Valter Hugo Mãe

Cem anos de Matilde Rosa Araújo


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

A mais cordial das mulheres era de facto uma guerreira. Servia-se de sua candura para propor o debate frontal, e fazia-o através da poética elegante e tão aparentemente simples do seu verso e dos seus contos.

Há um poema de Matilde Rosa Araújo que é só uma quadra pequena, uma coisa tão pouca de texto mas que, ainda assim, carrega a imensidão de sua ternura e humanidade. Chama-se “Quadra sozinha” e diz: “Meninas pobres, tão pobres, / São tão pobres, que ao vê-las, / Meus olhos, que são de cobre, / Têm a luz das estrelas!”. Esta quadra é um programa inteiro, um pacto assumido com o mundo de miseráveis em que Portugal estava imerso ao tempo da Ditadura. Este programa de Matilde Rosa Araújo era um compromisso com as crianças e com uma incansável vontade de tornar o Mundo melhor. Quando a pobreza e a exclusão se faziam normalidade, esta mulher, que nunca teve filhos, fez da sua vida a mais doce revolução, marcando presença em todas as escolas possíveis, alertando para a necessidade de alfabetizar as crianças e de lhes permitir o sonho, exigindo dignidade e oportunidade.

A sua conduta humaníssima devia merecer-lhe uma memória exuberante, quanto mais não seja por ser sem muita questão a autora da obra para a infância de papel mais relevante e genuíno no Portugal amordaçado de outrora. A Matilde Rosa Araújo foi de verdade a autora do real, atempada com o Mundo mas cheia de maravilhas, bravamente lidando com a urgência de explicar a tristeza para a sanar. Não há alienação na obra desta autora, há consciência. As crianças são convidadas à sensibilidade, e não ao ego.

Exactamente hoje, 20 de Junho, passam cem anos desde o nascimento de Matilde Rosa Araújo. O país não é bom de lembrar. Custa-me que lembre mal alguém que traduziu com coragem o que foi feito do espírito humano em tempo de empobrecimento e vasto silenciamento. A mais cordial das mulheres era de facto uma guerreira. Servia-se de sua candura para propor o debate frontal, e fazia-o através da poética elegante e tão aparentemente simples do seu verso e dos seus contos. Quase ninguém pôde ser tão límpido no modo de dizer, tão económico com a complexa máscara do Mundo.

Eu não tive livros em criança, não poderia haver lido a Matilde Rosa Araújo quando mais haveria de precisar, mas pude entender mais tarde a dimensão esplendorosa da sua obra e, graças à grande Antónia Serra, directora do Coro dos Meninos Cantores da Trofa, ainda conheci pessoalmente a autora, que se sentava entre nós com a graça que esperamos de uma fada madrinha. Eu já me impressionei com muita gente e vou continuar a impressionar, porque amo pessoas e propendo a ver que tudo é milagre, mas não senti mais aquela bênção só de estar ao lado. Só de estar ao lado de Matilde Rosa Araújo me pareceu abrir-se um abraço contra chuva e frio, contra tristeza e fome. Estava a Adélia Carvalho comigo, outra escritora linda para as crianças, e só dizíamos como era a mais delicada mulher essa que, afinal, combatera impiedosamente para que nós, a nossa geração, nos víssemos um pouco mais a par, mais livres.

Hoje, especialmente nos poemas mais melancólicos, encontro um grito gentil que ainda é preciso gritar. Algo que faz resistir. Amar sempre para resistir. É o que significam os cem anos de Matilde Rosa Araújo: uma lição de amor mesmo no pior dos tempos. Uma incondicional imposição do amor como arma: “Dorme minha filha triste, / Meu farrapo de menina, / Dorme, porque eu sou a nuvem / Que te serve de cortina”.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)