Contra tudo e contra todos. Elas chegaram à PSP há 50 anos

Concorreram à revelia de pais e maridos, encararam a desconfiança dos colegas e as piadas de mau gosto. Bateram-se por direitos iguais, subindo na hierarquia e desempenhando hoje quase todas as funções. A história das pioneiras nas forças de segurança em Portugal completa meio século.

Luvas brancas, apito entre os dedos, braçadeira vermelha, farda impecável e o coração mais acelerado do que o costume. Maria Pereira Costa estava pronta quando subiu ao estrado num dos cruzamentos mais movimentados da avenida da República, em Lisboa. Mas, ao fim de 20 minutos, foi forçada a parar. O “maldito” vento de uma manhã de novembro insistia em levantar-lhe a saia. O trânsito não andava. Maria desceu envergonhada, com todos os olhos postos em cima dela. E assim acabou, repentinamente, o primeiro dia da polícia sinaleira. Estranho episódio esse, que nunca mais se repetiu, mas será preciso enquadrá-lo no tempo certo para se entender o caos que ela provocou no centro da cidade. Corria o ano de 1971 e Maria Pereira Costa, tal como Leonor Fino e Carolina Pinto, estavam entre as 229 candidatas aprovadas no primeiro concurso público feminino de admissão de guardas na Polícia de Segurança Pública (PSP). “Ninguém tinha visto uma polícia e menos ainda uma polícia com a saia levantada”, assinala, agora com 70 anos, entre risadas. Era uma estreia para Maria, mas também para todos os portugueses e, sobretudo, para a PSP que, nesse ano, se tornaria na primeira força de segurança, em Portugal, a admitir mulheres nas suas fileiras.

“Desbravámos o caminho para que outras viessem a seguir”, afirma Leonor Fino. Com 22 anos, deixou a freguesia de Pavia, no concelho de Mora, e aterrou em Lisboa para ouvir dos colegas que deveria estar em casa a “tratar dos filhos e a coser meias”, recorda hoje, com 74 anos. Meio século depois, a desconfiança está enterrada no passado, mas as mulheres ainda são atualmente pouco mais do que 10% do total do efetivo. “Continuamos em minoria, mas já desempenhamos quase todas as funções, em unidades especiais, em missões no estrangeiro, nas carreiras operacionais ou administrativas”, contrapõe a superintendente Virgínia Cruz, uma das oficiais mulheres na categoria mais alta da hierarquia da PSP.

Maria Pereira Costa, agora reformada, integrou a primeira incorporação feminina da Polícia de Segurança Publica
(Foto Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)
(Foto: DR)

Das mais antigas às mais recentes, elas continuam a abrir caminho na Polícia de Segurança Pública. Virgínia Cruz tem 52 anos e, desde 1992, foi subindo degrau a degrau, até chegar, há um ano, ao posto de comandante no Comando Distrital de Aveiro. Interrompeu uma longa linhagem masculina, tal como a subcomissária Carina Alves, de 26 anos, que na 19.ª Esquadra de Telheiras, em Lisboa, lidera um efetivo de 43 homens e quatro mulheres: “Muita coisa mudou, mas olho sempre para as primeiras mulheres como aquelas que nos permitiram ter ambições na carreira de oficiais da PSP”.

O grito de liberdade de Maria

Ambas sabem que a história delas começou há 50 anos, com as pioneiras a derrubar preconceitos e a abalar as tradições. Desde logo, dentro de casa. Leonor Fino concorreu mesmo com o “pai muito zangado”, mas que acabaria conformado ao ver a vizinhança orgulhosa com a coragem da filha. Mais resistências encontrou Maria Costa. O marido era polícia e queria a mulher na cozinha e a cuidar dos filhos. Terá, certamente, amaldiçoado a hora em que chegou do trabalho e contou a novidade à mesa do jantar: “A PSP abriu vagas para mulheres”. Ela pensou de imediato: “Está aqui a minha independência!”.

Tinha 21 anos e concorreu ao primeiro alistamento, indo contra a vontade dele. Gostou da ideia de entrar numa profissão só de homens e mais ainda de ganhar a vida a “cirandar” pelas ruas: “Não era algo que uma senhora bem-comportada pudesse fazer”. Não, não era. Embora a primavera marcelista soprasse desde 1968, o Estado Novo ainda ditava as regras da moral e dos bons costumes. As mulheres só puderam concorrer, por exemplo, aos cargos da magistratura judicial e do Ministério Público em junho de 1974, as hospedeiras da TAP ou as funcionárias do Ministério dos Negócios Estrangeiros não podiam casar. E as casadas, essas, tiveram ainda de esperar pela Constituição de 1976 para impedir os maridos de abrir a correspondência sem a sua autorização. O país, em 1971, esperava pela revolução de Abril para iniciar o lento caminho da emancipação feminina.

Leonor Fino ouvia dos colegas que devia ir para casa cuidar dos filhos e coser meias
(Foto Gerardo Santos/Global Imagens)
(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

Mas, entretanto, as portas da PSP abriam-se para que pudessem vestir a farda da polícia. Elas teriam ainda de esperar duas décadas para fazer o mesmo nas Forças Armadas. Só em finais de 1991 surge o primeiro grupo de 56 recrutas da Força Aérea, selecionadas entre 239 candidatas. Em março de 1992, o Exército admite 34 mulheres e, em dezembro desse mesmo ano, a Marinha inaugura um contingente com 80 mulheres. Houve, antes disso, casos avulsos a polvilhar a História com exemplos pioneiros. É obrigatório mencionar as 46 enfermeiras paraquedistas da Força Aérea que, entre 1961 e 1974, desceram dos céus para resgatar, debaixo de fogo, os feridos na Guerra Colonial – entre elas as lendárias “seis Marias”. Muito antes, aliás, a PSP, colocava-se na vanguarda ao admitir dez polícias do sexo feminino, a partir 1 de novembro de 1930, mas sem farda e unicamente em serviços assistenciais e vigilância de mulheres e crianças.

Funções para eles e elas

Só com o concurso, lançado em 1971, elas chegam às centenas, concluindo os cursos em Coimbra, no Porto e em Lisboa e entrando, no ano seguinte, nas esquadras com competências próprias da profissão – regular o trânsito da cidade, fiscalizar infrações na rua, prestar assistência turística, colaborar em diligências, entre outros serviços administrativos ou burocráticos. As incumbências operacionais, no entanto, só poderiam ser exercidas à luz do dia. O policiamento noturno, sobretudo junto dos bares ou das tabernas, continuava por conta dos homens.

Outras funções, porém, passaram para a alçada feminina. “Às polícias, em Lisboa, estava destinada a vigilância dos jardins da Gulbenkian”, explica Leonor Fino. Sendo o maior e o mais arborizado espaço verde da cidade, o policiamento exigia turnos compostos por duas mulheres em cada uma das três rondas diárias. Todas com ordens expressas para andar de olho nos namorados. “Ao primeiro beijinho na boca, era agarrá-los pelas golas e arrastá-los para a esquadra”, diz Maria Costa. Dali só saiam depois de pagar uma multa de “50 e tal escudos” [cerca de 30 cêntimos], acrescenta, admitindo nunca ter sido exemplar nessa função: “Mal vislumbrava um parzinho ao longe, atalhava caminho para não ser obrigada a autuar”.

Resistir à mudança

O maior obstáculo, no entanto, não eram os casais atrevidos nem as outras tarefas que lhes eram atribuídas. Foram antes os colegas, que não estavam preparados para a mudança. “Fomos um pouco hostilizadas por uma parte dos homens.” A estreia de Maria Costa no policiamento das ruas, embora bem mais discreta do que no trânsito, foi igualmente memorável. “Saí acompanhada por um colega, que deveria fornecer todas as orientações para me desenvencilhar sozinha nos dias seguintes.” Maria já nem tem presente quem era o parceiro, só tem na memória um dia inteiro sem trocar uma única palavra com ele. “Estava danado por me ter na sombra dele o tempo todo”, conta ela, entre mais gargalhadas.

Distância delas era o que queriam, alguns dispostos a dificultar-lhes a vida mal surgisse uma oportunidade, assegura Maria. O seu primeiro serviço gratificado tem mais uma história a merecer ser contada: “Cheguei mais cedo para apanhar o meu colega e inteirar-me das tarefas”. Fiscalizar o trânsito durante um evento a decorrer na antiga FIL, na avenida da Índia, era tudo o que sabia. “Bom dia, colega! – cumprimentou ela -, então o que é para fazer aqui?” “Nada!” – respondeu-lhe ele. “Nada?!”, insistiu ela. “Nada!”

Maria desconfiou, mas, não conseguindo arrancar nem mais uma palavra dele, decidiu não dar nas vistas. “Os carros foram aparecendo e eu até me desviava para que estacionassem em cima do passeio.” Por azar, foi denunciada, no dia seguinte, ao comandante da esquadra. “Então, achas que te pagam para não fazeres nada?” – repreendeu o chefe. Maria “tremia por todo o lado”, explicando a custo ter seguido as indicações do colega. Serviu-lhe de lição, garante, mas não demoraria muito para os homens baixarem finalmente a guarda.

Bárbara Silva foi admitida na PSP em 1973, com outras 200 mulheres no segundo alistamento. A maioria, como ela, seguiu para a divisão de trânsito em Lisboa. Dois anos se passaram desde que Maria Costa e Leonor Fino chegaram, o suficiente para não sobrar réstia de rancor. “Na rua ou entre os colegas, fomos muito bem acolhidas”, assume Bárbara, hoje com 71 anos. A presença feminina na polícia já não era propriamente novidade na estrada, no atendimento ao público ou no policiamento junto às escolas. “Ainda havia um ou outro comentário maldizente”, reconhece Bárbara. Mas tratava-se de uma minoria que, protegida por uma distância de segurança, atirava a clássica piada de mau gosto: “Vai para casa coser meias!”. De resto, o que mais havia eram “sorrisos e olhares pasmados”.

Bárbara Silva fez parte, juntamente com outras 200 mulheres, do segundo alistamento da PSP, em 1973
(Foto Carlos Costa/Global Imagens)
(Foto Carlos Costa/Global Imagens)

Era como se a modernidade tivesse saído à rua, mas custasse ainda a acreditar. Mulheres a mandar parar os automobilistas nas ruas do Porto tornaram-se frequentes na década de 1970. E, ainda assim, havia quem se desse ao trabalho de atravessar a cidade “só para regressar ao mesmo sítio e ser outra vez fiscalizado por uma senhora”, salienta Carolina Pinto, polícia reformada de 72 anos, que também integrou o primeiro alistamento feminino.

As polícias eram aves raras, merecendo, muitas vezes, tratamento especial. Maria guarda ainda um lenço de seda inesperadamente oferecido por um casal no meio do trânsito e não esquece as “muitas atenções” recebidas. “A Loja das Meias oferecia meias, uma fábrica de doces guardava pacotes de bolachas para nós e havia sempre alguém a querer pagar o café ao balcão.” Era um “certo respeito pela farda” que se sentia nas ruas – realça Bárbara -, bastava eles ou elas aparecerem e “toda a gente ficava em sentido”.

Brigar pela igualdade

Dentro das esquadras, as diferenças entre homens e mulheres deixaram, nos anos seguintes, de ser tão evidentes. O mesmo não se poderia dizer da progressão na carreira. Elas tinham três categorias e eles sete. “Entrámos como agentes de segunda e não havia maneira de nos promoverem”, relembra Carolina Pinto. O 25 de Abril trouxe, entretanto, coragem para as polícias do primeiro e segundo alistamento “arranjarem uma advogada” e reivindicarem condições iguais. “Cada uma fez uma exposição à direção nacional a pedir o fim das desigualdades”, refere Bárbara Silva.

Era mais do que justo – reivindicaram as pioneiras – afinal, nada as distinguia dos colegas. Nem sequer as provas de admissão, idênticas, nos primeiros anos, para homens e mulheres. “Saltar 30 centímetros com os pés juntos ou correr 60 metros em 15 segundos.” Tudo igual, até o mais temido de todos os testes – o ditado de uma página, em que seis erros ortográficos bastariam para eliminar os candidatos. E, mesmo que ultrapassassem tudo com distinção, sem um “irrepreensível comportamento moral e civil” ficariam pelo caminho. De nada valia jurar pela honra que eram sérias e honestas, diz Maria Costa: “Só depois de os recrutadores recolherem informações junto da vizinhança é que poderíamos suspirar de alívio”.

Carolina Pinto, outra das pioneiras do alistamento feminino da Polícia
(Foto Gerardo Santos/Global Imagens)
(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

O percurso para entrar na polícia era minucioso e seria preciso esperar ainda por 1982 para poderem, por fim, candidatar-se à categoria de chefe de esquadra. Bárbara ainda frequentou as aulas de preparação para concorrer ao curso, mas acabaria por desistir: “Tive medo de ser colocada longe, no Algarve ou nas ilhas”. Tinha em casa um bebé de meses e uma filha com quatro anos. “Sempre fiz tudo pela profissão, mas a família está primeiro.” Com 23 anos, quando concorreu à PSP, partiu à procura de “um novo sonho”, até então impensável. Mas Baltazar, o homem por quem, aos 18 anos, deixou Terras de Bouro para viver em Almada, foi o primeiro sonho e o que se sobrepôs a todos os outros: “Fomos muito felizes durante 30 anos, até ele morrer”.

Cinco décadas, desde o primeiro recrutamento feminino na PSP, trouxeram mudanças nas carreiras delas, mas também nas famílias. Em 29 anos, a superintendente Virgínia Cruz saiu de Setúbal, onde vivia, passou por Évora, regressou a Setúbal, esteve na Direção Nacional, em Lisboa, e chegou a Aveiro, onde reside, não sabendo se haverá, no futuro, mais cidades para percorrer.

O trajeto de Carina Alves é ainda fresco, mas, desde que deixou Vendas Novas para estudar em Lisboa, esteve em Benfica e em Campolide, assumindo, no final do ano passado, o comando da Esquadra de Telheiras. “Sempre soube que o trabalho para lá dos horários, as operações aos fins de semana ou as chamadas a meio da noite fazem parte do ofício.” Tudo isso é “perfeitamente compatível com a família” – considera Virgínia Cruz – desde que, em casa, haja um marido disposto a “compreender e a equilibrar” as ausências. “Tive essa sorte”, confessa a comandante do Comando Distrital de Aveiro. E, já agora, a mesma sorte quer Carina: “Subir até ao máximo que conseguir pelo meu esforço e mérito.”

Superintendente Virgínia Cruz, comandante distrital de Aveiro, é uma das mulheres com categoria mais elevada na hierarquia da PSP
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Houve muitas batalhas, nesses 50 anos, para elas ficarem só por aqui. As mulheres já chegaram ao corpo de segurança pessoal, ao grupo operacional cinotécnico, às equipas de intervenção rápida ou à investigação criminal. “Mas são ainda poucas e menos ainda a chefiar”, ressalva a comandante na Esquadra de Telheiras. Em 2020, representavam 12% nos cargos de comando e chefia da PSP. As oficiais são, por outro lado, 13% do total, às quais se juntam 194 Chefes (8%), segundo os números mais recentes do Ministério da Administração Interna.

Faltar-lhes-á também entrar no GOE – Grupo de Operações Especiais – e alcançar, por fim, o topo da hierarquia. Paula Peneda, embora na categoria de superintendente, foi a primeira a assumir, em março do ano passado, as funções de um superintendente-chefe num comando metropolitano – o do Porto.

Gerações cruzadas

Ao fim de meio século, a história das mulheres na PSP pode ser contada de duas maneiras. Do futuro com “muita estrada para continuar”, avisa a subcomissário Carina Alves. Ou do passado com “longo caminho percorrido”, adiciona Bárbara Silva. As cronologias cruzam-se, muitas vezes, em cerimónias festivas da PSP, quando as pioneiras regressam como convidadas especiais. É o reencontro entre velhas colegas dos primeiros anos, mas também o momento em que as diferentes gerações estão lado a lado. “Quando vejo uma graduada, nessas ocasiões, vem-me logo à cabeça que é mais uma de nós que chegou longe”, confidencia Bárbara.

Carina Alves, recém-licenciada e comandante na 19.ª Esquadra, em Telheiras, Lisboa
(Foto Gerardo Santos/Global Imagens)
(Foto Gerardo Santos/Global Imagens)

Virgínia Cruz poderia ser uma dessas “graduadas” a cruzar-se com Bárbara. Também ela olha para as pioneiras como “as mulheres que há 50 anos me permitiram chegar onde hoje estou”. À entrada do edifício do Comando Distrital de Aveiro, o que chama logo a atenção dos visitantes são os retratos dos antigos comandantes emoldurados e alinhados na parede. Todos homens. No dia em que Virgínia Cruz deixar o posto, haverá finalmente o de uma mulher. “Serei, estou certa, a primeira de muitas.”