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Bordar

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Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Queremos lugares onde ponham a música da Ana Deus ou dos GNR e possamos refilar como antipáticos legítimos.

Sei bem que é culpa minha porque ouço a Olivia Belli a tocar “Night on the Balcony” e venho para o centro ver os turistas aflitos com a juventude. Estou a jeito da velhice, sem explicação para o alarve dos gestos e dos gritos, a coisa hormonal em descontrolo, a demasia de tudo, de copos nas mãos como documentos para outras identidades. Ainda não estou nada depois da pandemia. Tenho pelo corpo o cárcere inteiro. De tão habituado me penso ao fundo da casa, sem companhia, a cumprir o distanciamento com pudor de respirar. Não respiro para cima de ninguém e parece-me maravilhosamente sujo que alguém vá de boca à mostra.

Vejo as bocas das pessoas com o mesmo entusiasmado susto com que lhes veria o meio das pernas em plena Praça dos Poveiros. E falam suas línguas, que entendo aos bocados, e os lugares parecem mais estreitinhos. Passamos entre os estrangeiros como se a cidade fosse mais pequena e nos empurrasse para casa, para dentro de casa, cheios de nossos medos e pobrezas, cheios de nossa memória cada vez menos admitida na festa contínua do turismo.

Dizemos em surdina ideias para lugares de encontro que não sejam como zonas francas internacionais. Queremos lugares onde ponham a música da Ana Deus ou dos GNR e possamos refilar como antipáticos legítimos. Andamos a pedir uma estátua, em bronze de verdade, do João Gesta em frente à menina nua dos Aliados. Queremos um Gesta em tamanho real que possamos usar para as tertúlias todas quando nos deixamos à deriva. Porque gostaríamos de ter nas pessoas que amamos o ponto de encontro essencial, aquela paz que nos acomete quando o mapa diz: você está aqui, e ali é exactamente onde queremos estar.

Desço e olho sempre a montra da clássica retrosaria. Tudo ali me parece do foro da guloseima ou do brinquedo. Coisas bonitas que não sei usar. Talvez por ter deixado de ser criança, talvez por ter deixado de ser útil. Sou diante do mundo sem saber o que fazer, como fazer. Julgo que as palavras valem por gestos e adoeço por todos os poemas. Já ali comprei um pouco de linho e uma agulha de bordar. Há cada vez mais ilustradores que bordam. Tocam, depois, nos seus desenhos. Estou a ver como são os pontos. Um dia, no cárcere, farei um jacaré ou um cão, um rapaz ou uma rapariga. Alguma figura que quase se mova. Que quase fale. Que passe a ir na minha imaginação à rua, nem que à pressa. Para que não exista isso de ser sozinho.

Tenho saudades dos filmes pornográficos no Sá da Bandeira. Só entrei uma vez, mas era divertido, à saída das aulas, ver os pais dos amigos, o dono do nosso café ou o moço da loja das fotocópias esgueirando-se pelo passeio a comprar bilhete debaixo de um boné, tentando não serem reconhecidos. Demorávamos o tempo que fosse preciso para estarmos certos de que até os profes mais cheios de colarinhos acabavam por ir aos filmes. Era modo de estarmos certos de que as pessoas de bem eram também esquisitas.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)