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Cinquenta anos

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Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Ouço as conversas nas esplanadas e fico convencido de que ser jovem agora, no que ao uso do corpo diz respeito, é uma glória infinita.

Era uma porcaria entrar nos filmes pornográficos do Sá da Bandeira porque aquilo cheirava mal e os velhos não podiam ver rapazes de vinte anos. Metiam medo. A única vez que entrei, não durei ali mais do que uns minutos. Cismei de não sentar em cadeira nenhuma porque pareciam molhadas e toda a gente andava de um lado para o outro como na praça a ginasticar as pernas. Tudo muito escuro e cheio de cortinas vermelhas nas portas para que a luz exterior não queimasse a imagem.

Tenho a impressão de que o Porto destas urgentes decadências acabou. Não vejo putas em lado nenhum. Estou convencido de que as aplicações de telefone para encontros descomplicaram a vida aos famintos. Por toda a parte, todas as pessoas são manifestos de desejo. Não é mais necessária a criação do universo paralelo dos pervertidos. A perversão é livre.

Ouço as conversas nas esplanadas e fico convencido de que ser jovem agora, no que ao uso do corpo diz respeito, é uma glória infinita. Claro que estão desgraçados os projectos de grandes famílias. Não admira que as cidades virem aglomerados de apartamentos de apenas uma assoalhada. Custam os compromissos. Assustam. A alegria contemporânea é em jeito de colibri, aos beijinhos indiscriminados pela multidão. O amor, afinal, é cada vez mais poligâmico, desregrado na amplitude de todas as acolhidas e rejeições. A cidade é mais e mais o laboratório de uma fisicalidade fugaz e exasperada no combate às carências.

Ontem, completei cinquenta anos de idade e estou sobretudo perplexo. Julgo que o Governo devia telefonar a quem chega a esta idade para congratular e informar acerca do que os cientistas sabem acerca da sobrevivência a partir de agora. Porque eu estou no espanto. Tudo me parece de outro tempo que não o meu, porque tudo me apressa a envelhecer. Ainda que o corpo ainda se mantenha debaixo de tonificantes e hidratantes, penteados e roupas de corte gracioso, a tecnologia e os costumes parecem obrigar-me à velhice, à coisa caduca de nunca estarmos atempados com o que há, acontece, viraliza e a juventude adora. Estamos sempre sem saber aquilo que, afinal, a juventude é ou faz.

Vou almoçar uma francesinha e deixar-me poligâmico ao sol ainda bom do outono que começa. Enquanto isso, leio a biografia de Dante e prometo aos amigos jantares que nem tenho condições de fazer. A minha casa está para obras, nem cozinha tem. Calha bem. Mais espaço sobra para dançar ao embalo malcriado dos engates. Toda a gente me diz para esquecer a pandemia. A pandemia vai agora ser por dentro das cabeças. Não esquecerei, mas é verdade que já me falta deitar o corpo ao Mundo. Ir buscá-lo mais tarde, como quem chama o cão que correu a tarde inteira atrás dos pardais. Que a vida não pode ser toda adiada. E amar foi sempre uma travessia alegre pela orla do abismo. Importa sobretudo que venham mais cinquenta com a mesma impressão de maravilha com que sobro depois de tanta alegria e tristeza.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)