Publicidade Continue a leitura a seguir

Biomarcadores: o futuro da medicina

Fotos: Freepik

O desenvolvimento de biomarcadores pode, em alguns casos, dar origem à criação de biossensores

Publicidade Continue a leitura a seguir

A descoberta e medição de novos parâmetros biológicos é a grande revolução em direção à medicina personalizada e de precisão. O diagnóstico precoce, a previsão de como a doença se comportará no futuro e a eficácia dos tratamentos é cada vez mais determinada por estes indicadores.

Nível baixo de linfócitos, diminuição das plaquetas no sangue, D-dímeros elevados, proteína C-reativa elevada. Nomes difíceis com um significado prático pouco favorável: os pacientes internados com covid-19 que apresentam estas e outras alterações estão em desvantagem, têm probabilidade mais elevada de doença muito grave e mortalidade aumentada. Que vários estudos o tenham detetado logo nos primeiros meses da pandemia é de grande valor para os médicos que têm de tomar decisões, uma vez que, através de um grupo de biomarcadores específicos, podem estratificar o risco de cada paciente e, em conjunto com outros parâmetros clínicos, estabelecer um prognóstico mais confiável. E isso permite, de certa forma, predizer qual vai ser a evolução da doença em cada paciente.

Os biomarcadores são definidos como qualquer parâmetro mensurável que possa ser usado como indicador de um estado fisiológico ou patológico. E, hoje, quase tudo na prática clínica, em várias especialidades e patologias, gira em torno deles: permitem perceber os mecanismos da doença, são usados para determinar um diagnóstico e um prognóstico e fornecem as bases tanto para o desenvolvimento de tratamentos como para a monitorização dos seus efeitos.

Sempre que fazemos uma análise ao sangue, por exemplo, o médico procura determinar o nosso estado de saúde através deles. O marcador ideal é aquele que se relaciona com os mecanismos da doença e, por isso, pode tornar-se também num alvo terapêutico para a controlar. “No caso do colesterol, sabemos que valores aumentados correspondem a um risco mais elevado de desenvolver eventos vasculares, como enfarte e acidente vascular cerebral”, exemplifica Miguel Viana Baptista, diretor do Serviço de Neurologia do Hospital Egas Moniz e professor de Neurologia da Nova Medical School, Lisboa. “Por isso, usamos fármacos, as estatinas, que diminuem esses valores, minimizando o risco desses eventos.”

Na área da neurologia, o uso de biomarcadores está condicionado por várias limitações, nomeadamente, a irreversibilidade dos danos. “Como as células nervosas não se reproduzem, uma vez lesadas, já não conseguimos tratar a doença”, explica o médico. Assim, o biomarcador ideal seria aquele que “conseguisse prever a lesão das células antes de ela acontecer e, ao mesmo tempo, pudesse funcionar com alvo terapêutico, ou seja, evitando que ela ocorresse”.

No caso da doença de Alzheimer, que o médico considera o grande desafio do século, parte já é possível. Através de uma PET (tomografia por emissão de positrões) com beta-amiloide (proteína solúvel que reflete o processo de degeneração neuronal) ou dos biomarcadores Aβ1-42 e P-TAU no líquido cefalorraquidiano, é possível diagnosticar a demência em fase pré-clínica. Ou seja, quando ainda não há um quadro de défice cognitivo instalado. Este tipo de exame, recorrendo a biomarcadores, não é feito por rotina, mas apenas em doentes jovens e com sintomas atípicos.

Ainda falta, porém, o mais importante, apesar de haver vários ensaios clínicos em curso: identificar um medicamento que a previna. “Nisso não temos sido muito bem-sucedidos porque ainda não percebemos, na totalidade, o complexo processo biológico subjacente. Temos biomarcadores que melhoram a precisão diagnóstica, mas a nossa capacidade de mudar o curso dos acontecimentos ainda é diminuta, pese embora haja medicação que pode ajudar a protelar os sintomas”, refere o médico e investigador.

A revolução no tratamento do cancro

Uma área em que, pelo contrário, os biomarcadores já têm um papel essencial – e também no tratamento – é a oncologia. Desde logo, porque é através deles que é possível subcategorizar as várias doenças a que se chama cancro. No caso do carcinoma da mama, por exemplo, é a presença ou ausência de biomarcadores que determina os seus três subtipos principais. “O cancro da mama mais frequente, o hormonodependente, caracterizado pela presença do recetor de estrogénio e/ou de progesterona; o HER2, caracterizado pela presença do recetor para o fator de crescimento epidérmico tipo 2, e o triplo negativo, assim chamado exatamente por não ser positivo para nenhum desses três marcadores já conhecidos”, sintetiza Fátima Cardoso, médica oncologista, investigadora, diretora da Unidade da Mama do Centro Clínico Champalimaud, Lisboa.

A classificação é muito importante porque estes biomarcadores são também preditivos, isto é, dizem como vai responder, aproximadamente, a doença a um certo tratamento. “Os recetores hormonais são preditivos da resposta à hormonoterapia e o HER2 é preditivo da resposta a um grupo de tratamentos chamado anti-HER2 que mudaram o prognóstico deste cancro, era dos mais agressivos e passou a ser daqueles que têm melhor prognóstico”, salienta a investigadora. Sem surpresa, o tipo triplo negativo é aquele que tem pior prognóstico, exatamente por não existir a possibilidade de tratamento dirigido.“É uma das áreas em que tem havido mais investigação – tentar definir subgrupos dentro deste tipo de cancro da mama para ser possível defini-lo não pela ausência de biomarcadores, mas pela presença de alguns, de forma a ser possível desenvolver medicamentos contra esses alvos.”

Um pouco por todo o país, centenas de investigadores tentam validar novos biomarcadores

Também no prognóstico (leia-se no curso natural da doença), os biomarcadores são essenciais. Nesse campo, Fátima Cardoso destaca o marcador de proliferação Ki67 e as assinaturas genómicas Mammaprint e Oncotype. “Decidir o melhor tratamento para um cancro passa por perceber a velocidade a que o tumor se está a dividir, distinguindo um tumor agressivo de um de crescimento lento.” O Ki67 ou as assinaturas genómicas (a análise dos genes do tumor) permitem perceber, por exemplo, se num determinado cancro hormonodependente basta usar a hormonoterapia como tratamento ou se pode ser benéfico adicionar a quimioterapia para prevenir, mais tarde, uma recidiva.

Há mais tratamentos desenvolvidos com base em biomarcadores identificados, que, embora já disponíveis comercialmente, ainda são pouco ou nada usados em Portugal. É o caso da terapia-alvo dirigida a uma mutação no gene tumoral PI3K, no caso do cancro metastático, e também dos inibidores da PARP, usados para certos tumores causados por mutações no gene BRCA. “A medicina individualizada é um objetivo que ainda não alcançámos, mas é através dos biomarcadores que nos aproximamos dela”, resume a médica da Fundação Champalimaud. “Quanto mais e melhores biomarcadores tivermos, melhor vamos conseguir caracterizar e tratar aquele tumor específico, naquele doente em particular.”

Em pacientes com cancro de pulmão, os biomarcadores têm tido um papel muito importante na definição de tratamentos dirigidos, permitindo opções terapêuticas mais adequadas e eficazes.

Investigação promissora

Para chegar a novos biomarcadores que possam ser validados e ajudem os médicos a tomar decisões clínicas com segurança, o caminho começa na investigação. Um pouco por todo o país, centenas de investigadores tentam validar novos biomarcadores – preferencialmente não invasivos, através de uma simples análise ao sangue – que possam ser úteis no diagnóstico precoce, prognóstico e tratamento de várias patologias.

Na Faculdade de Ciências da Universidade do Algarve, por exemplo, Dina Simes e Carla Viegas estão a estudar um biomarcador que parece promissor para quem tem doença renal crónica (DRC), uma das principais causas de doença cardiovascular. “Os doentes com DRC têm uma enorme propensão para a calcificação vascular”, observa Dina Simes. Apesar disso, os métodos radiográficos ou ecográficos para a detetar têm muitas limitações e baixa sensibilidade. “A proteína ‘Gla Rich Protein’ (GRP) demonstrou já claramente um papel fundamental para impedir esta calcificação vascular.” A GRP, que pode ser medida através de uma análise ao sangue, tem vindo a ser foco de estudos pré-clínicos e clínicos.

“Num estudo clínico realizado em colaboração com o Departamento de Nefrologia do Centro Hospitalar e Universitário do Algarve, envolvendo 80 doentes diabéticos com doença renal crónica, foi demonstrado que os níveis de GRP no sangue vão diminuindo com a progressão da DRC, correlacionando-se com um aumento da calcificação vascular e pressão de pulso. Estes resultados claramente demonstram a potencialidade de utilização da GRP como biomarcador para avaliar a deterioração da função renal e calcificação vascular nestes doentes”, garante a investigadora. Novos ensaios clínicos estão em curso para validar estes resultados e, se isso acontecer, “o biomarcador permitirá não só contribuir para o prognóstico clínico, como será muito útil para a monitorização personalizada dos tratamentos, evitando assim alguns efeitos secundários”.

Quando não tratar é o melhor remédio

A norte, no Grupo de Epigenética e Biologia do Cancro do Centro de Investigação do Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto, Vera Constâncio está também a desenvolver um trabalho que espera vir a ter um impacto num dos tipos de cancros mais frequente: o da próstata. O foco do seu trabalho na área dos biomarcadores está relacionado com outro problema na área oncológica menos falado: o sobrediagnóstico e sobretratamento. “O problema do cancro da próstata, sobretudo em homens mais velhos, é que são detetados uma série de tumores que no curso normal da vida não os irão afetar em nada e, ainda assim, por precaução são tratados”. É a versão clínica do clássico “mais vale prevenir do que remediar”, mas o certo é que o tratamento de uma patologia oncológica também tem um impacto na qualidade de vida do doente. O ideal era conseguir prever que cancros vão metastizar – sabe-se que são cerca de 30% – e quais não vão e podem ser apenas vigiados.

E é precisamente isso que Vera Constâncio está a tentar fazer através do estudo dos exossomas. “São pequenas vesículas extracelulares, que todas as células libertam, e que se julga que conseguem transmitir informação a outras células, tendo um papel no desenvolvimento de nichos pré-metastático, um ambiente, noutro órgão, que pode levar à metástase do tumor primário.” A investigadora está a tentar descobrir um biomarcador que consiga, na altura do diagnóstico, medir esse tipo de comunicação entre órgãos e, “dependendo se ela se está a estabelecer ou não, conseguiríamos perceber se é ou não provável que a metastização ocorra”. Se for bem-sucedida, no futuro, poderemos ter um biomarcador cujo objetivo não é definir um tratamento oncológico, mas antes evitar, com segurança, que um tratamento desnecessário seja feito.

Dos biomarcadores ao biossensores

O desenvolvimento de biomarcadores pode, em alguns casos, dar origem à criação de biossensores – pequenos aparelhos portáteis capazes de avaliar o parâmetro em questão, seja a nível hospitalar, seja para uso doméstico. Entre estes últimos, o mais conhecido e utilizado dos biossensores é o medidor de glicose, que veio revolucionar o controlo da diabetes pelos pacientes, dando-lhes um instrumento para monitorizar e controlar a doença diariamente, sem necessidade de uma deslocação ao médico, com apenas uma gota de sangue. Há cada vez mais destes aparelhos a serem criados para uso doméstico, de forma a monitorizar outras doenças crónicas que precisam de vigilância apertada, como a insuficiência cardíaca.

Para que servem os biomarcadores?

– Diagnosticar precocemente uma doença;
– Fazer o seguimento da sua evolução, preferencialmente de forma não invasiva;
– Ter uma noção do prognóstico clínico;
– Escolher um tratamento adaptado às características da doença e ao paciente;
– Monitorizar a eficácia da terapêutica;
– Desenvolver novos medicamentos.