trabalho brutal: chegava a fazer 20 consultas a grávidas numa manhã ou a estar numa sala de tratamentos onde atendia 50 pessoas por dia”, recorda. Tentava descansar, mas o alívio durava sempre pouco e não se sentia apoiada pelos superiores. “Trabalhar exigia um grande esforço. Sentia muita pressão, ficava agitada e ansiosa, mas depois de 14 anos a trabalhar em cuidados intensivos, estava habituada a esconder as emoções que sentia e a continuar o trabalho.” O que viria a revelar-se uma opção pouco saudável.

Passou quase um ano assim, até perceber que teria de cuidar de si antes de poder continuar a tratar dos outros. Foi já em 2019 – o ano em que o burnout foi oficialmente reconhecido como uma doença pela Organização Mundial de Saúde (OMS) – que Mónica, 40 anos, procurou ajuda. “Estava com uma irritabilidade imensa, explodia com coisas pequenas, sentia uma dor e tristeza atroz. Marquei uma consulta com a médica de família e escrevi uma carta ao meu marido a contar-lhe como me sentia, porque nem conseguia verbalizar.” Na consulta de Medicina Geral e Familiar, recebeu o diagnóstico de depressão, foi medicada, passou por uma psiquiatra para rever e ajustar a medicação, esteve de baixa e iniciou um processo de psicoterapia que durou cerca de seis meses.

“Percebi como tudo isto estava associado ao trabalho: aos anos exposta à pressão e ao sofrimento, à carga de trabalho imensa e à minha autoestima profissional, porque não me sentia reconhecida”, diz. E repete: “Não me sentia reconhecida pelo trabalho que fazia. Investia muito, mas sentia que investiam pouco em mim”.

Os sintomas principais de Mónica – a exaustão e perda de realização profissional – são os dois dos três sinais típicos do burnout, que inclui ainda o cinismo ou despersonalização, ou seja, uma atitude distanciada na prestação de cuidados. O estudo “Resiliência e burnout em organizações de saúde”, apresentado em fevereiro deste ano e liderado por Sofia Gomes e Pedro Ferreira, da Universidade Portucalense, revelou que, durante a pandemia, um em cada três profissionais de saúde apresentaram níveis severos desta doença. Em concreto, 58,2% revelavam elevada exaustão emocional, 54,6% uma grande perda de realização pessoal e 33,7% um enorme nível de despersonalização.

No mesmo estudo, os profissionais de saúde foram questionados sobre como reduzir e prevenir o seu próprio burnout e, não por acaso, apontaram os mesmos aspetos destacados pela enfermeira Mónica Sousa. “Referiram sobretudo aspetos relacionados com o contexto de trabalho e que vão ao encontro daquilo que são os principais fatores de risco: menos horas de trabalho contínuo e mais meios físicos e humanos nas estruturas de saúde”, explica Sofia Gomes. “Mas também mencionaram, embora em menor número, aspetos de cariz mais emocional, como o reconhecimento.”

Trabalhar 24 horas por dia

Mudar a fralda ao João. Fazer manutenção da gastrostomia por onde o alimenta. Posicioná-lo de duas em duas horas para evitar úlceras de pressão e vigiar-lhe em permanência as crises diárias de epilepsia. Dar banho e medicar o João. Aspirar as secreções do João. Sempre o João. Há 11 anos que a vida de Célia Grazina Teixeira, de 49 anos, é dominada pelas necessidades do filho – uma criança com paralisia cerebral bilateral espástica e uma série de outras condições de saúde associadas – de quem ela cuida 24 horas por dia, 365 dias por ano.

Sorri quando lhe dizem que é bonita. “Maquilho-me sempre, foram 20 anos a trabalhar em cosmética”, justifica. “Agarro-me um bocadinho à imagem para me tentar sentir melhor, ter alguma dignidade e não fazer o papel de coitadinha. Mas é uma capa.” Por baixo da capa, está aquilo que é invisível aos olhos e denuncia o problema. E que acaba por confessar: “Sinto-me esgotada todos os dias”, “Há dias em que nem me apetece abrir as janelas”, “Muitas vezes ir tomar banho é um esforço”, “Tiram-me tudo: não trabalho, não tenho vida social”, “Não há quem aguente isto. Não sei até quando aguentarei sem quebrar”.

Célia está em burnout. E aplicar este termo, por norma associado à exaustão profissional, aos cuidadores informais como ela não é um acaso. Cuidar torna-se um trabalho que não deixa espaço para mais nada. “Faço-o com amor, mas esta é uma profissão que me foi imposta. Sou enfermeira do João. Só que o meu turno nunca chega ao fim”, desabafa.

“É um problema gravíssimo”, resume Eva de Sousa, psicóloga clínica que presta apoio psicológico a muitos cuidadores informais. “Os cuidadores formais embora sujeitos a um elevado stress associados aos horários por turnos, ao convívio com o sofrimento e com a morte e à pressão da tomada de decisão que envolve outros, têm apesar de tudo um vínculo laboral, um ordenado, horários, vida familiar e vida social”, esclarece. Por comparação, “o cuidador informal não tem remuneração, não tem horários e fica gradualmente com uma vida restrita ao familiar que cuida”.

Por isso, uma das estratégias mais importantes é mobilizar outras pessoas para ajudar. “É essencial que haja cuidadores secundários, outros familiares, um vizinho, alguém que possa substituir o cuidador principal por umas horas, para que a pessoa possa ter um hobby, fazer desporto, ir às compras ou ao cabeleireiro, não ficando prisioneira dos cuidados ao outro”, refere a psicóloga clínica. Para Célia Teixeira, isso tem sido difícil. Sem apoio familiar além do marido (que trabalha fora o dia todo), o principal problema é a falta de reconhecimento do Estado face às necessidades – tanto financeiras, como de descanso – dos cuidadores informais como ela.

Aprender a equilibrar a balança

“Apercebi-me ao longo do meu trabalho diário que, por vezes, as pessoas são vítimas de incêndio, tal como os edifícios. Sujeitas à tensão produzida pelo Mundo complexo, os seus recursos internos consomem-se, como pela ação das chamas, não deixando senão um imenso vazio no interior, ainda que o invólucro exterior pareça mais ou menos intacto.” Assim descreveu o burnout, em 1980, o psicólogo Herbert Freudenberger, um dos primeiros a detetar e estudar a síndrome do esgotamento profissional que, curiosamente, começou por notar em si próprio e alguns colegas, durante os anos 1970, ao trabalhar em clínicas gratuitas em Nova Iorque.

Mónica Sousa, consumida pelas chamas, recuperou e aprendeu a tratar de si para o evitar. No ano passado, com o início da pandemia, voluntariou-se para as equipas das Áreas Dedicadas Covid-19 nos Cuidados de Saúde Primários e foi destacada para fora do seu local de trabalho habitual. “Senti que estava a ser útil, fui sendo reconhecida pelo meu bom desempenho pelos meus superiores e isso, juntamente com a psicoterapia, ajudou-me a ultrapassar o problema.” Hoje, de volta ao seu centro de saúde, tenta moderar o seu esforço. “Cumpro com todas as minhas responsabilidades, mas permito-me dizer não, arranjar tempo para ir comer e para dar dois dedos de conversa com uma colega.”

Numa perspetiva individual, quando o cuidador percebe os sinais de fadiga psicológica, “deve procurar um psicólogo e iniciar uma psicoterapia, necessária para reforçar a capacidade de resiliência, através do autoconhecimento, aprendizagem de estratégias para lidar com as emoções, e enfrentar os problemas com outra atitude”, aconselha a psicóloga Eva Sousa. Mas as organizações e chefias também têm um importante papel a desempenhar. “Os aspetos organizacionais, nomeadamente o ambiente de trabalho, contam muito”, pormenoriza. Isso implica que haja colaboração, cooperação e apoio por parte das chefias. E também elogios, “uma ferramenta de reconhecimento muito importante e por vezes subvalorizada”. Evitar o burnout, conclui a psicóloga clínica, “passa pelo equilíbrio entre os fatores stressores e os fatores protetores.” Para não ser consumido pelas chamas, é preciso que seja mais o que nos nutre do que o que nos desgasta.