Covid-19. Hora de reerguer

A pandemia trouxe perdas irreparáveis, sofrimento, solidão. E a fatura ainda está por preencher. Um ano depois daquele que continua a ser o maior desafio da humanidade, é tempo de pensar em levantar de novo. O que nos trouxe a covid-19? O que mudou nas nossas vidas? E que oportunidades devemos agarrar? Da saúde à economia, do trabalho à educação, do turismo ao ambiente, um olhar sobre os estragos e as janelas que se abrem.

Um ano volvido sobre este safanão mundial, há quem se admire por já terem decorrido quatro estações sobre aquele inverno que nos gelou de medo, quando os primeiros casos de covid-19 foram diagnosticados em Portugal. Mas para muitos, se não para a maioria, o tempo passou devagar, devagar de mais. Porque roubou normalidade à vida, trouxe novos desafios, incertezas e preocupações. Para mais de 16 mil famílias, a covid-19 trouxe perdas irreparáveis. E para o país? O que nos trouxe a pandemia? O que mudou na nossa vida? Da saúde à economia, da educação ao trabalho, do turismo ao ambiente, uma reflexão sobre o rasto de destruição e sobre as oportunidades que se abrem. Em março de 2020, oito figuras públicas perspetivaram a crise que se estava a instalar. Um ano depois, refletem sobre as lições da pandemia e o que podemos esperar do futuro. Se a fita do tempo voltasse um ano atrás, estávamos prestes a confinar pela primeira vez. Mas os números que então assustavam o país eram bem diferentes: a 7 de março registavam-se oito novas infeções e um número residual de internados – mais para controlo da infeção do que por necessidade de cuidados hospitalares. Ainda não havia mortes a lamentar: a primeira ocorreu nove dias depois, já com o país praticamente trancado à chave. Foi no Norte que tudo começou e, disseram muitos dos entendidos, ainda bem. A resposta pronta e organizada da região ao nível da Saúde Pública e dos hospitais e o confinamento quase imediato do país permitiram achatar o drama que se vivia, aqui ao lado, em Itália, em Espanha. O país recebeu elogios e palmas, os governantes orgulharam-se do feito, mas a procissão ainda ia no adro. “O milagre português”, que fez títulos em jornais internacionais, havia de se transformar num pesadelo.

Um ano depois, o país conta menos de mil casos diários e suspira de alívio. Não é para menos. Já chegaram a ser quase 17 mil novas infeções e mais de 300 mortos num só dia no final de janeiro, o momento mais crítico de sempre. Março/abril, novembro/dezembro, janeiro/fevereiro. As curvas do vírus são expressivas nos gráficos das autoridades de saúde. Sendo todas diferentes, a última é a mais assustadora pela dimensão e pelo rasto de vítimas que deixou. Ganhou velocidade à boleia da mesma variante que “varreu” o Reino Unido e só perdeu fôlego quando a mão pesada do confinamento voltou a achatá-la.

Três vagas depois, os números publicados na última quarta-feira (979 novos infetados e 41 mortos) dão esperança. Desde o início de outubro que não se via igual. O alento vai crescendo também à medida que aumenta o número de vacinados. Tal como o ano de pandemia, o processo de vacinação segue devagar, devagarinho. O ritmo de chegada das vacinas é mais lento do que o esperado e os objetivos inicialmente definidos estão em constante mutação. Se os astros se conjugarem, que é como quem diz se o número de novos casos e de internados continuar a descer, o início do desconfinamento (a data só deverá ser desvendada na próxima quinta-feira) deverá acontecer dentro de poucas semanas. Talvez logo após a Páscoa, como já apontou o presidente da República. E que país vamos encontrar depois de tudo isto?

Reforços e experiências para aproveitar na Saúde

Comecemos pela saúde, onde tudo começou. A pandemia deixou a nu as fragilidades do sistema, umas que já se adivinhavam, outras que estavam mais escondidas. A falta de recursos humanos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) era a vulnerabilidade mais evidente e o reforço feito desde então será um importante ganho para o futuro. Senão, atente-se nos números: em janeiro último, mais de 147 mil profissionais de saúde trabalhavam no SNS, dos quais 31 406 médicos e 48 739 enfermeiros. No total, são mais 7,1% (9 765) do que em março de 2020, segundo contas do Ministério da Saúde. Embora os dados de dezembro passado indicassem uma diminuição de médicos face ao período homólogo, o número voltou a mudar neste início de ano. A variação é habitual e deve-se às aposentações concluídas até ao final do ano e às entradas de internos no início de 2021. Assim, no final de janeiro, havia um total de 31 406 médicos no SNS, mais 3,6% do que em março do ano passado. Quanto aos enfermeiros, cresceram 6,7% no mesmo período, passando dos 45 639 para os 48 739. E chegam?

Certamente que não. Continua a haver milhares de portugueses sem médico de família, sobretudo na região de Lisboa e Vale do Tejo, faltam recursos mais diferenciados nos hospitais e sobram fragilidades na Saúde Pública, uma especialidade há muito esquecida e tão necessária para enfrentar desafios como uma pandemia.

A aquisição de ventiladores (mais 749 do que em março de 2020), a abertura de novas unidades de Cuidados Intensivos – nos hospitais de Matosinhos, Gaia, Amadora-Sintra e Évora – e o alargamento da capacidade de internamento, com mais camas diferenciadas, são investimentos e exemplos de adaptação do SNS que também ficam para o futuro. A articulação interna, entre hospitais dentro e fora de cada região, e externa, com os setores social e privado e ainda com as Forças Armadas, é outra experiência que poderá ser aprofundada no pós-pandemia. Porque é preciso acelerar a resposta aos doentes que ficaram para trás com a suspensão da atividade programada nos hospitais.

Antes da covid-19, as listas de espera para consulta e cirurgia já eram longas. E durante vários meses estiveram semicamufladas porque os doentes não chegavam a ser referenciados para os hospitais, como denunciaram vários especialistas. O mais provável é que disparem mais dia menos dia. Certo é que, quando tudo terminar, a fatura com os doentes não-covid será pesada. Perderam-se mais de um milhão de consultas e mais de 120 mil cirurgias num ano. Ficaram cancros por detetar porque os rastreios falharam, ficaram diagnósticos por fazer por falta de consultas e exames, houve tratamentos interrompidos por medo de ir ao médico. Como se recupera tudo isto? Apesar da “bazuca” europeia apontar muitos milhões à saúde, faltam respostas para os doentes não-covid.

Dimensão dos estragos por contabilizar

Na economia, os efeitos são também devastadores. O Produto Interno Bruto (7,6% em 2020) sofreu uma quebra histórica, acima da Zona Euro (6,8%), empurrada pela descida do consumo e por uma queda sem precedentes nas exportações e no turismo. Milhares de empresas fecharam as portas por duas vezes no espaço de um ano, estando ainda por contabilizar a verdadeira dimensão desta machadada nos negócios e no emprego. Quantos não voltarão a abrir? Restaurantes, hotéis, bares e discotecas, shoppings e comércio de rua estão a pagar a fatura mais pesada de uma crise que não afeta todos por igual. Quando a “normalidade” regressar vai voltar a ser como era? Vamos voltar a ter restaurantes e hotéis cheios, o turismo em alta e as cidades com animação noturna? Acreditamos que sim, mas sobram dúvidas.

Por ora, sabemos o que mudou e dificilmente voltará para atrás. Há negócios que se reinventaram, as vendas online e as entregas ao domicílio entraram numa nova era. Fechados em casa longos meses, muitos trabalhadores foram obrigados a habituar-se, de forma drástica, a novos métodos e rotinas. O teletrabalho veio mudar a vida de milhares de pessoas e também das empresas. Reduziu custos e tempo de deslocações e teve impacto na produtividade das organizações. Se para algumas empresas foi uma novidade, para outras foi uma forma de acelerar processos que já estavam em curso. Há quem diga que o teletrabalho veio para ficar, nem que seja a tempo parcial. Porque promove o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional. Será?

Menos equilíbrio e muitas assimetrias grassam na educação. Por duas vezes desde o início da pandemia, as escolas foram obrigadas a fechar. À segunda, o Governo bem resistiu, mas a 21 de janeiro decretou uma paragem letiva de 15 dias, que evoluiu para o ensino à distância. Até hoje. Milhares de alunos estão a seguir a telescola e a acompanhar aulas por videoconferência, um sistema que deixa muito a desejar e agrava as desigualdades entre ricos e pobres, entre litoral e interior. Além dos livros e do esforço pessoal, o sucesso escolar passou a depender de um computador capaz, das competências digitais de cada um, da ligação e velocidade de Internet num país que está longe de ser digitalmente homogéneo. A agravar as dificuldades, meses depois do primeiro confinamento, ainda estão por entregar milhares de computadores aos alunos das escolas públicas.

Das escolas às empresas, passando pela Administração Pública, o futuro passa pelo digital e esta é uma das áreas de destaque do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) do Governo, a executar até 2026. A chamada transição digital vai receber uma das maiores fatias da “vitamina” que vem da Europa – mais de 2,5 mil milhões de euros de um total de 16,5 mil milhões. Os investimentos são para capacitar as escolas, empresas e trabalhadores e introduzir mudanças de fundo na forma como os portugueses se relacionam com os serviços públicos. Para o ambiente, há um cheque chorudo no PRR: 2,8 mil milhões de euros para investir em mobilidade sustentável, na descarbonização da indústria, na eficiência energética dos edifícios e noutros projetos.

É o dobro da verba destinada à saúde na dimensão resiliência (1,4 mil milhões de euros). Para aquele que foi e continua a ser o bastião dos doentes, o plano aposta em investimentos nos cuidados primários, continuados e paliativos, como se fosse um estender dos últimos orçamentos do Estado, sem imaginação para reerguer um SNS exaurido, um ano depois de uma guerra sem tréguas. Com tantos milhões a caminho, são muitas as janelas de oportunidade que se abrem numa altura em que todas as portas parecem fechadas. Saibamos adequá-las às necessidades e aproveitá-las.