Valter Hugo Mãe

Criatura


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Neste instante, em Portugal, a música faz História com o colectivo Criatura. Quem ainda não deu conta disso não entrou no futuro, o futuro que absolutamente lhes pertence.

Muito esporadicamente, e um pouco ao jeito com que a magnólia parece imperar, uma pessoa, ou um pequeno grupo, acerta numa espécie de frequência em que tudo conspira a favor da perfeição. Subitamente, como se fosse até evidente, o que faz se torna um clássico instantâneo, um esplendor necessário sem o qual já não é possível viver. A arte é assim. Ronda por toda a parte mas escolhe muito poucos para a História. Neste instante, em Portugal, a música faz História com o colectivo Criatura. Quem ainda não deu conta disso não entrou no futuro, o futuro que absolutamente lhes pertence.

A Criatura estrutura-se fundamentalmente pelo encontro de Gil Dionísio e Edgar Valente, um certo diabrete em baile com um certo querubim. Entre a festa cigana e o arraial, de José Afonso a José Mário Branco ou Zeca Medeiros, o que a Criatura faz recupera o melhor da música tradicional portuguesa e monta a exuberância sem pudores desnecessários nem medos. Há uma bravura bela, de caça e namoro, de ironia sem fim, muito desafio, orgulho, o campo todo trazido ao palco, e muita lunaridade, como se a noite prometesse comer as almas, corromper as virtudes daqueles que crescem como vidrinhos.

Ao vivo no Teatro Maria Matos a Criatura é a melhor banda do Mundo porque ao fim de duas horas ninguém conseguia arredar pé e já toda a gente havia regozijado e chorado, já todos tinham temido o corpo temperamental de Gil Dionísio, a sua voz grave e perigosa, como já todos tinham pensado como o Edgar Valente se põe nos agudos mais belos, a fazer questão de equilibrar seu xaile aos ombros como um rouxinol pronto para casar. Que filha da mãe de colectivo brilhante. Dez homens em palco a tocar percussões e violino, teclas e guitarra portuguesa, o baixista também com agudos notáveis, o senhor gaiteiro todo garboso. E havia mais 14 vozes do Coro dos Anjos que favoreciam o épico de algumas canções, um épico profundamente comovente.

Tenho para mim que os temas “A noiva”, “A Mãe” (“Sou fruto do teu cansaço”), “Bem Bonda” ou “Tempo” bastariam para explicar porque não é mais possível tirar a Criatura do tesouro nacional. A Omnichord acaba de imprimir o vinil do álbum “Bem Bonda” e adquiri-lo não vai contra o uso das plataformas digitais onde a banda está presente. Este vinil é um documento. As filas que se formaram para o comprar foram dos que orgulhosamente quiseram ser absolutas testemunhas deste acontecimento. O meu exemplar estará na minha casa enquanto prova de que a música do meu país nos segue a conferir auto-estima, uma identidade de brio, de luxo, de alegria.

Podia bem ter aproveitado este domingo para me queixar do quanto me assusta o que vai na política nacional. Mas é exactamente pelo que vai na política nacional que mais urgente se torna a Cultura e evidência de que, não importa o quê, a estratégia da maravilha comparece, nem que à revelia, no sonho da Humanidade. Haja maravilha nesta Criatura. Haja Criatura em toda a parte.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)