Jorge Manuel Lopes

Bob Marley a um passo da lenda


Crítica musical, por Jorge Manuel Lopes.

Há um fascínio pelas fases de transição de músicos famosos. Daqueles cuja obra central se tornou tão familiar que resvala para os polos opostos da hagiografia e da desvalorização. E há poucos artistas tão admirados e submersos em lugares comuns quanto Bob Marley. Também por isto, merece celebração a chegada de “The Capitol session ‘73”, um álbum e um DVD com material que se imaginava perdido, uma gravação de 23 de outubro de 1973 nos estúdios da Capitol Records, em Los Angeles, perante escassa plateia.

O concerto capta Bob Marley & The Wailers a meio de uma ponte decisiva. O grupo acabara de lançar, nesse mesmo ano, os dois primeiros álbuns para a editora Island, “Catch a fire” e “Burnin’”, encetando a carreira internacional que faria de Marley estrela e referência. Além disso, a hierarquia na banda sofria ajustes. Dos três Wailers originais, Bunny Livingston abandona o barco em abril de 1973, em protesto contra a iminente digressão de estreia pelos Estados Unidos. Dois meses após esse concerto na Capitol, seria a vez de Peter Tosh partir, transformando os Wailers na banda de apoio de Bob Marley. Algo que já se vislumbra em “The Capitol session ‘73”, em que Tosh contribui apenas com duas composições, além do clássico vindouro “Get up stand up”, escrito e entoado a meias com Marley.

A oportunidade para gravar o concerto surgiu quando a tour americana dos Wailers, fazendo as primeiras partes de Sly and The Family Stone, teve morte prematura. O produtor Denny Cordell convenceu o amigo Chris Blackwell, fundador da Island, a encaminhar a banda para o estúdio em Los Angeles. Foram necessárias mais de duas décadas de escavação, levadas a cabo pelo realizador e arquivista britânico Martin Disney, para se chegar a “The Capitol session ‘73”. Além de Marley e Tosh, a banda contém Earl Lindo nas teclas e os irmãos Aston e Carlton Barrett no baixo e bateria. A que se junta, por uma única vez, substituindo Bunny Livingston nesta viagem americana, Joe Higgs nas percussões e voz. Higgs foi um mentor durante o arranque dos Wailers no início dos anos 1960, e o concerto entrega um repertório de teor acentuadamente político num ambiente relaxado. A lenda nasceria mais tarde.