Cleptomania: quando roubar é uma doença

A cleptomania implica um problema que não é habitual na maioria das doenças mentais: a componente legal e penal

Não conseguem resistir ao impulso de sair sem pagar. Não por necessidade, mas para alívio da tensão que os impele para o furto. Rara e de difícil tratamento, a cleptomania pode ser controlada.

A primeira vez foi há 16 anos. Cláudia – chamemos-lhe assim – estava com sede e sem cigarros. Parou na estação de serviço, a caminho de casa, depois de um dia de trabalho que se prolongou até tarde. Foi, então, já dentro da loja, que aquele impulso desconhecido a atingiu de forma intensa e, num rompante, fez o gesto rápido e impensado. Dirigiu-se à caixa, pagou o tabaco e a garrafa de água. O pequeno chocolate tirado da prateleira, esse, ia bem escondido na mala.

A empresária de Vila Nova de Gaia, hoje com 56 anos, recorda que, depois disso, quando entrou no carro, tinha o coração a bater depressa e a respiração alterada. “Uma sensação nova, que nunca tinha experimentado, inundou-me. Um misto de excitação, prazer e culpa. Mas a culpa não me inibiu de comer o chocolate e fumar de seguida. Lembro-me de que nessa noite nem dormi bem, de tão empolgada que estava.”

Passou anos nesta rotina. Sempre que saía do trabalho mais tarde sentia esse desejo de ir à bomba de gasolina para voltar a tirar alguma coisa. “Normalmente, eram coisas para comer e acontecia uma a duas vezes por mês.” Conta que a ficha só lhe caiu no dia em que roubou uma peça de roupa num centro comercial. As sensações foram as mesmas, mas sentiu mais vergonha, mais culpa e mais medo de ser apanhada. “Passei a dar por mim no trabalho, e em casa, a antecipar a adrenalina que iria sentir na próxima vez que tirasse alguma coisa. E onde. Chegava até a ter uma certa excitação sexual. Comecei a ficar obcecada. Quase como se fosse uma droga.”

Resolveu procurar ajuda. Encheu-se de coragem e, anos depois de o problema ter começado, deu por si, finalmente, sentada num consultório de psicoterapia. Na cadeira do outro lado, estava Ricardo João Teixeira. Segundo o psicólogo clínico e psicoterapeuta cognitivo-comportamental, esta demora é habitual. “Por medo, vergonha e embaraço, as pessoas com esta perturbação demoram muitos anos a procurar ajuda profissional, o que contribui, claramente, para a cronicidade do problema e para o seu impacto.” Esclarece que a cleptomania é uma perturbação rara, cuja prevalência é estimada entre 0,3 e 0,6% da população, sendo definida como “uma incapacidade recorrente para resistir ao impulso de furtar, classificada [no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais – DSM-5] na secção das perturbações disruptivas, do controlo dos impulsos e do comportamento”.

Não foi difícil o diagnóstico de Cláudia. Há um conjunto de fatores que distinguem facilmente a cleptomania do furto comum e eles estavam todos presentes. O primeiro, e mais evidente, é que o furto vulgar é um ato deliberado quase sempre motivado pelo valor ou utilidade do objeto. Cláudia, uma empresária bem-sucedida, furtava guloseimas de 75 cêntimos. Depois, havia as sensações presentes, também necessárias para o diagnóstico. “Nomeadamente, um sentimento de tensão aumentada, imediatamente antes da realização do furto, e uma sensação de prazer, satisfação ou alívio no momento.” Excluído ainda o furto com outras motivações, como a vingança ou na sequência de um delírio, sobrava a cleptomania.

Mais frequente na mulher

Pelo consultório do psiquiatra Cláudio Moraes Sarmento também já passaram alguns casos de cleptomania. Em comum, a imensa vergonha acerca do que traziam para contar. “São maioritariamente mulheres, que vêm após pressão da família ou que só depois de outro pretexto de consulta revelam a cleptomania”, revela o psiquiatra.

Sobre esta condição, o médico explica que “se sabe que pode aparecer desde a infância e até à idade adulta; que a frequência é cerca de três vezes maior na mulher do que no homem; que pode surgir associada à depressão e ansiedade”. Já a origem, não é clara. “Existe a hipótese de disfunção serotoninérgica no córtex pré-frontal ventromedial e há também relatos de casos de lesões em circuitos cerebrais orbitofrontais subcortical que poderão ser a causa.” Mas são apenas hipóteses. Talvez por isso, as opções farmacológicas são limitadas. “Não há medicação aprovada pela FDA [Food and Drug Administration], o tratamento passa por medicação ansiolítica e antidepressiva para controlo de sintomas associados e psicoterapia, de grupo ou individual”, elucida o psiquiatra. Há também alguns estudos que usam outro tipo de medicamentos, como antiepiléticos e estabilizadores de humor, que o psiquiatra classifica como “promissores”.

No campo da psicoterapia, a literatura científica aponta a terapia cognitivo-comportamental (TCC) como a melhor abordagem, defende Ricardo João Teixeira. O psicoterapeuta considera que “não existe propriamente um manual padronizado de psicoterapia para perturbações do controlo de impulsos”, nomeadamente cleptomania, mas que há protocolos de tratamento da TCC que, sempre adaptados ao paciente, fazem uso de técnicas eficazes tanto no tratamento, como na gestão de recaídas.

Como exemplos dessas técnicas, muitas vezes multimodais, indica a exposição com prevenção de resposta, que consiste em confrontar, gradualmente, a pessoa com a situação, mas certificando-se de que não irá agir, ou a sensibilização encoberta, em que o paciente imagina e descreve detalhadamente o comportamento/problema emparelhado com imagens aversivas e desagradáveis. Há também a terapia aversiva, em que o doente é exposto a um estímulo desagradável enquanto pensa no comportamento que quer eliminar. “O processo terapêutico pode durar alguns meses. Depende muito da história e duração da perturbação, das comorbilidades, faixa etária do paciente, fatores precipitantes e de manutenção, personalidade, e das duas componentes fundamentais: intensidade e frequência dos sintomas”, exemplifica o psicoterapeuta. Se não for tratada, a condição torna-se crónica, mas também há boas razões para ter esperança. Muitos pacientes, “com tratamento combinado de psicoterapia e medicação, apresentam uma remissão muito significativa ou até total dos sintomas”.

Cláudia, fez medicação, após consultar também um psiquiatra, e também um trabalho de psicoterapia que envolveu algumas destas técnicas. Mas aquilo que refere como mais valioso foi ser ensinada a distinguir uma reação de uma resposta. “Aprendi a aceitar que ter um problema de impulsos não me define como pessoa. E que há um ‘tempo de latência’ que distingue a reação – mais rápida e impulsiva – da resposta.” E é na resposta que escolhe ter, apesar da reação que não controla, que encontra o seu espaço de livre-arbítrio.

Doentes e inimputáveis?

A cleptomania implica um problema que não é habitual na maioria das doenças mentais: a componente legal e penal. Afinal, a doença define-se pelo furto, um crime contra o património. Para bens cujo valor não ascenda os cinco mil euros, “a moldura penal prevista é de pena de prisão até três anos ou pena de multa”, especifica Daniel Torres Gonçalves. O advogado explica que, nestas situações, em que o bem é de valor baixo, se trata de um crime semipúblico. “Isto é, para que o processo seja iniciado, é necessária a apresentação de queixa, sendo esta a única intervenção obrigatória do lesado.” No entanto, se os bens subtraídos foram recuperados de imediato – por exemplo pelo proprietário da loja ou segurança do espaço comercial -, o crime passa a ser um crime particular. “O processo só avançará se o lesado, além de apresentar a queixa, vier a deduzir acusação particular, o que ocorre no final do inquérito. Isto significa que o andamento do processo depende de uma maior intervenção do ofendido, sendo maior a probabilidade de acabar por ficar pelo caminho.”

Uma parte muito significativa dos casos de furtos menores não chega a julgamento. E, quando isso acontece, por vezes, sobrevém o caricato: em 2007, uma idosa de 76 anos foi julgada por, alegadamente, ter furtado um creme de 3,99 euros num supermercado Lidl. Depois de muito tempo e dinheiro gastos – as três sessões, ao longo de um mês, ocuparam tempo a um juiz, uma procuradora, uma funcionária judicial e um advogado oficioso -, acabou por ser absolvida, após o próprio supermercado ter dado o dito por não dito e ter apresentado um talão em como a cliente, afinal, tinha pago o produto.

Sendo a cleptomania uma patologia, a questão da responsabilidade não é linear. O Código Penal Português determina no seu artigo n.º 20º que “é inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação”. O cleptomaníaco conhece a ilicitude do seu ato, mas será capaz “de se determinar de acordo com essa avaliação”? O advogado Daniel Torres Gonçalves entende que a resposta pode ser não. Admite que a jurisprudência portuguesa não é rica em casos que considerem esta patologia, mas entende que, se estiver na origem do crime, quem o praticou “pode procurar provar que o comportamento se ficou a dever à patologia, que não poderia controlar o comportamento”. Pelo que, “conseguindo demonstrá-lo, será considerado inimputável, sendo-lhe aplicável uma medida de segurança em vez de uma pena”.

Cláudia teve sorte. Apesar de na pior fase da doença chegar a furtar cinco ou seis vezes por semana – chocolates, perfumes, roupa interior, isqueiros, canetas – nunca foi apanhada. Tarde, mas teve a coragem de procurar ajuda. Depois de meses de medicação e anos de terapia, conseguiu estabilizar o seu problema de controlo de impulsos.