Bebés-milagre

Susana e João, Mafalda e Diogo, Alexandra e Marco, Vera e Rui, Liliana e o marido passaram anos a tentar ter filhos. Pediram ajuda à ciência, viveram experiências intensas e desgostos profundos. Sentiram o que é estar quase lá e não conseguir. Esgotaram todas as tentativas que lhes eram permitidas. As histórias de quem nunca perdeu a esperança e hoje carrega ao colo o milagre da vida.

Era a última chance. João estava cá fora, no parque de estacionamento, a aguardar notícias porque desta vez as regras da pandemia impediam-no de estar lá dentro, ao lado de Susana, a segurar-lhe a mão para o que desse e viesse. Tinha esperança, mas não queria ter. Já guardavam demasiadas frustrações, 12 anos de ansiedade e angústias. Era a quarta tentativa, a terceira e última no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Era a derradeira oportunidade de concretizarem o sonho de serem pais.

Susana Jorge, 38 anos, da área das telecomunicações, e João Penas, 36, vigilante, conheceram-se na escola em 1999, ela com 16 anos, ele com 14. Começaram a namorar em tenra idade e, cerca de dez anos depois, decidiram viver juntos. Compraram casa, arriscaram tudo num T3, no Porto, porque já sonhavam ter filhos, não queriam adiar nada. O instinto maternal crescia de dia para dia, conta Susana. Aos 27 anos e ao fim de poucos meses sem engravidar, decidiu procurar ajuda médica. Fez exames e os valores hormonais não batiam certo. Foram encaminhados para o Centro Hospitalar do Porto para tentar perceber a origem do problema.

Gonçalo e Francisco nasceram a 8 de janeiro, com 31 semanas de gestação
(Foto: Igor Martins/Global Imagens)

Os meses passavam e a ansiedade crescia. Sem respostas satisfatórias, foram a outros hospitais, incluindo ao privado, em busca de soluções. Em 2010, Susana fez o primeiro tratamento de fertilidade numa clínica privada, uma inseminação artificial. Não resultou. Foi o primeiro grande soco no estômago. E a luta ainda estava a começar.

Susana e João sentiram o chão fugir-lhes. À sua volta, gravitavam “imagens de mães que não querem saber dos filhos”, a toda a hora surgiam amigos a anunciar que iam ser pais. “E vocês?”, a pergunta era como um raio que os fulminava. Depois de um tempo para aprenderem a lidar com o desgosto, procuraram o Hospital de S. João. A estimulação da ovulação não resultou e o tratamento não chegou a avançar. Sem diagnóstico concreto, Susana voltou à Maternidade de Júlio Dinis, onde o processo continuava a correr. Fez uma estimulação de ovulação e fertilização in vitro (FIV), o primeiro ciclo completo de Procriação Medicamente Assistida (PMA) num hospital público. Não houve gravidez. Novo murro no estômago.

Susana Jorge e João Penas com os filhos gémeos ao colo. Doze anos depois de muitas angústias e frustrações, o milagre aconteceu e a alegria foi a dobrar
(Foto: Igor Martins/Global Imagens)

A frustração e ansiedade cresciam. “Foram momentos de muita angústia”, recorda João. Em 2017, nova tentativa gorada. O desespero abalou tudo e até a esperança tremeu. “Só os casais muito unidos aguentam passar por isto”, asseguram. Susana e João foram buscar forças que desconheciam, amadureceram e continuaram a acreditar. Foi nessa altura que se aperceberam da dimensão do problema dos casais inférteis em Portugal. Centenas de pessoas a viver o mesmo drama. Centenas à espera de um milagre de laboratório.

Cerca de três mil bebés por ano com empurrão da ciência

Em Portugal, existem cerca de 300 mil casais inférteis, o que corresponde a 15% da população em idade reprodutiva. E todos os anos cerca de 3% dos bebés nascidos no país são resultado do uso de técnicas de PMA . Em 2018, últimos dados disponíveis, nasceram 3 043 crianças através destas técnicas, realizadas em centros públicos e privados. Mas há milhares de tentativas que correm mal e o acesso aos tratamentos no setor público está cada vez mais difícil. Se já se contavam vários meses e até anos de espera em algumas regiões do país, com a pandemia piorou tudo. Na primeira fase, milhares de consultas e tratamentos ficaram suspensos e o retomar foi lento. No último confinamento, a situação voltou a complicar-se. Recentemente, a presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), Carla Rodrigues, estimava em dois anos o tempo de espera para realizar tratamentos no SNS. Ainda pior está quem tem de recorrer a gâmetas de terceiros. As doações de ovócitos e espermatozoides para o Banco Público de Gâmetas caíram a pique no ano passado e a resposta a estas mulheres estagnou. A Associação Portuguesa de Fertilidade (APF) confirma que há “casais em desespero”. Seja porque não têm acesso a tratamentos, seja porque estão a aproximar-se da idade limite para os tratamentos no SNS – 40 anos para as técnicas de segunda linha (FIV e injeção intracitoplasmática) e 42 anos para as de primeira linha (inseminação artificial e indução de ovulação). Os seis meses de alargamento do limite entretanto decretados para tentar colmatar os atrasos provocados pela pandemia não chegam, garantem CNPMA e APF.

Três anos depois, já em plena pandemia, Susana recebeu um telefonema da maternidade a informar que as consultas estavam novamente abertas. Em junho, submeteu-se a novo tratamento. Era a última oportunidade no SNS. Provavelmente, a última de todas porque “no privado, outra vez, não era viável”.

Naquele dia, à porta do Centro Materno-Infantil do Norte (CMIN), João deu consigo a pensar: “Lá vamos nós passar por isto tudo outra vez”. À distância avista Susana, a sair leve e radiante. Os resultados das análises indicavam que estava grávida. Pela primeira vez em 12 anos, desde que assumiram que queriam ser pais, a fecundação teve sucesso. “Foi uma explosão de alegria”, relembram os dois, com um olhar cúmplice de quem viveu o momento intensamente.

Quinze dias mais tarde, nova consulta. João ficou novamente à porta do CMIN, ansioso pelas novidades. Susana saiu com um sorriso redobrado: “Em vez de um são dois, são gémeos”, atirou. “Nem acreditava, foi outra vez incrível”, ri-se João, abanando o carrinho para trás e para a frente. Em cima está Francisco, mais pequenino, em baixo Gonçalo, mais gordinho e rezingão. Nasceram a 8 de janeiro, com 31 semanas de gestação, sete delas com a mãe internada e a ser monitorizada quase todos os dias. Gonçalo e Francisco vestem roupas iguais e têm feições idênticas. São um milagre perfeito e a dobrar.

16 de outubro de 2012. Mafalda Amaral, enfermeira no Hospital de S. João, não esquece a data. Saiu de casa preparada para mais um desgosto. O teste de gravidez que acabara de fazer dera negativo e só faltava a confirmação final. Sentiu-se a caminhar para o abismo. Era a terceira e última oportunidade que tinha para engravidar no setor público.

Mafalda e Diogo com os filhos. Dinis veio ao mundo após uma cirurgia, três fertilizações in vitro e anos de incertezas. Clara foi uma surpresa, quando já ninguém imaginava
(Foto: André Rolo/Global Imagens)

Os ovários pejados de quistos estavam a roubar-lhe a oportunidade de concretizar o sonho de ser mãe. O processo iniciado em 2009 no Serviço de Medicina de Reprodução do S. João aproximava-se do fim. Várias terapêuticas hormonais, uma cirurgia e três fertilizações in vitro. O marido, Diogo Pecegueiro, também enfermeiro no hospital, sentou-se a seu lado na consulta, preparado para o pior. “O teste de sangue deu positivo.” As palavras proferidas pela médica soaram estranhas. Era exatamente o contrário do esperado. “Foi uma mistura de sentimentos. Alegria, surpresa, desconfiança – será verdade? – até cairmos na realidade”, recorda Mafalda. Saíram da consulta atordoados com a novidade. Tinham sido “anos tão difíceis e cansativos” que demoraram a encaixar a surpresa. Até então poucas pessoas estavam a par da cruzada que viviam. “Não queríamos ser motivo de conversa”, reconhece a enfermeira. Desta forma, também não foram pressionados por perguntas incómodas, nem por festejos excessivos antes do tempo.

As quase 37 semanas de gravidez foram passadas, em casa, sob vigilância apertada. Dinis chegou cedo, mas com bom peso e tamanho. Tem agora sete anos. Mas a vida ainda havia de conceder nova surpresa ao casal. A gravidez “limpou” os ovários de Mafalda e os quistos desapareceram. Três anos depois de Dinis, a enfermeira, hoje com 43 anos, engravidou espontaneamente e Clara veio ao mundo em 2017, naturalmente. Dois milagres seguidos.

Uma cirurgia, um aborto e a idade sempre a avançar

A “saga” de Alexandra Santos e Marco Macedo durou quatro anos. Começou em 2014, pouco depois dos dois copilotos de ralis terem decidido ter filhos. Alexandra tinha 33 anos e, desde a adolescência, uma história de endometriose que a atirava para a cama, a cada menstruação. Sabia que não seria fácil engravidar e foi deixando passar o tempo com o argumento de que os meninos do infantário onde é educadora precisavam muito dela.

Antes de começar os tratamentos, foi operada e esteve quatro meses em fase agonística, uma menopausa provocada quimicamente para a doença não progredir. Partiu para os tratamentos cheia de esperança, mas o primeiro ciclo de FIV não correu bem. E, nesse dia, na sala de espera do Serviço de Medicina de Reprodução do Hospital de S. João, Alexandra presenciou uma cena que não esquece. Uma mulher que também recebeu más notícias, mas que já não tinha qualquer chance porque se aproximava dos 40 anos. “Estava lavada em lágrimas e lamentava ter posto a carreira à frente do sonho de ser mãe. Marcou-me profundamente”, enfatiza a educadora de infância.

No segundo ciclo, outra FIV, o teste deu positivo. Mas o óvulo não se desenvolveu e acabou por abortar ao fim de alguns dias, “uma espera horrível”. Zangou-se terrivelmente com uma médica que lhe disse para ficar feliz por ter conseguido engravidar. Não fazia sentido: como poderia sentir-se feliz se acabara de abortar? Só mais tarde veio a compreender que o simples facto de o corpo aceitar a gestação já é um grande passo.

Noah tem quatro anos e desde que os pais, Alexandra e Marco, lhe explicaram como nasceu, faz questão de dizer que é “um menino do “lavatório” [laboratório]”
(Foto: Igor Martins/Global Imagens)
Entre muitos exames e injeções, o terceiro ciclo começou em 2016. Já tinha 39 anos e a equipa médica optou por uma injeção intracitoplasmática (ICSI), uma técnica também de segunda linha que consiste na implantação do espermatozoide diretamente no óvulo. Quinze dias depois, voltou ao hospital para saber as novidades. “Lembro-me de entrar no consultório de mão dada com o Marco e só olhava para os papéis para ver se tinham alguma pista”, visualiza. A médica, “toda sorridente”, deu-lhes a notícia tão esperada e a ecografia que se seguiu foi um alívio. “Chorei imenso. Tínhamos finalmente conseguido.” Noah nasceu a 3 de fevereiro de 2017, um mês antes da data prevista, com a mesma pressa dos corredores de automóveis, e já tem o “bichinho” dos carros. Espontâneo e divertido, recentemente, o pequeno perguntou à mãe como tinha nascido e Alexandra aproveitou a tirada para lhe explicar que, com ele, o processo foi diferente. “Foi uma bióloga que juntou a semente da mãe e a semente do pai num laboratório”, resumiu Alexandra. Desde então, Noah faz questão de dizer que “é um menino do ‘lavatório’”.

Quando Liliana fez o primeiro tratamento, a comparticipação do SNS era limitada a um ciclo. O aumento para três foi “uma lufada de ar fresco” e trouxe-lhe a Maria
(Foto: André Rolo/Global Imagens)

Quando Liliana Santos e o marido começaram a pensar em ter filhos, já o comboio da fertilidade passava a todo o vapor. Liliana tinha 33 anos quando fez o exame pré-natal e, meio ano depois de tentativas sem sucesso, decidiu procurar ajuda. Foi reencaminhada para consulta no CMIN e, em 2012, fez a primeira FIV. Sem sucesso. Na altura, o SNS financiava apenas um ciclo de tratamento com técnicas de segunda linha, na qual se inclui a FIV, pelo que a oportunidade estava esgotada.

“Perdemos a esperança e deixámos andar”, rebobina. Até que, em 2015, a esperança regressou com uma carta a anunciar uma alteração legislativa que abria caminho ao sonho. Passaram a ser financiados três ciclos completos de FIV ou ICSI por casal, o que significava que podiam voltar a tentar. “Foi uma lufada de ar fresco”, admite Liliana, ex-auxiliar de fisiatria no Hospital de Santo António. A segunda tentativa ocorreu no mesmo ano, mas os óvulos não fizeram o seu trabalho. Voltou a esperar e a desesperar.

No ano seguinte, seguida por uma nova médica, a “fabulosa dra. Márcia”, Liliana começou por fazer um tratamento aos ovários e outro aos miomas que se agarravam à parede do útero. Não podia perder a oportunidade, era a última que lhe restava. Ao fim de seis meses, voltou a tentar. Em julho de 2017, fez a transferência de dois óvulos já fecundados e 15 dias depois veio a análise com a feliz notícia. Estava grávida.

Na balança da vida, carrega o saldo de uma experiência feliz, mas também dolorosa, a nível emocional e físico. “Isto é um projeto desde o início e temos mesmo de ter a certeza do que queremos porque a nível hormonal ficamos descompensadas, choramos e rimos, e precisamos de muito apoio”, alerta Liliana, que deixou o emprego por turnos para se dedicar a 100% ao seu “projeto”. A medicação que tomou, as injeções que teve de aplicar na barriga – 94 só no primeiro trimestre de gravidez – a despesa de 300 a 400 euros em cada ida à farmácia com os fármacos para estimulação da ovulação (comparticipados a 67%) são memórias que ficam de um período difícil, mas que terminou da melhor forma. Maria nasceu a 19 de março de 2018, tem agora três anos e é “muito ativa” e despachada. Por ora, Liliana tem apenas uma certeza: quando a filha crescer e se quiser constituir família vai aconselhá-la a fazê-lo o mais cedo possível. “Não dá para esperar o momento ideal”, avisa. Porque o comboio passa e a viagem perde-se.

Excluída por obesidade concretizou sonho no privado

Aos 21 anos, Vera Angélico foi mãe sem qualquer dificuldade e tem hoje uma filha com 20 anos. Mas a segunda gravidez, anos mais tarde, com o atual marido foi completamente diferente. Em 2016, decidiu que estava na hora de tentar de novo e deixou os métodos contracetivos. Um ano e nada. Já tinha quase 37 anos quando procurou ajuda. Embora resida em Leiria, decidiu marcar consulta com um médico no privado e ao mesmo tempo inscreveu-se na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa. Na unidade pública, ao final de ano, depois de várias consultas e exames, avisaram-na que por ser obesa não poderia fazer tratamentos de fertilidade, pois as probabilidades de sucesso seriam menores. Magoada e indignada com a resposta do SNS, que mais tarde veio a perceber não ser uniforme em todo o país, seguiu para o Hospital dos Lusíadas, em Lisboa. “Felizmente, tínhamos recursos financeiros porque se não tivéssemos tínhamos sido descartados”, constata Vera, lembrando que, apesar do excesso de peso, paga impostos como os outros “pelo que deveria ter os mesmos direitos”. No seu caso, o argumento de que a obesidade reduz a resposta à medicação não se veio a confirmar.

Em janeiro de 2018, fez a primeira inseminação artificial. Negativo. Em abril, voltou a tentar e sofreu um aborto retido às dez semanas. A memória é forte de mais e Vera emociona-se sempre que revive o momento. Estava a fazer uma ecografia de rotina quando se descobriu que o bebé já não estava vivo. Pára, recupera a voz e volta novamente atrás numa fita do tempo que evolui de ciclo em ciclo. Em agosto de 2018, nova tentativa gorada, nem chegou a engravidar. Mais uma inseminação artificial em janeiro. Negativo. Ao contrário do público, no privado não há um número máximo de ciclos e as tentativas podem prosseguir até a mulher atingir os 50 anos. O limite é o orçamento de cada um e… a resiliência.

Vera Angélico e Rui Nunes sentem que tiveram “a vida em suspenso” durante o longo processo até ao nascimento do filho, Gabriel
(Foto: Carlos Alberto/Global Imagens)

“Nessa altura, precisei de um tempo para me reorganizar, tive de parar porque estava muito traumatizada com tudo o que tinha vivido”, confessa. Vera sente que sofreu sozinha. Embora o projeto fosse do casal, “para os homens, é mais difícil entenderem o envolvimento psicológico das mulheres neste processo porque, na verdade, eles só fazem um espermograma”.

Em junho de 2019, Vera Angélico e Rui Nunes voltaram a Lisboa para mais uma tentativa. Desta vez, o médico optou por uma FIV, mas a estimulação da ovulação não correu bem. No mês seguinte, uma mudança de medicação alterou o rumo dos acontecimentos. Ao fim de quatro inseminações artificiais, e uma FIV, de mais de dez mil euros em tratamentos, consultas, exames e viagens da Nazaré para Lisboa, foi possível levar o tratamento por diante e conseguir a tão desejada gravidez. Vera debateu-se com uma mistura de sentimentos. Alegria, alívio e medo, porque ainda nada estava garantido. “A maior angústia é sabermos que uma gravidez não nos garante um bebé no colo”, explica. A cada ecografia, a mesma pergunta: “Ainda está vivo?”. Gabriel nasceu nove meses mais tarde, a 17 de março de 2020, já em plena pandemia. Um ano volvido sobre este longo processo, Vera olha para trás e encontra muita dor. “Deixámos de existir como casal, como pessoas e passámos a viver em função dos tratamentos. Acho que tivemos a vida suspensa durante três anos”, sintetiza. Mas, no final, não há dúvidas, valeu muito a pena: “O Gabriel é o nosso milagre”.