Jorge Manuel Lopes

Cristãos entram pela direita

Escolhas de cinema, por Jorge Manuel Lopes.

Em 1963, deu-se a conhecer o primeiro trabalho da Secção de Cinema Experimental do então denominado Cine-Clube do Porto. Filmado em 1959 e terminado três anos mais tarde, “O auto da Floripes” capta, num registo próximo do documental, uma representação popular que continua a acontecer no lugar das Neves, distrito de Viana do Castelo, um dos pontos altos das Festas em Honra de Nossa Senhora das Neves realizadas no início de agosto. O filme foi agora restaurado e lançado em DVD, numa parceria entre o Cineclube portuense e a Cinemateca Portuguesa.

Nos créditos iniciais, revelam-se as profissões de alguns dos atores amadores que entrarão em ação na passarela montada no centro da localidade: lavrador, alfaiate, fogueiro, tendeiro, caixeiro, trabalhador rural. Antes de se focar na representação, o filme percorre as ruas da povoação, mostrando o quotidiano dos habitantes em volta de vinhas e milheirais, miúdos a jogar à bola, vinho tinto bebido de tigelas na taberna. Neste capítulo da obra, o som ambiente é substituído por música de Constante Pereira para piano, que à distância de seis décadas funciona como um curioso contraponto modernista a imagens de gestos remotos e cores exuberantes.

Uma voz anuncia: “Atenção! Vai começar ‘O auto da Floripes’! Cristãos entram pela direita. Agora, pela esquerda, entram os turcos”. Segue-se a história do embate entre o exército de Carlos Magno e os sarracenos comandados por Ferrabraz. Uma representação de uma exuberância cativante, como cativante é a agilidade física dos atores, o apuro cénico, a riqueza dos trajes e adereços. As câmaras abrem sobre a vasta assistência divertida, sobre o espaço envolvente, sobre a própria equipa de filmagem. Um trabalho precioso e essencial, pelo que mostra e como mostra.