Conversas de chacha que são bem mais do que isso

Os confinamentos privaram-nos deste ritual aparentemente menor

Porque é que os diálogos triviais do nosso dia a dia são tão importantes para mantermos a nossa sanidade mental? A questão que os confinamentos vieram exponenciar.

Há quem fale sobre o tempo, sobre os preços da gasolina, sobre o Governo que acabou de cair, sobre a covid e as máscaras, sobre o carro que teve de ir para a oficina e vai custar uma fortuna, sobre o cachopo que vai de gripe em gripe ou até sobre a companheira que insiste em deixar a casa virada do avesso. Os temas são variados, o conceito pouco mutável. São as conversas de circunstância. Que temos com o funcionário do café onde vamos ou com aquela colega que também está a fumar um cigarro no terraço da empresa. São as conversas triviais, comuns, vulgares, corriqueiras até. Há quem lhes chame conversas de chacha, termo coloquial que o dicionário traduz por “conversa banal”, “conversa de ocasião”. Ainda que neste caso se acrescente um sentido pejorativo que não deve ser negligenciado. “Esta expressão da conversa de chacha implica uma desvalorização. O que estamos a dizer é que são conversas sem grande interesse. E é interessante porque parece que só recentemente lhes demos importância. De repente, desapareceram e percebemos que não são assim tão de chacha.” A observação é de Alexandra Lopes, especialista em Sociologia da Saúde, e vem a propósito de uma reflexão sobre o porquê de as conversas triviais serem importantes para a nossa saúde mental. E dos confinamentos que nos privaram desse ritual aparentemente menor. Só aparentemente.

Porque, realça a socióloga, há nele uma profundidade bem maior. “Estas conversas poderão ser encaradas como menores porque normalmente os conteúdos que abordamos nelas são mais triviais, mais mundanos, não são conversas em que estejamos a discutir sobre os grandes problemas do Mundo, mas cumprem uma função muito importante naquilo que é a nossa existência enquanto comunidade, uma função de ligação. São mecanismos muito relevantes de função social, de interação, de construção de um sentimento de pertença a um coletivo.” O que, por sua vez, tem impacto direto no nosso bem-estar. “Se quisermos colocar isto numa perspetiva de saúde mental, estas conversas são fundamentais para evitar sentimentos exacerbados de desligamento. Além de que muitas vezes são uma boa forma de darmos umas gargalhadas, porque é habitual abordar-se nestas conversas temas ligeiros, episódios corriqueiros, com algum sentido de humor, num tom jocoso.”

Já há cerca de um século o polaco Bronislaw Malinowski, considerado o pai da Antropologia Social, defendia que as “small talks”, o termo britânico para estas conversas de circunstância, não eram de domínio exclusivo das sociedades ocidentais. E que o objetivo não passava por comunicar ideias, mas sim por cumprir uma função social: a de estabelecer vínculos pessoais.

Ana Pato, psicóloga clínica, alinha pelo mesmo discurso. Sustenta até que as supostas conversas de chacha dão resposta a uma “necessidade inata”, na medida em que somos um ser eminentemente social. E que acabam por preencher outros parâmetros que, em maior ou menor escala, todos procuramos. A aprovação, a constatação do interesse do outro em ouvir o que temos para dizer, uma certa forma de validação. A especialista concretiza. “Às vezes, é o apoio do outro, o facto de nos queixarmos do marido, o sentirmos que somos ouvidos por pessoas que não têm a ‘obrigação’ de nos ouvir, um colega de trabalho que acha interessante o que estou a dizer, alguém que quer ouvir a minha opinião sobre um dado assunto. Mais do que uma necessidade de socialização, há também uma necessidade de aprovação externa.”

Um aviso chamado pandemia

E, se para uma boa parte de nós esta necessidade andava ali camuflada, a fazer-se despercebida, tudo mudou com a chegada da pandemia e os consequentes confinamentos que nos boicotaram até as conversas de circunstância. Ana Pato, que na clínica privada onde trabalha atende crianças, jovens e adultos, garante que, ao longo dos últimos meses, se deparou com inúmeras queixas nesse sentido. “Os adultos, sobretudo os que têm filhos, diziam que precisavam muito de contacto com outros adultos, mesmo que fosse só aquela pausa de cinco minutos no trabalho, para manter a sanidade mental. Algo que lhes permitisse sair de um mundo que ficou cingido às crianças e às tarefas domésticas. Mesmo que sejam aquelas coisas mais pequenas, as próprias cusquices, são coisas que nos ajudam a completar a nossa rotina e dar-nos a energia de que precisamos.”

A psicóloga diz mesmo que sentiu muita gente a sufocar dentro da rotina, gente que procurava esses contactos sociais fugidios – às vezes até uma “ida ao lixo” – como um “vir à tona para respirar fundo”. Interações que, afinal, “fazem muita diferença e cuja necessidade se acentuou durante a pandemia”. “Mostrou-nos algo que sempre lá esteve.”

E nem os mais novos escaparam. “Mesmo para eles fazia muito sentido ter estas pequenas conversas, totalmente irrelevantes. Começaram a acusar muito, mesmo a nível comportamental. Muitos ficaram mais agitados, mais agressivos, com uma necessidade de autorregulação muito superior. Sentiam que lhes estavam a cortar as pernas logo quando estavam a começar o processo de socialização.” Mas com algumas diferenças consideráveis em relação aos adultos. Por um lado, o facto de, para os jovens, a componente online ter servido “um bocadinho de substituição”. Por outro, uma menor capacidade de refletir sobre o assunto.

Ana Pato destaca ainda uma outra questão, com implicações potencialmente mais gravosas. “Notei que estas conversas que não existiram condicionaram muito a confiança de alguns destes jovens. Porque, sobretudo nestas idades, estes diálogos aparentemente irrelevantes ajudam a dar segurança para interagirmos mais e melhor. Depois do confinamento, ficaram mais inseguros. Muitos diziam que parecia que já nem sabiam o que dizer, era como se estivessem a falar com o outro pela primeira vez.”

O fascínio da imprevisibilidade

Mas há outros atributos que justificam a atratividade destas “small talks” com estranhos – ou pessoas com quem mantemos apenas relações superficiais. Um deles prende-se com a imprevisibilidade. Se nos diálogos de âmbito familiar à partida já sabemos com o que podemos contar, que mais não seja por conhecermos previamente a postura e as opiniões das pessoas que nos rodeiam, com estranhos tudo será uma incógnita. “Introduz-se aqui um elemento desafiante, porque a verdade é que essas conversas também podem acabar por ser desconcertantes. E o risco cria aqui uma sensação de desafio”, aponta Alexandra Lopes.

A socióloga enfatiza ainda outros dois pontos, que podem ajudar a perceber a queda para estas conversas. “Por um lado, às vezes é mais fácil contarmos um dado problema a um estranho, por causa da questão da previsibilidade. Não no sentido de anteciparmos o que o outro vai dizer, mas porque o facto de se tratar de um estranho de alguma forma nos dá a sensação de que não haverá consequências. Porque a relação começa e acaba ali. Um estranho é muitas vezes um ouvinte conveniente.” Além de que estes diálogos também nos podem ajudar a pôs os problemas em perspetiva. “Há questões que num círculo mais fechado podem ganhar uma importância muito grande e, quando falamos delas e começamos a aperceber-nos que são questões que outros também têm, acabamos por relativizar.”

E aqueles casos, que em maior ou menor quantidade todos conheceremos, de pessoas que tentam a todo o custo evitar conversas triviais, porque simplesmente não as suportam? Dada a função social das mesmas, será essa aversão um sinal de alerta? Nem tanto. Ana Pato ajuda a definir a linha entre o que pode ser um mero traço de personalidade ou um eventual sinal de alerta. “Se essas conversas forem típicas da personalidade da pessoa e de repente esta se tornar muito fechada, isso deve preocupar. Porque esse silêncio pode ser uma capa para esconder alguma coisa. Mas depois também há pessoas com personalidades mais fechadas que simplesmente não sentem tanto essa necessidade.” Vai uma conversa de chacha?