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Batô: uma discoteca à frente do seu tempo há 50 anos

Fotos: Ivan del Val/Global Imagens

Discoteca abre às sextas e sábados e na última quinta do mês, devotada ao revivalismo

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A discoteca mais antiga de Portugal ainda em atividade abriu em 1971 e fica em Leça da Palmeira. Faz 50 anos esta terça-feira. Os atuais donos foram sempre fãs, entraram lá ainda miúdos e explicam porque é que o Batô esteve sempre à frente do seu tempo.

José Carlos Soares nasceu no mesmo ano do Batô. A primeira música que ouviu quando entrou na discoteca – aquele momento em que a porta se abre e o baque do som surdo sai a fugir e aumenta de repente até ao ponto em que o corpo fica todo tomado e surdo, o momento em que tudo muda – foi a “Magnificent Seven” dos Clash. É uma música disco furtiva, socialista e trabalhista de letras, incita o operário à ironia e a dar tudo no trabalho para depois dar tudo a consumir, é um hino, mas é uma música punk-rock que se bamboleia toda de som, é funky, tem groove, é praticamente hip-hop, é um hit imediato em qualquer pista.

E isso causou muita impressão a José Carlos Soares porque estávamos em 1981 e ele acabava de entrar numa discoteca pela primeira vez e ouviu aquilo. Tinha dez anos. “Fiquei impressionado, não é para menos, aquele baixo que atravessa a canção até ao fim, aquele loop saltitante, aquela delícia, quem o toca é o Norman Watt-Roy dos Blockheads, aquilo não é coisa que se esqueça e eu ouvi-a no Batô pela primeira vez. Claro que não compreendi nada da canção, como podia?, não sabia quem eram os Clash nem como se dizia, mas que aquilo era novo e era excitante, isso era.”

Desde que reabriu, em outubro, a pandemia impõe máscaras aos funcionários, mas não aos clientes

Era isso que o Batô então fazia: passava música nova, descobria artistas e mostrava-os em estreia na pista, antes de toda a gente, e aquela música dos Clash, do disco “Sandinista”, que só havia ainda em importação, acabava de sair. “E eu estava lá porque o meu pai era um dos donos, o fundador original e era dia de festa, o Batô fazia dez anos, tinha a mesma idade que eu, e deixaram-me estar na cabina do DJ.”

Mas houve outra coisa que impressionou ainda mais o pequeno José Carlos: o aspeto da discoteca. Decorada como se fosse o interior de um barco, o Batô – a denominação é uma corruptela do nome feminino francês “bateau”, e lê-se como o original – é como uma nau virada ao contrário, com o porão e o convés no teto e a pista no lugar do céu. Tem também escotilhas em vez de janelas, tem velas, cordas, carris, tem a roda grande de um leme, tem uma grande âncora de ferro fundido, preta e sorridente, ali fundeada desde o princípio. E para o José Carlos Soares, estar ali era como estar num parque de diversões – era melhor: era como estar dentro de uma baleia, era como se ele fosse Ishmael à procura do Pequod, o baleeiro perdido, e fosse engolido por Moby Dick.

Do tempo da elite da Belle Époque do Sr. Soares

“Tudo aquilo era novo, lindo, cheio de glamour”, diz Carlos Soares, o pai, o célebre Sr. Soares, agora com 84 anos, fundador do Batô em 1971, que está ao lado com o filho. “Era a Belle Époque, outros tempos, recebíamos aqui a fina flor da Foz do Porto, a melhor sociedade, os grandes carros de alta cilindrada, havia gente que vinha só para ver as belas máquinas a estacionar. Era outro tempo, as mulheres eram distintas, vestiam-se de forma especial para a noite, e nós éramos uma casa de seleção, éramos a única verdadeira discoteca, só havia uma boate, a Dona Urraca, essa abriu em 1967 em plena Foz Velha, e nós viemos de lá para abrir o Batô. E tínhamos a melhor música, uma música à frente do tempo, era essa a nossa marca. Era uma casa diferente, era para as elites, pagava-se 50 escudos à entrada, uma garrafa de uísque custava 500 escudos ao cliente, a garrafa ficava aqui com uma etiqueta com o seu nome, e nem toda a gente podia entrar, a seleção à porta era muito forte, era quase impossível um homem entrar sem uma mulher”, diz o Sr. Soares que foi o primeiro gerente do Batô.

O Batô, local de referencia da noite de Leça da Palmeira, festeja este ano o 50.º aniversario

“A ideia foi de dois primos meus, o José Maria Sousa e o Joaquim Sousa, eram irmãos, éramos primos, somos os três fundadores originais e tivemos a intenção de expandir o ambiente selecionado do Dona Urraca. Aqui funcionava outra casa, era o Coutada, uma espécie de casa de fados à mistura com discoteca tropical e que tinha uns animais embalsamados a encher as paredes, era uma coisa um bocadinho esquisita, mas nós mudamos tudo. E a ideia funcionou, foi um sucesso, os clientes da Dona Urraca passaram a vir todos cá”, recorda o Soares pai. E acrescenta o Soares filho: “O que sempre definiu o Batô, além da sua decoração original, foi a música, foi a resistência voluntária às modas, às tendências que vêm e que vão. O Batô não, o Batô resistiu sempre na sua originalidade do rock independente, era um som muito à frente, e a música, que na altura era nova, mais ninguém a passava por aqui, os discos vinham de Inglaterra, não havia Internet, não havia Spotify, era tudo diferente e muito demorado, era preciso ter conhecimentos e contactos, é a música que define o caráter original do Batô, é isso que mantém a chama acesa”, diz José Carlos Soares, que mais tarde também foi curador e DJ, de 1998 a 2001. “Mas a música inicial, a definição do som que a casa tinha, essa foi feita pelo Alexandre Soares, foi ele o curador da Dona Urraca e foi ele que fez o som daqui”, e os dois Soares abanam a cabeça a concordar que sim. O filho continuou a entrar aqui; o pai não, geriu a casa durante 38 anos, passou lá uma vida, “fui muito, muito feliz”, depois passou-a, em 2010, e nunca mais lá entrou.

“Era quase uma promessa, houve um desgosto muito grande e nós saímos para dar a vez à juventude. Quer saber uma coisa engraçada que não sabe?”, pergunta o Sr. Soares, que não entrava no Batô há 11 anos, depois de fazer uns segundos de silêncio. “Neste tempo todo que aqui estive, tantas e tantas noites até às altas horas, nunca bebi uma gota de álcool! É verdade. Pois se este era o meu posto de trabalho, não podia estar aqui a beber, a responsabilidade era muito grande. E foi assim, aqui estive 38 anos e nunca ninguém me viu bêbado ou sequer a beber”.

O desgosto a que ele alude foi muito sério: o José Maria, o seu primo, que adorava a casa como ele, o José Maria morreu atropelado numa passadeira logo abaixo dali, do Largo do Castelo, na marginal de Leça da Palmeira (Matosinhos), por um condutor sicário, um acelerado que não respeitou a passagem do peão. “E sem o Zé Maria o sonho desfez-se, não quisemos continuar aqui.”

Do período cinzento das bolinhas à recuperação da traça original

E o Batô foi trespassado, era 2010, entrou uma gerência nova, Edgar Rodrigues e Paulo Pinho, ligados ao Via Rápida, a discoteca da zona industrial do Porto, cheios de ideias de mudança, a querer trazer público novo, música diferente. “Mas não deu certo, aliás correu mesmo muito mal”, diz agora Guilherme Estêvão, o sócio que se sucedeu. “Eles só aguentaram um ano e picos. Quiseram renovar isto, mais juventude, música às bolinhas, mas não conseguiram. Nem ganharam clientes novos, nem souberam manter os que já tinham. Estragaram tudo. Foi uma altura cinzenta para o Batô, a Baixa do Porto começava a bombar, era o tempo da movida nas Galerias de Paris, era a novidade que atraía os turistas e o Batô afundou-se, ficava longe do circuito da moda. Foi pena, foi um período escusado, eles penaram. Mas depois nós pegamos nisto.”

Guilherme Estêvão e António Cruz são os dois sócios-gerentes da nova era do velho Batô

Guilherme, 48 anos, que entrou a primeira vez no Batô com 17 anos e agora fala com António Cruz, também sócio, ao seu lado, respeitou o espírito fundador. “Era o que havia a fazer, recuperar a traça do espírito original”, sublinha António Cruz, o Tó Mané, um homem alto, grande e sério que se põe todas as noites discretamente ao fundo do bar e que fez ali o seu trajeto todo: apanha-copos, porteiro, barman, chefe de sala, gerente e agora sócio-gestor. “Já aqui fiz de tudo, mas comecei mesmo como cliente. Adorava vir ao Batô, a música era especial, era sempre nova, ouvi aqui os primeiros PIL, U2, o Bowie, os Violent Femmes, os Virgin Prunes, o Elvis Costello, os Cure, ouvi-os aqui todos pela primeira vez.” Também entrou ali com os mesmos 17 anos. “E nessa altura era diferente, era muito difícil entrar, às vezes ficava-se à porta, não dava, dizia o porteiro. Era assim, outros tempos, hoje ninguém vai para trás, a não ser que não esteja em condições, quem chegar embriagado não pode evidentemente entrar.”

José Araújo, antigo DJ, e vinis do outro século: Virgin Prunes e Elvis Costello, de 1982

Numa semana, o Gui, como é conhecido, é desinibido, é também piloto de aviação civil, esta semana vai voar para o Funchal e depois para Boston, ele e o Tó Mané, que já teve ali ao lado um pequeno bar, o Ai Quem Me Dera, reabriram o Batô. “Demorámos mais de um ano a reerguer a casa, a passar a palavra, a promover o revivalismo”, conta Tó Mané. “Mas conseguimos, o Batô voltou ao eixo e continua a navegar”, diz o Gui satisfeito a sorrir. Ele foi buscar antigos DJ, como o José Araújo, que está ali a vasculhar velhos vinis e a sorrir, mais o Ginho, o Jorge Frades, o Abel, o Zequinha, são eles a cápsula do som. “Isto é uma relíquia. Eu costumo dizer que o Batô é como a lampreia, ou se gosta muito ou se detesta. Para nossa sorte, são mais os que continuam a gostar. E está tudo igual, não está? É uma maravilha. Somos a discoteca mais antiga do país ainda a funcionar. Acho que temos a idade do Jamaica, de Lisboa, mas o Jamaica mudou agora de lugar, não foi?, saiu do Cais do Sodré [e mudou-se para o Cais do Gás, onde já reabriu]”, destaca o Gui.

Muitos dos que ainda lá vão nunca deixaram de ir

A ideia de se fazer uma discoteca que fosse o interior de um barco veio do arquiteto Paulo Guilherme. Mas quem o construiu foi o pai de Carlos Alberto, Albino Lopes, um construtor naval de Matosinhos. Carlos Alberto, que nessa altura “ainda era um rapazote” e hoje tem 64 anos, andou lá a ajudar o pai. “Passámos aqui três ou quatro meses a construir e decorar. A maioria dos materiais de madeira veio toda do Varna, um navio-motor búlgaro que logo após ter chegado ao largo do porto de Leixões, para onde se destinava, encalhou a sul da restinga do Cabedelo, foi junto das pedras denominadas Fogamanadas e Perlongas. Isto foi em 1968, foi motivado pelo mau tempo, que fez o navio descair para a zona de Lavadores, quando procurava ancoradouro seguro e encalhou. Ele ficou lá algum tempo até se desfazer, partiu-se todo, mas salvaram-se muitos materiais que agora estão aqui”, diz Carlos Alberto a olhar ao redor do Batô. Agora ele repara nas vigas, nas balaustradas, nas cordas de guindar, nas velas que já estiveram armadas mas depois foram retiradas – “foi a ASAE, não deixou, havia perigo em caso de fogo”, comenta o Tó Mané -, mais a roda do leme, as escotilhas das portas e a âncora que está logo à entrada, atracada, iluminada de azul profundo. Já não tem a lareira da decoração original, já não há sofás e pufes à volta da pista, passaram todos para os varandins do 2.º andar, e do teto pendem duas bolas de espelhos de girar.

Antigamente, o Batô tinha sofás e pufes à volta da pista, agora já não
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

É um sábado à noite da penúltima semana de novembro de 2021 e a casa, que leva oficialmente 98 pessoas mas muitas vezes teve muitas mais, está a encher-se de gente. O largo medieval do Castelo, com o Forte de Nossa Senhora das Neves à frente, o casario baixo e antigo atrás, abunda de bandos de pessoas, estão cheias as esplanadas do Bar do Egas e a Taberna 15, cacarejam conversas debaixo das acácias de onde pendem laços de Natal ainda desligados, as pessoas juntam-se em grupos a bafejar, muitas junto aos aquecedores-lampiões, a refogar do frio. E às portas do Batô, que são pretas com letras brancas, já há fila. Tudo é igual mas há um ritual novo: as pessoas chegam e puxam logo dos telemóveis que mostram depois ao porteiro. Ele aponta um sensor ao ecrã iluminado, dá uma luz verde e o cliente pode entrar. “É o certificado da vacina para a covid, estamos a pedir, quem não estiver vacinado não vai entrar”, explica Gui, que relembra que o Batô fechou em março de 2020 por causa da pandemia e só no mês passado pôde reabrir. “Mas nem aí estivemos longe dos nossos clientes, os que nos são mais fiéis, estivemos a passar música pela Internet, fazíamos playlists para não deixar ninguém órfão do Batô. Foi duro este período, mas aguentámo-nos, cá estamos e é aqui que vamos continuar – se a pandemia deixar.”

Hoje, a discoteca que dantes abria todos os dias menos à segunda-feira e ainda tinha matinés, está aberta às sextas e sábados à noite, mais na última quinta-feira de cada mês, das 23 às 4 horas, paga-se oito euros à entrada, que são conversíveis em bebida. Muito do público, que está na imensa faixa que vai dos 35 anos até para lá dos 60, é de clientes que nunca deixaram de ali ir, agora num exercício vital de quem tem o desejo e o gosto de rememorar o passado. “E muitos já trazem filhos ou sobrinhos, nunca deixaram de ser clientes, eles sabem, a casa é deles, é para eles que estamos cá”, diz o Gui.

No dia 30 de novembro, depois de amanhã, 600 meses depois da abertura original – são também 18 262 dias, 438 mil horas ou 26 milhões de segundos, como conta um cartaz à porta, o Batô vai fazer 50 anos. Haverá uma festa especial, só para entidades e convidados, vai partir-se bolo, champanhe e suspiros, há de tornar a troar o “Magnificent Seven” dos Clash, o “Blister in the Sun” dos Violent Femmes, o “Por quem não esqueci” dos Sétima Legião, mas agora misturado com as contemporaneidades indie dos Arcade Fire, National, Pixies, Muse, Dandy Warhols, Killers ou o tremendo “The dog days are over”, da Florence and the Machine.