Belina e Nuno, a sogra deu o seu rim ao genro. É uma história de amor

Sangues incompatíveis e uma família dos Açores no Hospital de Santo António, no Porto, que já fez mais três mil transplantes renais. Há 37 anos, Maria da Graça foi transplantada e acabou com a rotina que lhe moía o corpo. O passado, o presente e o futuro da transplantação (com milagres e uma pandemia).

É terça-feira, 18 de maio de 2021, a cirurgia está marcada para as 15 horas no Hospital de Santo António, no Porto. Belina Menezes, 53 anos, das Lajes, Terceira, Açores, vai doar o rim esquerdo ao genro, Nuno Ribeiro, de 36 anos. A espera de três anos e meio está prestes a terminar. O dia amanhece com chuva miudinha, chata, que não pára de cair. Quando a cirurgia acaba, o céu está limpo, há sol lá fora, a primavera dá o ar da sua graça. Nem parece o mesmo dia.

Belina desperta da anestesia e diz, numa curta frase, que estava a sonhar com aquele momento que se tornava realidade. No dia anterior, numa simplicidade desarmante, explicou a sua vontade de dadora. “Vou tirar o meu rim para ajudar uma pessoa de quem gosto muito. A família, acima de tudo, e vai correr bem.” Correu. Em menos de três horas, o rim saía de um corpo e entrava noutro. Nuno urinou de imediato, um bom sinal.

Belina chegou ao continente no domingo passado. Estava nevoeiro, o avião teve de aterrar primeiro em Lisboa, antes de voltar ao Porto. Deu entrada no hospital na segunda, foi internada no serviço de Urologia. Nuno chegou uma semana antes para exames, para limpar o seu corpo de anticorpos. Os seus grupos sanguíneos não são compatíveis. Belina é B, Nuno é O. O Santo António, que integra o Centro Hospitalar e Universitário do Porto, é a única instituição do país que faz transplantes de rim nestas circunstâncias, quando há incompatibilidade sanguínea. E este é o 17.º desde 2014.

Às 15.15 horas, Belina dá entrada no bloco operatório. Pouco depois, começa a cirurgia e, às 16.59 horas, o seu rim com duas artérias está fora do seu corpo, é limpo do seu sangue, ficou branco, foi para o frio, volta a ficar rosado. Às 17.29 horas, desperta da anestesia geral. Pouco depois das 18 horas, Nuno entra no bloco para receber o novo rim. O transplante termina duas horas depois.

No início, Belina não disse a ninguém, guardou para si as suas intenções. “Tive um problema no ouvido e tive de fazer uma cirurgia. Se ficasse bem, ia ajudar o Nuno”, recorda. Ficou bem e pediu que lhe fizessem todos os exames para ver se poderia doar o rim ao genro. Não era compatível, insistiu para fazer um transplante cruzado, doaria um rim a um recetor compatível desconhecido e, nesse momento, Nuno receberia um rim de um outro dador. Mas não houve cruzamentos. Há dois anos, numa consulta no Santo António, perceberam que era possível avançar, apesar da incompatibilidade. Ficaram radiantes.

“Não tinha noção do que era uma doença renal, o Nuno já tinha esse problema quando casou com a minha filha.” Na véspera do transplante, Belina e Nuno contam a história. “É a minha segunda mãe”, confessa Nuno com ternura e suas mãos nas mãos de Belina. “Cabeça para cima, é a solução que vemos ao fundo do túnel, para sair da rotina da diálise.” Belina garante que está calma, não fala dos riscos que sabe que corre porque não importam, não lhe interessam, nem os problemas que poderá ter no futuro, nem da pequena cicatriz que lhe ficará no fundo da barriga. “É a melhor coisa que podia acontecer, é a solução para a vida do Nuno.”

Nuno é doente renal, doença hereditária, o diagnóstico chegou aos dois anos. Uma vida normal, sempre com a noção de que mais dia, menos dia, a situação podia mudar. Começou a sentir-se mal, vómitos, desconfiava de uma virose ou alguma coisa no fígado. Uma consulta, análises. “Já não saí do hospital, fui internado, tive de ir para a diálise”, lembra. Duas semanas no Hospital de Santo Espírito, na Terceira, a primeira a tentar reanimar os rins, a segunda para se habituar ao tratamento.

Aos 32 anos, os rins tinham deixado de funcionar, hemodiálise daí em diante, três vezes por semana. Perdeu o trabalho como distribuidor de produtos alimentares, o contrato não foi renovado, está desempregado. Há três anos e meio que estava inscrito no programa de transplantes.

Belina veio com o marido, Nuno com a mãe, o pai não aguentou e veio depois. Mariana, a mulher, filha de Belina, ficou na Terceira por causa do trabalho e com a filha de ambos, Francisca, de três anos. Nos últimos dias, os telemóveis não param de tocar. É uma história de amor. Tão simples quanto isso.

O Santo António fez o primeiro transplante de rim em julho de 1983. Em 1986, assinalou os primeiros cem transplantes renais, em 1994 os 500. Em 2000 chegou aos mil, agora são 3 020. O transplante três mil aconteceu a 30 de março deste ano. Há 37 anos, nesse mesmo dia, Maria da Graça Teixeira era transplantada a um rim, tem na ideia de que foi a 12.ª transplantada renal do Santo António. A data jamais lhe sairá da memória. De 30 para 31 de março de 1984. Entrou no bloco à meia-noite, saiu quatro horas depois. Tinha então 34 anos.

Maria da Graça, 71 anos, transplantada há 37, faz uma vida normal depois de anos em hemodiálise

Eram 23 horas, o telefone tocou na mercearia ao pé de casa, era o contacto que tinha dado no hospital, bateram-lhe à porta, saiu para atender a chamada, do outro lado explicavam-lhe que havia um rim à sua espera. Tinha de ir logo, era preciso ser já. Florbela, a filha de 12 anos, disse-lhe que tinha de ir e que a ajudava a fazer a mala.

Os problemas nos rins começaram quando tinha 20 anos. “Era um bicharoco que tinha e os médicos não sabiam o que era. Eram mais comprimidos, menos comprimidos, fui andando assim, fui andando, agravou-se depois de ficar grávida.” Maria da Graça tinha 22 anos e um desejo enorme de ser mãe. Depois do parto, piorou, tensões altas, pés muito inchados, papos na parte de baixo dos olhos, cansaço. Uma biópsia confirmou que os seus rins tinham parado. Nefrite crónica. “Secaram os dois, mirraram completamente, pareciam dois feijões-frade.”

Começaram as sessões de hemodiálise para limpar as toxinas do sangue e remover o excesso de líquidos do corpo, três vezes por semana. Saía de casa às sete da manhã, chegava à hora de almoço, de rastos, estourada. “Dia sim, dia não, com os braços amarrados, as agulhas embirravam, eram umas dores que até davam choques.” Nesses dias, ficava sem forças. “Metia-me na cama, cobertores em cima de mim, e não fazia nada.” Arrepia-se quando se lembra e mostra as marcas e as fístulas nos braços, testemunhas desses anos. Em novembro de 1983, inscreveu-se para o transplante.

Lágrimas, abraços e uma promessa

O novo rim de Maria da Graça deu-lhe que fazer no início, esteve sem funcionar 18 dias. “Já ninguém dava nada por ele.” Voltou à hemodiálise. “Dizem que a fé move montanhas, agarrei-me a tudo e a todos, não sei se é fé ou desespero. Ajoelhei-me à beira da cruz e prometi que se o rim começasse a funcionar daria os 500 escudos à primeira pobre que me aparecesse.” O dinheiro tinha sido dado por uma tia e dava-lhe jeito para obras lá em casa. Veio a vontade de fazer xixi, o rim começava a funcionar, ia ter alta. Os risos misturavam-se com as lágrimas quando a filha e o marido chegaram. A promessa foi cumprida à saída do hospital, os 500 escudos entregues a uma velhinha que estava junto à Igreja do Carmo.

As marcas e as fístulas nos braços de Maria da Graça são testemunhas de anos de sofrimento

Em agosto desse ano, cinco meses depois do transplante, uma recaída, ureia a subir. Nova cirurgia, ficou melhor. Um ano depois, mais uma recaída, mais uma cirurgia. “Fiquei mais ou menos bem, mais umas infeções.” Até que melhorou, análises boas, medicação respeitada à risca, e o rim a funcionar como devia de ser. Um rim de um jovem de Coimbra que tinha morrido num acidente na estrada. “O meu rim é um pouco mais novo do que eu.”

O Hospital de Santo António, centro de referência nacional de transplantação renal e reno-pancreática, responde por de mais de 50% dos transplantes de dador vivo do país. Já realizou 243 transplantes simultâneos de rim-pâncreas, foi o primeiro a fazê-lo em Portugal, e 24 transplantes simultâneos de rim-fígado, além dos de córnea e pâncreas. Faz parte de uma cadeia internacional de hospitais de Espanha e Itália para trocas de rins. Leonídio Dias, diretor da unidade de transplantação renal do Centro Hospitalar do Porto, repete a mensagem. Nunca baixar os braços. “Os três mil e tal transplantes foram feitos com entusiasmo, mas permitiram também abalançarmo-nos a entrar nestas novas modalidades de transplante para ajudar as pessoas. Acreditamos que as pessoas não devem desistir”, sublinha. “Quanto maior o número de pares incompatíveis dentro do conjunto, maior probabilidade de haver trocas, maior possibilidade de haver transplantes.”

Leonídio Dias fala em altruísmo, em generosidade, dos dadores. “Estas pessoas devem ser da nossa parte, da sociedade, alvo de grande consideração por aquilo a que se dispõem a fazer. São pessoas que querem muito ajudar outra, porque gostam dela, e que aceitam que o seu corpo seja invadido, correndo riscos.”

Leonídio Dias, diretor do programa de transplantação renal do Santo António, apela a que as pessoas não desistam

A transplantação renal é uma técnica de substituição da função renal, alternativa à hemodiálise e à diálise peritoneal, permitindo aos doentes maior independência, saúde, qualidade de vida.

Maria da Graça reconhece que foi um alívio. “Foi um renascer, os meus rins estavam mais para lá do que para cá. Eu nunca ia a lado nenhum, não podia beber água, não podia comer grande fruta. Era uma rotina muito indesejável.” Aos 71 anos, faz uma vida normal, quando o tempo permite, anda pela horta a plantar batatas, cebolo, alfaces.

os pioneiros da transplantação

Quando Maria da Graça recebeu o rim, Eva Xavier estava no Santo António. Nefrologista, médica interna, acompanhou o início da transplantação renal no país, foi responsável pelo Serviço de Nefrologia do Santo António, fez parte da Comissão Nacional de Diálise e Transplantação Renal, nomeada em agosto de 1978. Foi um longo caminho, o país não estava preparado, o problema era novo, havia tanto por fazer. Era preciso percorrer o país, ir aos hospitais, fazer um levantamento em relação à diálise. Foi o que o seu grupo fez. “Valeu a pena. Conseguimos fazer um programa nacional de diálise, primeiro, e depois um programa de transplantação”, resume.

Eva Xavier, que presidiu à Ordem dos Médicos do Norte depois do 25 de Abril, primeira e única mulher até agora, recua no tempo. O que lhe custava mandar doentes renais para Espanha para tratamentos de diálise. Ou iam ou morriam. E viu morrer muita gente. “Era uma barreira quase intransponível para nós. Não era cirurgia que se fizesse em Portugal. Mas a barreira foi-se diluindo e uma vez que se começou, nunca mais se parou.” Não foi fácil, porém. “Na altura, era difícil fazer alguma coisa nos hospitais portugueses, além do que já se fazia, porque não havia dinheiro.”

Quantas caixas com órgãos para transplante lhe passaram pelas mãos, quantos dias e horas esteve à porta do bloco para saber como as cirurgias tinham corrido. “Era muito emotivo, muito estimulante, não olhávamos a tempo e a horas.” Na passagem de ano de 1982 para 1983, em sua casa, foi feito um pacto de sangue. Mário Caetano Pereira, cirurgião vascular, um dos primeiros a fazer transplantações renais e hepáticas, que presidiu à Sociedade Portuguesa de Transplantação, Morais Sarmento, também pioneiro na área, mais alguns médicos, queriam avançar. Naquela noite, antes de um novo ano, decidiram fazer uma proposta à direção clínica do Santo António: bloco operatório livre à noite para transplantes renais, sem pagamento de horas extras, possibilidade de escolher a equipa. Dito e feito. “O serviço de Nefrologia e todos os seus colaboradores entraram neste projeto sem exigências. O que nos interessava era transplantar os doentes.” Nessa longa aventura, por todo o país, há nomes importantes como Mário Caetano Pereira, Morais Sarmento, Linhares Furtado, Armando Mendes, Castro Henriques, entre outros. Um trabalho continuado por sucessivas gerações de equipas multidisciplinares de nefrologistas, urologistas, cirurgiões vasculares, anestesistas, enfermeiros especializados, e muitos outros profissionais, médicos e não médicos.

Eva Xavier, médica nefrologista, fez parte da Comissão Nacional de Diálise e Transplantação Renal, criada em 1978

A 26 de fevereiro de 1986, “O Primeiro de Janeiro” chamava à capa dois “milagres” da medicina nacional: o primeiro bebé-proveta e a primeira bebé filha de uma mulher que havia sido transplantada a um rim dois anos antes no Santo António, em setembro de 1984, depois de quase nove anos de hemodiálise. Um feito médico a nível internacional. Não era comum, não era habitual, não era recomendável uma gravidez depois de um transplante.

Eva Xavier estava lá, no transplante, no parto, foi a madrinha da bebé batizada de Teresa Raquel, T de transplante, R de renal. Nasceu de cesariana com 2,8 quilogramas às 10.50 horas, às 33 semanas de gravidez. “Uma doente de diálise, transplantada, que engravidou, era a primeira vez que acontecia, e a menina nasceu bem.”

a esperança para os incompatíveis

Há transplantes de pessoas incompatíveis no grupo de sangue, como Belina e Nuno, transplantes de pessoas incompatíveis porque têm anticorpos contra os tecidos do potencial dador. Há o programa de transplante renal cruzado, trocas entre pares incompatíveis. “De quatro em quatro meses, podemos inscrever pares incompatíveis e vemos se é possível a troca”, adianta Leonídio Dias. As colheitas são feitas ao mesmo tempo, nos dois hospitais, os doentes não se deslocam, a GNR assegura o transporte do órgão a transplantar. “As pessoas que são incompatíveis, que têm potenciais dadores, não desistam, procurem o hospital onde as coisas se fazem para saber se é possível ou não”, insiste o responsável. Esta é uma barreira que pode ser derrubada.

Manuela Almeida, nefrologista, responsável pelo programa de dador vivo do Santo António, acompanha o caso de Belina e Nuno, e tantos outros, e não esconde a admiração pelos dadores. “O ganho para as famílias é muito grande.” É um processo apurado de avaliações, estudos de compatibilidades, consultas. A palavra milagre aparece em várias conversas, sobretudo quando a espera é prolongada e o transplante acontece. A mudança é enorme para os transplantados, os dadores sentem-se bem com o ato, há ganhos psicológicos, e o risco de complicações a longo prazo é baixo.

Avelino Fraga, diretor do serviço de Urologia do Santo António, lembra-se do entusiasmo de Mário Caetano Pereira no início das suas experiências de transplantação. “Sempre teve uma visão que nos contagiou a todos.” A multidisciplinaridade. “O sucesso destes três mil transplantes é o trabalho de equipa, a vascular e a urologia dão-se muito bem, desde os primórdios, com uma colaboração muito íntima dos nefrologistas”, realça. A transplantação em Portugal é reconhecida a nível internacional. Em termos de transplante de dador falecido, é um dos primeiros países no Mundo em número por milhão de habitantes. A pandemia afetou os números: menos 197 órgãos colhidos para transplantes de 2019 para 2020, menos 132 dadores. Em 2019, foram 430, no ano passado 298. Houve uma diminuição da colheita e nos transplantes de órgãos, tecidos e células. E o número de dadores vivos caiu quase 50%, de 78 para 42.

A cirurgia para extrair o rim juntou uma equipa multidisciplinar no bloco operatório do Hospital de Santo António

A redução foi sobretudo sentida nos transplantes de rim, 378 em 2020, longe dos 514 de 2019 e dos 502 de 2018. O transplante de fígado caiu 19,2%, 240 transplantes hepáticos feitos em 2019 e 193 em 2020. Os transplantes pulmonares desceram de 71 em 2019 para 65 em 2020, enquanto os pancreáticos subiram ligeiramente de 25 em 2019 para 27 no ano passado. No final de 2020, havia 1 951 doentes a aguardar transplante renal e 118 por um fígado. Em 2019, a doação de órgãos, com um total de 430 dadores, mantinha a tendência ascendente: mais 3,4%, segundo dados do Instituto Português do Sangue e da Transplantação.

23 de maio de 2021. Belina já terá tido alta, estará feliz, a preparar-se para voltar à Terceira e ao seu emprego de gerente de supermercado. Nuno estará no hospital a habituar-se ao novo rim. Com Mariana, a mulher, já no continente, ao seu lado. Eva Xavier andará à volta do que tão bem sabe fazer, a coordenar o Centro de Diálise da Ordem de São Francisco, no Porto. Os médicos nas suas rotinas, a ver doentes, a analisar casos e compatibilidades, nas cirurgias, a preparar órgãos de dadores vivos ou mortos.

Maria da Graça andará na sua vida com um orgulho imenso na filha, Florbela, e no marido, Domingos, os maiores amparos naqueles anos tão difíceis. Não teria aguentado, admite, sem eles. Continua vigiada, análises e consulta de três em três meses, a próxima está marcada para junho. Quando olha para trás, tudo faz sentido. “Sofremos bastante, superámos tudo, e valeu a pena.”