Canábis para fins recreativos. Está aberto o debate e não será tranquilo

O Bloco de Esquerda insiste no consumo seguro e no combate ao tráfico. A Iniciativa Liberal defende um mercado livre e respeito pelas escolhas individuais. A liberalização da substância para uso pessoal voltou ao Parlamento. O assunto não é consensual e a discussão ainda vai no adro.

O Bloco de Esquerda (BE) acredita que até ao final da legislatura haverá consenso para legalizar a canábis para uso pessoal e recreativo. A Iniciativa Liberal (IL) também defende a legalização. Dois projetos de lei aproximam um partido de Esquerda e outro de Direita, entram no Parlamento no mesmo dia, baixam à comissão sem votação e os requerimentos são aprovados por unanimidade. Há possibilidade de alterações na especialidade e de assegurar um acordo sem o chumbo das propostas iniciais. Está tudo em aberto num debate apaixonado que aponta o dedo às políticas proibitivas e à guerra às drogas.

Portugal é o segundo país da Europa que mais consome canábis de forma regular, superado apenas pela Espanha. O Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência revela que três em cada cem portugueses consomem canábis pelo menos 20 vezes por mês, percentagem que sobe 4,16% na faixa etária dos 15 aos 34 anos, segundo o “Relatório europeu sobre drogas 2021: tendências e evoluções”, conhecido no mesmo dia em que o BE e a IL explanaram as suas ideias. Analisando as duas propostas, é mais aquilo que os une do que aquilo que os separa.

“A política proibicionista como forma de abordar a questão das drogas já provou ter falhado.” O BE volta a explicar os seus motivos no projeto de lei. A repressão não reduz o consumo de substâncias não legais, a qualidade das drogas é manipulada com riscos para a saúde de quem consome, há um mercado negro alimentado pelo crime organizado, pelo tráfico clandestino. “Manter a canábis na ilegalidade é deixar a política de drogas nas mãos de quem não tem nenhuma preocupação com o interesse público ou com a saúde pública. Legalizar e regulamentar o acesso e o consumo é, isso sim, ter uma política responsável, que defende o interesse da sociedade e promove a saúde e a segurança”, sublinha o Bloco.

A IL fala também num “vigoroso mercado negro” e no “fracasso do paternalismo proibicionista”. A proibição não eliminou as drogas leves, consumiu recursos públicos e sobrecarregou polícias e tribunais. “Para os consumidores, o proibicionismo resultou em menos segurança e menos informação sobre a compra e o consumo, expondo-os ao submundo criminoso, às drogas pesadas e à canábis adulterada. Em consequência, sofreu também a qualidade da assistência e a eficácia do tratamento da dependência destas substâncias”, acrescenta a IL, que defende a legalização da atividade económica da canábis com enquadramento adequado, segurança na compra, proteção do consumidor.

João Goulão, diretor-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), não está surpreendido com as propostas, expectáveis depois da aprovação da canábis para fins medicinais, que “é uma outra questão”, observa. A canábis está, garante, “cada vez mais potente” e os produtos com esta substância “não são inócuos, longe disso”.

A saúde, acima de tudo. “Dirijo um serviço de saúde e a nossa preocupação é qual será a forma mais eficiente de controlar, para a saúde individual e coletiva, o consumo de canábis.” O que chega de países que legalizaram o produto para fins recreativos, sobretudo do Uruguai e do Canadá, precisa de ser pensado, analisado, bem digerido. Os dados de experiências recentes de regulação do mercado, aponta, “têm grandes vieses que decorrem do ponto de vista dos investigadores”. “Temos dificuldades em termos abordagens desapaixonadas sobre o uso da canábis para fins recreativos.” É preferível esperar, portanto. “Aguardar mais algum tempo por conclusões, por dados, que produzam maiores evidências”, considera o diretor do SICAD, para quem a lei, por enquanto, está bem como está.

O BE defende a legalização responsável e segura e vê vantagens nos modelos internacionais que optaram por esse caminho. A IL foca-se na questão de liberdade pessoal porque, sustenta, “não cabe ao poder político substituir-se de forma paternalista à autonomia individual”. Ambos admitem que se trata de uma droga e o abuso pode ter consequências negativas. A IL puxa do tabaco e do álcool, substâncias legais. “A canábis não é categoricamente mais perigosa para a saúde do que estas substâncias. Não obstante, a canábis está sujeita a legislação restritiva, continuando a ser uma substância clandestina.” E faz questão de realçar, como escreve no seu projeto de lei, que o consumo “não está correlacionado com fenómenos de comportamentos violentos, perturbação da ordem pública, violência doméstica”.

Cultivo pessoal e locais de venda

BE e IL concordam que a venda não deve ser permitida a menores de 18 anos e a quem tenha anomalia psíquica. A venda e a posse por cada indivíduo não podem exceder a dose média individual calculada para 30 dias, como a lei prevê. E os rótulos das embalagens devem conter informação sobre o conteúdo do produto e eventuais efeitos secundários e consequências para a saúde. O BE estabelece a possibilidade de cultivo para consumo pessoal a um limite de cinco plantas por habitação própria e permanente, a IL estende o limite máximo para seis plantas, com sementes compradas em estabelecimentos autorizados para o efeito. Para o BE, os estabelecimentos de venda de canábis devem estar a pelo menos 500 metros de jardins de infância e escolas básicas e secundárias, a IL reduz a distância para 300 metros.

Bruno Maia, médico neurologista no Hospital de São José, em Lisboa, tem vindo a defender a legalização da canábis para fins recreativos e concorda com o projeto do BE. Retirava apenas o Infarmed deste processo, uma vez que a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária já está envolvida. Em seu entender, a questão é simples e é como é. “O proibicionismo não resultou. Ninguém conseguiu acabar com o consumo de canábis. Ponto.” E das duas uma: ou continua tudo como está ou regula-se o consumo para fins recreativos. “Ou a questão fica nas mãos de traficantes ou então temos uma estrutura legal.” Ou não se sabe de onde vem ou há mecanismos de regulamentação que controlem o processo do cultivo ao consumo para evitar a manipulação das plantas e controlar a qualidade.

João Goulão lança várias perguntas. Será tudo mais eficaz num mercado regulado? Como será garantida a qualidade dos produtos? E em que circunstâncias? Um estatuto semelhante ao tabaco e ao álcool condicionará o consumo de canábis? Mais ou menos consumo num contexto de legalidade? “Seremos mais eficazes a contrariar esses problemas num contexto de legalização? O que vai acontecer com o mercado paralelo?” Produtores e distribuidores não farão pressão sobre o mercado? E não haverá também pressão sobre os consumidores mais jovens? E os surtos psicóticos? E os efeitos na condução? Muitas dúvidas, uma certeza: “A canábis é uma droga com riscos muito sérios e significativos para a saúde mental dos utilizadores”, diz o diretor do SICAD.

Para Bruno Maia, o discurso da guerra às drogas, da forma como era construído nos anos 80 e 90 do século passado, não faz sentido agora. O neurologista lembra os estudos científicos que mostram que a canábis “não aumenta o risco de adição para outras drogas”. Não é uma porta de entrada para outras substâncias. “A guerra às drogas não trouxe nada de positivo para o Mundo. Está na altura de mudar de paradigma.” Até porque a descriminalização do consumo de drogas, em que Portugal foi pioneiro, mostrou “resultados incríveis”. E enumera: menos mortes por overdose, menos infeções por HIV, menos consumo de várias drogas. “Consumos problemáticos existem em qualquer substância”, salienta.

Estado regula e aplica impostos

O BE propõe a interdição do consumo em locais de trabalho, em lugares fechados de frequência pública, em locais destinados a crianças e jovens fechados ou ao ar livre, nos transportes públicos, veículos de aluguer e turísticos, táxis e veículos de transportes de doentes. Para o BE, o Estado, como regulador de todo o circuito de cultivo, produção e distribuição, deve estabelecer um imposto especial sobre a venda de produtos de canábis para fins recreativos, e definir um preço recomendado por grama. No preço, a IL é mais liberal, podendo ser estabelecido livremente pelo comerciante, nos termos da legislação sobre a matéria. E quer a proibição da venda em estabelecimentos de ensino e de saúde, equipamentos desportivos, equipamentos lúdicos destinados a crianças e famílias, interfaces de transportes coletivos, estações de serviço ou equiparadas.

Para o BE, a receita do imposto deve ser repartida: 50% para a promoção da redução de consumo de substâncias psicoativas, comportamentos aditivos e diminuição de dependências, e 50% em investimento em funções sociais do Estado, nomeadamente no Serviço Nacional de Saúde.

A Iniciativa Liberal quer os impostos aplicados no desenvolvimento de políticas de prevenção, redução de riscos e tratamento de dependências. Nas coimas, há convergência. Quem não tiver autorização para o comércio é punido com pena de prisão de quatro a 12 anos, que pode diminuir para uma pena até quatro anos ou multa até 600 dias. Quanto à venda de outros produtos não autorizados, é punível com multas de 2 500 a 25 mil euros.

Ordens estão contra

Em 2019, a Ordem dos Farmacêuticos (OF) divulgava um parecer, com bibliografia e anexos sobre os efeitos cancerígenos e aditivos da canábis, dias antes das propostas do BE e PAN serem apresentadas no Parlamento, e chumbadas pelo PCP, PSD e CDS e com PS dividido. Referia que as iniciativas legislativas assentavam em “pressupostos incorretos e generalistas” e que a literatura sobre experiências internacionais idênticas demonstrava “um agravamento significativo dos fatores relacionados com o tráfico e com a saúde pública”.

Dois anos depois, a posição mantém-se, assegura Ana Paula Martins, bastonária da OF, que recorda os fundamentos de natureza técnica e científica, sem avaliações ideológicas, apresentados na altura. “Tememos, nesta fase, que os riscos de desregulamentação sejam maiores do que os benefícios, que também os há.” Diz que “é uma discussão que veio para ficar”, percebe os argumentos políticos, de regulação da qualidade e de proteção dos consumidores, mas há outras questões. “Temos sempre a dúvida se um país como Portugal, um caso de sucesso na despenalização de drogas, tem condições para operacionalizar tudo isso. Se as entidades que conduzem as políticas públicas nas áreas das dependências têm hoje condições, se o país tem recursos e o investimento necessários.” Em seu entender, não há infraestruturas que acompanhem tais pretensões. “Estes debates são importantes, mas não são os debates prioritários da sociedade no momento que vivemos”, conclui.

No parecer de 2019, a OF indicava que sociedade já estava sobrecarregada com os efeitos nefastos do tabaco e do álcool e não precisava de “mais um fardo”. E venda nas farmácias nem pensar. “São espaços de saúde, de prevenção da doença, cuja atividade em nada se coaduna com a comercialização de produtos nocivos para a saúde, como o álcool, o tabaco ou outros produtos utilizados para fins que não a promoção de saúde.”

A Ordem dos Médicos (OM) é frontalmente contra o uso da canábis para fins recreativos. O bastonário da OM, Miguel Guimarães, diz que não há justificação que sustente a liberalização que abriria um grave precedente. “Daqui a pouco, abrir-se-ia a porta à heroína, à cocaína. A canábis tem efeitos graves na saúde, não é só a pandemia que mata.”

As opiniões não rumam no mesmo sentido. Paulo Tavares, especialista em Hematologia Clínica, médico oncologista no Centro Hospitalar e Universitário da Universidade de Coimbra, defende a canábis para fins recreativos. “Há muito preconceito em relação à canábis que é das substâncias mais seguras, com um poder aditivo inferior ao do chocolate e que faz bem a muita coisa.” E acrescenta: “Tomara nós que conseguíssemos tornar os consumidores de álcool em consumidores de canábis. O país melhorava muito, por exemplo, em termos de violência doméstica”. Argumentos não faltam. Há substâncias que provocam mais dependência, como o Xanax e a cafeína. Se o álcool está no mercado, porque é que a canábis também não pode estar. E há ainda o lado do mercado. “É uma guerra da indústria farmacêutica, se toda a gente pode cultivar, não dá lucro à indústria farmacêutica.”

Regulamentar, sim, mas como deve ser, prossegue Paulo Tavares, que retira o assunto da vertente política e foca-o em decisões técnicas. Mas, se as vontades do BE e da IL tiverem expressão prática, não há dúvidas. “Seria uma maneira dos doentes terem acesso mais rapidamente à canábis.”

O uso recreativo da canábis é permitido no Uruguai, no Canadá, na África do Sul, na Geórgia, em 16 estados norte-americanos. O Uruguai foi o primeiro país a legalizar a produção, a distribuição e o uso da canábis para fins não médicos, em 2013. O Canadá foi o segundo, no final de 2018. BE e IL apresentam exemplos para fundamentar argumentos. Em 16 estados dos Estados Unidos, a canábis recreativa é permitida e, nestes casos, o BE destaca que o consumo entre jovens estagnou desde a legalização, os encargos com a justiça relacionados com o consumo caíram 80%, as acusações criminais quanto ao cultivo desceram 78,4%.

A IL recua no tempo e na História para lembrar que, depois da Segunda Guerra Mundial, o Mundo assistiu a uma vaga proibicionista, “uma nova investida legal que teve como alvo particular os descendentes de africanos, os hippies, os homossexuais, os artistas subversivos e outros ‘indesejados’”. Também por isso a IL insiste nos seus pontos. “O Estado não deve padronizar os produtos de canábis, nem as formas de os vender, limitando a criatividade e experimentação dos produtores e vendedores.” Tudo porque, em seu entender, “a cultura da canábis é uma cultura de liberdade”. Os dados estão lançados. A discussão ainda está agora a começar.