Caso Britney. Em Portugal seria possível?

Há 13 anos que a cantora americana vive sob a tutela do pai, sem poder voltar a casar ou ter mais filhos, sem poder receber quem quer ou fazer algo tão simples como escolher a cor dos armários que tem em casa. No nosso país, qual é o enquadramento legal, quem pode requerer a tutela de outrem, quem avalia, quem decide?

Britney Spears não pode casar com o atual companheiro, não pode voltar a ter filhos, não pode escolher as suas amizades livremente. Britney Spears não pode mexer na fortuna que tem no banco, não pode decidir quando e se quer atuar, não pode recusar tomar a medicação que lhe dão. Britney Spears não pode tomar café, não pode arranjar as unhas sem pedir autorização ao pai, não pode sequer escolher a cor dos armários de casa. Eis os contornos mais sórdidos do processo de tutela que, há 13 anos, a tem feito viver numa espécie de colete de forças controlado pelo pai. “Só quero a minha vida de volta”, suspirou, num emocionado testemunho telefónico dirigido a Brenda Penny, juíza do Tribunal Superior de Los Angeles, Estados Unidos. Confessou-se revoltada, deprimida, “traumatizada” e cansada de ser “escrava”. “Choro todos os dias.” Entre os muitos pormenores de uma tutela que rotula de “abusiva”, a cantora americana, de 39 anos, chegou a dizer que o pai e os restantes responsáveis pela muralha que a rodeia deviam estar presos. Revelações surreais que nos arrastam para uma pergunta incontornável: como é possível?

Pop, álcool, drogas

Percebê-lo implica recuar até aos primórdios do sucesso da artista, ali na viragem da década de 1990 para os anos 2000. Em 1999, então com 17 anos, lança “Baby one more time”, com o tema que deu nome ao álbum e que seria considerado pela revista “Rolling Stone” o melhor single de estreia de todos os tempos. No ano seguinte, avança com “Oops!… I did it again”, que só na primeira semana vendeu 1,3 milhões de cópias. Por esta altura, Britney é já um fenómeno de popularidade global, a viver o lado perverso da fama.

Os paparazzi não a largam, os jornalistas das revistas cor-de-rosa massacram-na com todo o tipo de perguntas indiscretas, as relações que mantém (primeiro com o músico Justin Timberlake, depois com o dançarino e rapper Kevin Federline, com quem tem dois filhos) são devassadas até ao limite. Em 2006, chegam os primeiros sinais de alerta. Rapa o cabelo, entra numa espiral de consumo abusivo de álcool e drogas, bate no carro de um paparazzi com um guarda-chuva, chega a ser fotografada a conduzir com o filho Sean, de apenas um ano, no colo.

A artista recebeu várias distinções ao longo da carreira. Em 2011, já depois de ter sido interditada judicialmente, foi galardoada nos MTV Video Music Awards com os prémios para o Melhor Video Pop e o Prémio Michael Jackson de Vanguarda em vídeo
(Foto: Frederic J. Brown/AFP)

Os desvarios saem-lhe caro. A guarda das crianças passa para o pai, de quem a cantora já se tinha separado, ficando apenas com direito a visitas supervisionadas. Mas a vida da princesa pop ainda não tinha batido no fundo. Em 2008, recusa entregar os filhos ao pai. A polícia é chamada e Britney é levada de ambulância para o hospital, por estar sob o efeito de substâncias ilícitas. Uma semana depois, tem alta, mas os pais não se conformam. Garantindo estar preocupados com a vulnerabilidade de “uma criança adulta em plena crise de saúde mental”, apelam aos tribunais para que evitem uma tragédia. Após uns dias, numa aparatosa operação, é levada para avaliação psiquiátrica e o pai é nomeado tutor provisório, passando os bens da artista a ser geridos em conjunto pelo progenitor e um advogado. Meses depois, a sentença torna-se definitiva. Tão definitiva que dura até aos dias de hoje.

Britney continua na ribalta, ainda assim. Lança álbuns, faz tournées pelo Mundo, dá entrevistas sem nunca apontar diretamente o dedo ao pai. Mas os fãs desconfiam. Em 2009, nasce a hashtag #FreeBritney. Seria, no entanto, preciso esperar mais de uma década para o caso ter desenvolvimentos relevantes. Depois de anos a garantir que tudo estaria bem, pede, por fim, ao tribunal que a decisão da tutela seja revista, no sentido de o pai deixar de ser seu tutor. Estávamos em março de 2021. O pedido é recusado, com o tribunal a exigir um pedido formal para anular o acordo. O máximo que a estrela da pop consegue é que uma firma de gestão de fortunas fique como cocuradora do seu património (avaliado em 50 milhões de euros), a par do pai.

A princesa da música pop a atuar no Madison Square Garden, em Nova Iorque, durante os MTV Video Music Awards de 2016. Este ano anunciou, numa publicação no Instagram, que não fará mais espetáculos enquanto estiver sob o jugo parental
(Foto: Jewel Samad/AFP)

Já em julho, depois do emocionado testemunho ao tribunal, é finalmente autorizada a escolher o seu próprio advogado. Mas a missão de livrar Britney da tutela do pai pode não ser tão simples quanto isso. “Quando alguém fica sob tutela é difícil sair, porque o tribunal não quer retirar essas proteções e arriscar que haja aproveitamento de quem pode não ser capaz de decidir”, explicou à Reuters Christopher Melcher, advogado especializado em Direito de Família americano.

Como é em Portugal?

No nosso país vigora, desde fevereiro de 2019, o Regime do Maior Acompanhado, destinado a todos aqueles que “por razões de saúde, deficiência ou pelo seu comportamento” (alcoolismo, toxicodependência, vício do jogo, etc.) se encontrem impossibilitados de “exercer pessoal, plena e conscientemente os seus direitos ou de cumprir os seus deveres”. Ou seja, aqueles que “não podem, ou não conseguem, sem apoio, tratar dos assuntos relacionados com a sua vida”, simplifica o advogado Nuno Namora, especializado em Direito da Família. A ideia é, pois, proteger quem se encontra nessa situação, procurando evitar que fiquem reféns da vontade abusiva de terceiros. Note-se que este regime pode também aplicar-se numa situação transitória, por exemplo, no caso de alguém que tem um acidente e fica em coma.

Amordaçada nos seus direitos é como se sente Britney, impedida de gerir a sua fortuna, casar, ter filhos ou recusar tomar a medicação. Só este ano foi autorizada a escolher o seu próprio advogado para a representar numa guerra judicial que se adivinha longa
(Foto: Etienne Laurent/EPA)

E quem pode requerer este acompanhamento? Há várias possibilidades. A própria pessoa (embora não seja comum), um herdeiro, o cônjuge ou qualquer parente sucessível. O acompanhamento pode ainda ser requerido pelo Ministério Público (MP). Na verdade, é isso que acontece “em cerca de 90% dos casos”, estima António Ventinhas, magistrado deste órgão judicial. “Nessas situações, o MP abre um dossiê com vista a intentar uma ação, no âmbito do qual vai recolher elementos, designadamente de natureza médica, mas também junto dos familiares da pessoa em causa.”

As perícias médico-legais assumem neste processo um papel fundamental. Teresa Carvalhão, que já fez várias perícias neste contexto, resume o tipo de informação que deve constar dos relatórios. “Primeiro, será sempre preciso fazer uma avaliação em relação ao estado mental da pessoa. Avaliar a orientação, a atenção, o discurso, as memórias, possível alteração da linha psicótica, entre outras.” Mas das conclusões do documento devem constar uma série de outros detalhes, que vão ser preponderantes para a decisão do juiz. “Qual a evolução esperada da patologia em causa, a data de início, se tem cura, se a pessoa tem ou não capacidade de governar a sua vida e os seus bens, se precisa de apoio de terceiros para a higiene, para a alimentação, para as idas às consultas ou para a toma de medicamentos. Se consegue fazer cálculos, se é capaz de pagar as faturas da água ou da luz, tudo isso.”

Teresa Carvalhão, psiquiatra no Centro Hospitalar da Cova da Beira, conta ainda que a maior parte dos casos que requerem este tipo de perícias se prendem com demências. “As segundas situações mais frequentes são as que relacionam com as perturbações do desenvolvimento intelectual. Depois há outros casos, como as esquizofrenias, por exemplo.” Já as situações relacionadas com o alcoolismo e a dependência do consumo de drogas que chegam a este ponto são menos frequentes.

Elaborada a perícia, a decisão fica então nas mãos do tribunal, a quem compete nomear o acompanhante (que pode ser o cônjuge, um dos filhos maiores, os avós ou mesmo numa pessoa da instituição que o acompanhado frequente) e discriminar os atos que este pode ou não livremente realizar: por exemplo, se pode votar, se pode efetuar o testamento, se pode casar, se pode adotar, se pode perfilhar, se pode comprar e vender imóveis. Do veredicto do tribunal terá de constar ainda a informação sobre a data da próxima revisão da sentença, sendo que, no limite, tem de ser reapreciada de cinco em cinco anos. Em caso de incapacidade total do indivíduo para realizar as tarefas do dia a dia, o juiz poderá optar por um regime de representação geral – semelhante ao que foi decretado no caso da tutela de Britney Spears -, embora este seja, em Portugal, um último recurso, reservado aos “hard cases”.

Um novo paradigma

De resto, salienta Nuno Namora, “este regime tem em linha de conta que a pessoa pode, por exemplo, ter um problema que a impede de tratar de assuntos mais complicados, mas é perfeitamente capaz de cuidar do seu dia a dia, ou de continuar a votar ou a educar os seus filhos”. “Ou seja, mesmo que padeça de uma doença muito incapacitante, a sua vontade não tem de ser integralmente substituída pela de outra pessoa”, remata o advogado.

Centenas de fãs manifestam-se frente ao tribunal de Los Angeles, a 23 de junho, durante a audição da cantora. A hashtag #FreeBritney foi criada em 2009, mas foi preciso esperar mais de uma década por desenvolvimentos relevantes
(Foto: Etienne Laurent/EPA)

Esta foi precisamente a grande mudança introduzida pela lei que entrou em vigor em fevereiro de 2019. Vânia Filipe Magalhães, juíza, chama a atenção para isso mesmo. “Este é um regime que tem maior flexibilidade e amplitude face ao anterior e que visa conferir uma maior autonomia à pessoa que carece das medidas de acompanhamento. Visa proteger e não incapacitar. É uma mudança de paradigma, que surge na sequência da Convenção de Nova Iorque sobre os diretos das pessoas com deficiência.” A secretária da Direção Regional do Centro da Associação Sindical dos Juízes Portugueses assume que pode haver necessidade de restringir determinados direitos pessoais, como a própria procriação, mas que raramente o faz. “Só em situações muito limite. Porque isso acaba por reforçar ainda mais a incapacidade daquela pessoa. É uma inutilidade. A autonomização e a valorização da capacidade do acompanhado são princípios basilares deste regime.” Daí que o veredicto seja obrigatoriamente revisto de tempos a tempos. “Este não é um processo estanque, não termina com a sentença”, realça.

Pagamento do acompanhante

Este é precisamente um dos pontos que nos leva a crer que um regime de tutela como aquele a que Britney Spears está sujeita há 13 anos dificilmente poderia vingar em Portugal. “A situação seria reavaliada de cinco em cinco anos e sempre que, nomeadamente a pedido da cantora, algo ocorrido o justificasse”, aponta Nuno Namora, lembrando ainda que a artista poderia, com motivo fundamentado, “requerer diretamente ao tribunal a substituição do acompanhante”. Mas, eventualmente, o ponto mais relevante é que, se o caso ocorresse cá, ao abrigo do novo regime, os atos a praticar pelo acompanhante seriam apenas “os julgados estritamente necessários para o bem-estar” do acompanhado. E nunca um regime de representação geral.

Acrescente-se uma última diferença, também significativa. É que, em Portugal, as funções de acompanhante são exercidas gratuitamente. O acompanhante só é reembolsado de despesas que tenha efetuado, estando obrigado a apresentar contas ao tribunal. Tanto que, por vezes, a dificuldade sentida pelos tribunais é não conseguir encontrar quem queira ser acompanhante. “É um drama”, lamenta a juíza Vânia Magalhães. Bem distinto é o caso de Jamie Spears, pai de Britney. Segundo a imprensa americana, o cargo de tutor rende-lhe a módica quantia de 16 mil dólares por mês. Qualquer coisa como 13 500 euros.