“Comfy”, a roupa informal para usar com ousadia

As roupas confortáveis entraram nas coleções de pequenas e grandes marcas

A pandemia ditou uma moda mais descontraída e obrigou as marcas de vestuário a uma reviravolta para responderem à exigência dos clientes. É verdade: os fatos de treino voltaram e estão para ficar. A roupa confortável, usada com ousadia e interpretada de forma individual, afirmou-se como tendência.

Não foi difícil para Maria Maia, de 25 anos, perceber que a pandemia ia trocar as voltas à marca de roupa que criou há dois anos e meio. “Eu senti a necessidade de mudar porque, como é lógico, via que as vendas estavam a diminuir.” Até ao início de 2020, a White Deer mantinha-se essencialmente focada em vestidos e blusas, uma espécie de imagem da marca. Até que a covid-19 se transformou numa pandemia, veio o confinamento e tornou-se quase impossível vender roupa, mesmo através na Internet e com uma forte aposta nas redes sociais.

Mário Jorge Machado, da ATP, observou a aposta das marcas na roupa confortável, após queda do vestuário formal
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

A White Deer, atualmente com dois showrooms na Póvoa de Varzim e em Lisboa, adaptou-se aos novos tempos. Um tempo em que estamos mais em casa, vestimos roupa mais confortável e, quando desconfinamos, não nos importamos de usar o que até há pouco tempo permanecia dentro de portas. Com um toque de ousadia e irreverência. “Mudamos radicalmente. Começamos a vender mais conjuntos e malhas confortáveis, mas com um corte feminino”, explica a responsável. A alteração na estratégia foi tão relevante que em novembro de 2020, o melhor mês em vendas, a marca cresceu 300% face à faturação do início do ano.

Mário Jorge Machado, presidente da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP), não estranha a adaptação das marcas ao chamado “homewear” (roupa de estar em casa). “Ninguém vai andar de fato ou de vestido quando está em teletrabalho, por exemplo.” Face à quebra mais acentuada de vendas no vestuário formal, o informal e o confortável afirmaram-se como tendência pela força das circunstâncias. A consequência foi uma adaptação da indústria: algumas marcas que já faziam este tipo de produto aumentaram o volume de negócio, já outras tiveram de entrar no mundo dos fatos de treino.

Ana Calisto criou a Mi.KÁ no início de 2020 e o foco da marca foram os fatos de treino coloridos para mães e filhos
(Foto: DR)

“Sporty chic”, “streetwear”, “leisurewear” e “homewear” são tudo estrangeirismos que ajudam a perceber como o estilo de roupa casual e desportiva entrou de rompante nos armários nos últimos tempos. Ainda antes da pandemia, Ana Calisto, de 37 anos, sonhava em ter uma marca de roupa, com inspiração na Coreia do Sul. A professora de Educação Física, que não exerce atualmente, preferia a roupa solta e minimalista daquele país asiático às “skinny jeans” (calça de ganga justas) que proliferavam nas lojas em Portugal.

Conjuntos para mães e filhos, da Mi.KÁ
(Foto: DR)

A viagem para a Ásia estava marcada para janeiro de 2020. Foi cancelada. O sonho de ter uma loja de criança com roupa sul-coreana parecia já impossível. Mas Ana não desanimou. “Pensei noutras opções e surgiu-me a ideia dos fatos de treino”, conta. No início de fevereiro, nascia a Mi.KÁ com conjuntos coloridos, feitos para mães e filhos, e prontos a ser usados no conforto de casa ou nos passeios na rua. O fato de treino, que “nunca foi uma tendência”, passou a ser moda.

Descontraído mas não desleixado

Foi como acordar um gigante adormecido. Joana Bourbon, coordenadora dos cursos da Escola de Moda do Porto, é perentória a vaticinar que o conforto é “uma tendência que veio para ficar”. A covid-19 só veio multiplicar o efeito do fato de treino. O que é descontraído não é desleixado. “Já nos habituamos a construir-nos esteticamente de outra maneira. Se antes nem todos ousavam usar um vestido com sapatilhas, agora, entendem que é possível usar sapatilhas com qualquer tipo de roupa”, exemplifica. E, como a moda “já não tem as balizas de há dez anos”, não será estranho ver uma mulher de fato de treino a usar saltos altos, botas ou sandálias nos pés, numa qualquer rua ou passarela da vida. A individualidade e a interpretação de cada um ditam as tendências, dentro e fora de casa.

Maria Maia, da marca White Deer, mudou de estratégia quando as vendas caíram no início da pandemia
(Foto: DR)

A responsável da White Deer, que não deixou de apostar nos vestidos nas coleções, reconhece que os acessórios e maquilhagem, conjugados com um fato de treino, contribuem para elevar o look “comfy”. Mas nada funciona sem a força do cliente, que durante e após o confinamento, procuraram simplificar um guarda-roupa agitado e caótico. E a prova disso foi o feedback que Maria Maia recebeu das clientes nas redes sociais. Após março de 2020, os conjuntos chegaram a representar 60 a 70% da faturação da marca. Os bons resultados justificaram o lançamento de um fato de treino unissexo na coleção de primavera de 2021.

 

Carolina Patrocínio a vestir White Deer
(Foto: DR)

Os dados do setor têxtil em Portugal também são inequívocos. As exportações de vestuário de tecido (à partida, roupa mais formal) tiveram uma descida de 26% em 2020 face ao ano anterior, de acordo com números da ATP. O que equivale a exportações no valor de 733,3 milhões de euros. Já as exportações de vestuário em malha, associado a um estilo mais informal, registaram uma queda menor, de 14%, o que ainda assim gerou 1 852,6 milhões de euros.

Cliente exige, mercado adapta-se

Apesar de ser advogada de profissão, Cláudia Costa, de 30 anos, conhece de perto o negócio do vestuário. “Sempre foi uma paixão e queria avançar há muito tempo. Não tinha nada a ver com a minha área de formação, mas a minha família sempre esteve ligada ao ramo têxtil.” Nos primeiros meses de pandemia, estava Cláudia em lay-off da ocupação principal, quando deu vida à claïm. Em abril de 2020, a marca lançou apenas duas t-shirts. Na primeira coleção primavera-verão, a aposta foi feita também nos linhos e nos vestidos, “numa ótica mais otimista” de que a pandemia iria acabar brevemente. Porém, “as clientes começaram a pedir artigos mais desportivos”.

Em 2021, e já com as temperaturas a subir, a responsável da claïm, uma marca essencialmente digital com parcerias em lojas físicas em Braga e na Póvoa de Varzim, concentrou-se nos fatos de treino, nas sweatshirts e nas t-shirts. “A cliente opta por uma peça confortável, mas há quem conjugue os tracksuits [fatos de treino] com combinações arrojadas”, refere Cláudia Costa.

Cláudia Costa apostou na roupa confortável na coleção da claïm, após receber pedidos das clientes nas redes sociais
(Foto: DR)

Para Joana Bourbon, todas as marcas, desde o “fast fashion” (produção massiva de roupa) ao “high fashion” (alta-costura), perceberam que os “básicos tinham procura” e o “novo estilo de vida exigia roupa confortável”.

As roupas confortáveis entraram nas coleções de pequenas e grandes marcas, mas a professora da Escola de Moda do Porto antecipa outras revoluções. “Vai haver um grupo que vai querer comprar menos, com mais qualidade e ser mais sustentável; outro grupo aprendeu a ser confortável e vai continuar; e depois haverá aqueles que vão estar eufóricos e querem ser exuberantes”, prevê. Como em tudo na vida, quem não se adaptar pode ficar pelo caminho, mas a nova realidade poderá ser propícia à criação de novas marcas, segundo Joana Bourbon. “É um equilíbrio natural.”

Roupa da coleção da claïm,
(Foto: DR)

A White Deer, a Mi.KÁ e a claïm não descartam os ditos fatos de treino das coleções de primavera-verão 2021, mas sabem que a fórmula não é vencedora em todas as clientes. Por essa razão, os vestidos e as blusas começaram agora a ser vendidos com conta, peso e medida. A aposta de base nas redes sociais ajudou cada uma destas marcas a perceber que o consumidor está preparado para ousar com um fato de treino. Porque antes, durante e depois de uma pandemia, nem todos os guarda-roupas se fazem de lantejoulas, rendas e lacinhos.

O “homewear” começa nos pijamas

A procura de toda a roupa prática e confortável, sobretudo para estar em casa, começa e encontra inspiração num pijama. O teletrabalho “foi o grande impulsionador para a compra de peças como leggings, sweatshirts, pijamas, robes e roupões”, confirma o El Corte Inglés. A roupa de estar em casa tornou-se “o vestuário de todos os dias” durante a pandemia.

Não é, portanto, estranho que a venda deste tipo de produtos tenha disparado e continue em alta. Cristiana Rocha, gerente da loja Anafred, no Porto, revela que, após o primeiro período de confinamento, o “que se vendeu mais foram os pijamas”. Os clientes preferem comprar uma “gama mais básica e intemporal” do que o típico pijama de algodão.

Com o país confinado, usou-se mais roupa de estar em casa e, para muitas pessoas, o pijama foi a primeira opção, mesmo em teletrabalho. Os clientes diziam a Susana Teixeira, gerente da Casa dos Pijamas, em Águeda: “Os meus pijamas estão completamente esgotados”. Apesar de fortes quebras na faturação, com as regras de restrição da pandemia, em maio de 2020, a receita nesta loja foi 20% superior face ao mês homólogo de 2019.

Além do aumento da procura de “homewear”, perspetiva-se um aumento das vendas. Mário Jorge Machado, presidente da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal, está convicto de que “o mercado está ávido de querer voltar à normalidade”. Este verão pode acontecer o mesmo que sucedeu no ano passado: “Em agosto de 2020, as exportações do setor têxtil foram melhores do que em agosto de 2019”.