Valter Hugo Mãe

Cruzeiro do Pretinho


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Eu sei que urgimos no gesto de amar e amaremos quem nos preda se não houver no horizonte mais ninguém. Isso é prova da grandeza que nos compõe a cada um.

A lenda conta que o escudeiro negro da família que vivia na desaparecida Casa do Paço sobreviveu sozinho e chorou a sua solidão aos pés do cruzeiro que se mantém erguido até hoje. Sinto que a primeira coisa que precisamos de entender é que os criados negros ao século XVIII eram homens escravizados. As sociedades europeias normalizavam absolutamente a escravatura e os “cidadãos de bem” não lhe encontravam defeitos. Quando pensarmos no homem negro que chorou a morte de suas senhoras fidalgas aos pés desta cruz façamos a justiça de o ver na completude da sua situação. Nada poderá redimir o que a História lhe fez, mas julgo decente que nos enterneçamos com sua lenda conscientes de que a presa carpiu pelo predador, o que não o diminui, muito ao contrário, aumenta sua humanidade. Eu sei que urgimos no gesto de amar e amaremos quem nos preda se não houver no horizonte mais ninguém. Isso é prova da grandeza que nos compõe a cada um.

Vejo este Cristo aqui erguido, séculos de silêncio diante de tanta súplica, e adoraria que a sua presença fosse um resto daquele negro, para que um resto daquele negro escute minha voz hoje, o modo como lhe digo que é livre. Está inteiro na imaginação do povo e não haverá mais fim, não haverá mais trabalho ou punição, não haverá distância. Quem ocupa o lado de dentro de nós é à disposição do centro absoluto.

Este cruzeiro precisa de ser cuidado por honra dos povos negros. Ele precisa de ser cuidado como um lugar da escravidão, que tem de ter História, tem de ser lembrada e dignificada pelo lado das vítimas.

Estão os campos cultivados em redor da cruz que fica num caminho que enlameia e que antigamente ainda servia para os carros das vacas. Hoje, vão apenas pessoas a pé. Estacionei junto da igreja de Infesta e foram o João, o Manuel e a Conceição que me conduziram. Entendi, depois, que fizemos o mesmo que a peregrinação antiga para pedir chuva. Já não sabem a razão de se pedir chuva ali, mas ainda se lembram de participar nos anos de seca e susto.

Reparo que, na cruz, ao Cristo encarando a manhã se opõe uma Nossa Senhora encarando a tarde e ela sorri. Que invulgar e bonita expressão para a santa. E há a cabeça de um anjo aos seus pés que esboça meio sorriso também. Sou muito pelos santos que sugiram a felicidade. Os santos que propõem essa glória sana de rir.

A lenda do Cruzeiro do Pretinho foi fixada por M. Cunha Brandão num artigo publicado no “Diário de Notícias” a 19 de Fevereiro de 1905. Este artigo serve de base ao que diz Narcizo Alves da Cunha, no importante livro de 1908, procurando preservar os traços fundamentais das terras e da cultura de Coura. Cunha Brandão conta que, mortas as fidalgas, viveu o negro sozinho e desolado na casa grande, rezando aos pés do cruzeiro com devoção e assim visto muitas vezes pelos homens que regressavam dos trabalhos pelos campos. Um dia, o negro foi encontrado morto com sinais de haver suado sangue como Cristo. Para o povo, ganhou mistério de santo. Um santo negro cujo nome se perdeu.

O granito esboroa. Uma ansiedade me acomete para abrigar esta pedra, garantir-lhe mais mil anos, talvez os bastantes para que, nos milagres que souber, nos diga como se chamava. Quem era ao certo o homem que ali foi ser como Cristo, porque a maravilha também se faz desta tristeza.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)