Conto de Natal da autoria do escritor Joel Neto.
– Valentim – repetiu o velho, numa exasperação.
E acrescentou dois apelidos que não fixei, fascinado ainda com o quão bem lhe assentava aquele nome, “Valentim” – antigo como ele, pejado da mesma dignidade que se libertava do seu corpo delgado, da bengala de mogno, do “stingy brim” na mão.
– Lamento, mas deixámos de aceitar doações – justificou a mulher atrás do balcão.
– Pode é tentar marcar uma audiência com o senhor director.
À nossa volta dispersavam-se estantes vetustas, muito escuras, e nas prateleiras que cobriam a parede do fundo, para lá do balcão de atendimento e da mesa a que a mulher se sentava, alinhavam-se grossos volumes de encadernação artesanal, os nervos dourados brilhando ainda nas lombadas de pele, como se há muito ninguém os abrisse.
O homem apertou os dedos em torno do cabo niquelado da bengala. Respirou fundo.
– Quanto tempo é costume esperar-se por uma reunião?
E eu achei que também aquela ênclise lhe ficava bem. Já ninguém falava assim.
– O senhor director meteu baixa em Junho e ainda não voltou. A senhora subdirectora está no estrangeiro pelo menos até ao fim do mês, em formação.
O velho baixou a cabeça. Levou a mão com o “stingy brim” à testa.
– Sabe a quantas bibliotecas eu já fui?
E já não falava para ela, mas para si mesmo.
A mulher debruçou-se sobre o computador, numa última solicitude. Teclou por uns momentos.
– De qualquer maneira – e percorreu o ecrã com o olhar -, ambos lhe diriam que temos a colecção completa.
Tornou a teclar. Semicerrou os olhos.
-Disse “National Geographic”? Três colecções. Uma ainda no depósito, à espera de encadernação.
Reacertou o teclado sobre o tampo.
– Tivemos muitas doações nos últimos anos. As pessoas mudam-se para casas mais pequenas. É o turismo.
O velho engoliu. Tentou recompor-se:
– Mas não há ninguém com quem eu… Não há ninguém?
– Talvez depois do Natal – resumiu a mulher.
– Posso ajudar em mais alguma coisa?
E, acto contínuo, voltou os ombros na minha direcção:
– Faz favor?
Entreguei-lhe a minha requisição e dali a pouco estava mergulhado nos hemisférios do velho von Guericke, em que deveria instruir-me melhor se pretendia de facto trabalhar a potência motriz do fogo, ou pelo menos convencer alguma universidade a considerá-lo. Fosse como fosse, nunca estava tudo dito sobre a termodinâmica e, se eu pretendia mesmo dar um novo rumo ao meu dia-a-dia, zarpar do escritório e dedicar-me a alguma coisa que fizesse a diferença, pelo menos por uns tempos, tinha de apontar às estrelas.
A meio da tarde dei um salto ao pátio lateral, para fumar um cigarro. Do outro lado da janela, os leitores curvavam-se sobre as mesas alinhadas, uns com ar de cientistas e outros de historiadores. Tinham todos auscultadores nos ouvidos, provavelmente com música alta, e alguns sacudiam ao de leve a cabeça. Nenhum deles lia um periódico, e eu perguntei-me que futuro poderia ter a imprensa, se já nem para quem estuda a marcha do tempo servia.
Senti-me deprimido, e a ideia de voltar às experiências do burgomestre de Magdeburgo, de tão incipientes, só acentuou a minha tristeza. Ainda tentei retomar o trabalho, mas pouco depois devolvi os livros à funcionária, enfiei o portátil no saco e dei o dia por terminado.
O velho estava sentado num banco do jardim fronteiro ao edifício. Tinha a cabeça descoberta, o cachecol desalinhado e os olhos perdidos numa moita que definhava, sem memória da Primavera. Parecia estar ali há horas.
Sentei-me a dois bancos de distância, fingindo olhar os estudantes que circulavam de mochila às costas, com gorros de Pai Natal cuja disposição não condizia com os seus semblantes. Ao fim de alguns minutos levantei-me e fui sentar-me ao pé do velho.
– Não pude deixar de ouvi-lo, há bocado. Sou voluntário numa associação para jovens carenciados – menti. – Temos uma biblioteca pequena, mas bastante frequentada.
Ele deteve-se, como se só agora desse pela minha presença. Finalmente, torceu-se na minha direcção, demorou-se um momento nos meus olhos e, largando a bengala de mogno, pousou a mão sobre a minha.
Fui recolher as revistas no dia seguinte, a um decrépito apartamento da Graça, com tectos altos e vista para uma vila operária. Valentim recebeu-me com a mesma formalidade da véspera, o longo sobretudo ajustado ao corpo elegante, mas pelo decote da camisa de seda entrevia-se-lhe agora o cós de um pijama encardido, mais coçado do que grosseiro.
Tive de subir e descer duas vezes, visto não haver um elevador. À segunda, o velho quis ajudar-me.
– Faltam-me dois números. Peço desculpa.
Quando acabei de carregar os maços de revistas, o automóvel pareceu queixar-se, como que inquieto por eu o ter tirado da pacatez do nosso subúrbio indistinto, de onde nunca saía. Valentim, que descera a acompanhar-me, fitou-o longamente e depois tornou a agarrar-me a mão, sacudindo-a e apertando os lábios um contra o outro.
Cirandei toda a tarde por Lisboa, tentando decidir-me sobre o que fazer a seguir. Casais entravam e saíam das lojas, no afã dos últimos dias antes da consoada, e, ao fundo da avenida, a dois passos do meu escritório, um vendedor de castanhas tentava, com a ajuda de uma rapariguinha, dar resposta ao magote que se acotovelava diante de si.
– Quentes e boas? – perguntou uma senhora sorridente, com um sotaque da província.
Mas o homem não lhe respondeu, agitando no ar o cone do assador e vertendo-o para um tabuleiro fuliginoso de onde as mãos pequeninas da criança alimentavam os cartuchos que os casais açambarcavam.
Misturei-me com a clientela e, ao encontrar uma oportunidade, pedi uma dúzia. A menina levou as mãos a uma velha lista telefónica e arrancou de lá uma folha, para enrolar o meu cartucho.
Sorri-lhe e rodei sobre mim próprio.
Depois voltei-me de novo. Encarei o pai, atarefado.
– Tenho ali umas revistas – ocorreu-me. – Talvez lhe dessem jeito.
E deixei com eles, enfim, a totalidade dos sacos de supermercado em que Valentim acondicionara o seu tesouro.
Lembrei-me várias vezes do velho ao longo das festas, mais esparsamente nos primeiros dias do novo ano e muito pouco nas semanas seguintes. Janeiro começou com novo confinamento, e depois as pessoas saíram de casa num frenesi, já menos desejosas de viver a vida do que de se entregarem a ela.
O trabalho no escritório também se acentuou, na expectativa de uma retoma. Num desses dias, saí tarde demais para apanhar o comboio habitual e parei junto ao vendedor. O frio começava a ceder e os clientes já não formavam fila, mas o fogareiro persistia em fumegar, com as provisões que o homem trazia do Outono.
Cumprimentei:
– Boa noite.
Ele nem me reconheceu, exausto como no primeiro dia.
– Quantas? – atalhou.
Até que, ao olhar por detrás dele, detectei a menina, com o seu cabelo amendoado e os seus encantadores olhos tristes. Folheava uma revista dos anos 90, creio que 1997 – Outubro, se li bem -, com três rapazes goba enquadrados na moldura amarela da capa, cantando todos. De vez em quando detinha-se numa fotografia, e então deixava-se ali a olhá-la e a imaginar-se nas margens cálidas do Zambeze.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)
Biografia do autor
Joel Neto (n. 1974) é autor, entre outros, dos romances “Arquipélago” e “Meridiano 28”, bem como da série de diários “A vida no campo”, que lhe valeu o Grande Prémio APE de Literatura Biográfica. Nasceu na ilha Terceira, viveu 20 anos em Lisboa, onde escreveu para a maior parte dos grandes jornais e revistas nacionais, e regressou aos Açores em 2012, no intuito de se dedicar inteiramente à literatura. Vive desde então no lugar dos Dois Caminhos, freguesia da Terra Chã, onde cuida de dois cães, um pomar e um jardim de azáleas.