Avós e netos. Como recuperar o tempo perdido?

Horácio Sá e seus netos, Tomás e Gonçalo, aliviaram as dores da ausência e as saudades à janela e à varanda

A pandemia implicou um interregno dos afetos, dos abraços, dos beijos, dos mimos. A ausência de toque aperta corações e os ponteiros do relógio não param.

Maria João Quintela, médica, presidente da Associação Portuguesa de Psicogerontologia, tem quatro netos, Afonso de 13 anos, Vasco de 12, Martim de 10, Clara de 8, e o quinto, uma menina, está quase a nascer. Os seus netos sempre tiveram consciência dos cuidados a ter por causa da pandemia, sobretudo para não contaminar os mais velhos, e uma grávida na família exige atenções redobradas. Os encontros, os jantares, as brincadeiras em casa da avó, deixaram de acontecer. E quando houve um pequeno alívio, beijos e abraços foram trocados por um cumprimento de roçar costas com costas. De resto, a comunicação passou a ser feita através dos aparelhos tecnológicos.

“Não sei quem está mais ansioso por voltar a ter uma relação afetiva, normalizada, espontânea, e não contida, uns com os outros. Se são os netos, se são os avós”, revela Maria João Quintela. A ligação é tão intensa que não há vírus que a destrua. “O amor entre nós é muito forte e é preciso ter muita força para contrariar esta vontade de abraçar.” O tempo da pandemia tem sido castigador. Os mais novos passaram meses em casa, ligados ao ensino à distância, e os mais velhos mais sós, muitos sem as rotinas habituais de ir buscar os netos à escola. “Sinto que os meus netos têm tanta vontade e necessidade de abraçar como nós, os mais velhos.” Com a vacinação, o contexto muda, os contactos tornam-se mais seguros do que há um ano, avós e netos encurtam distâncias.

Tomás Alves tem dez anos, Gonçalo Alves tem sete, são irmãos, e tiveram saudades dos avós. “Dos passeios, de muitas coisas, víamo-nos à distância, pela janela que temos na varanda”, conta Gonçalo. Tomás também sentiu saudades de ir à praia e de brincar nos jardins públicos sob o olhar atento do avô Horácio Sá. Quando tudo voltar ao que era, irão visitar monumentos, museus, passear ao ar livre, em contacto constante com a Natureza, porque é disso que gostam de fazer em conjunto.

Horácio Sá mede a temperatura corporal todos os dias desde março do ano passado, ainda hoje o faz, logo que se levanta. A pandemia obrigou-o a mudar a rotina com os netos, deixou de os ir buscar à escola, de levar Tomás às aulas de guitarra e aos treinos de hóquei, Gonçalo ao violino, levá-los e buscá-los ao ATL. Os contactos com os outros resumiram-se ao estritamente necessário. Horácio Sá, presidente do Fórum Sénior de Santa Maria da Feira, que anda pelas escolas do concelho a falar de afetos, a espalhar a mensagem de que todos precisam de abraços, escreveu um livro de banda desenhada sobre afetos para distribuir pelas crianças dos jardins de infância lá para outubro. Confessa que não se deixou abater pelas circunstâncias e, entretanto, foi vacinado. Antes, com todos os cuidados, a pé, levava o jantar a casa dos netos, tocava à campainha, metia a refeição no elevador, e via-os da varanda. Mandava-lhes beijinhos, batia com a mão no peito, para lhes transmitir o seu amor. Com os netos ali tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe, os gestos, os olhares, os telefonemas, a presença à distância, disfarçaram a ausência de proximidade. “Tentei nesse tempo, que foi muito doloroso, dar-lhes o máximo, que era o médio ou o mínimo”, destaca. As corridas e os saltos dos netos para os pescoços dos avôs já não aconteciam lá por casa.

Estudos comprovam a importância desta ligação entre os mais velhos e os mais novos. O contacto próximo entre avós e netos é amor, é ternura, é carinho. Óscar Ribeiro, professor no Departamento de Educação e Psicologia da Universidade de Aveiro e investigador na área do envelhecimento no Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, sublinha que as relações intergeracionais protegem da solidão e do isolamento social. “Ser avô, e exercer este papel na plenitude, é tipicamente um período de grande satisfação e alegria na vida dos mais velhos. Os avós têm o papel central de servir de referências importantes na vida dos netos (e dos filhos no exercício da sua parentalidade), ajudando-os nos trabalhos de casa, partilhando experiências, conhecimentos, conselhos e, sobretudo amor”, assinala.

Stella Bettencourt da Câmara, professora e investigadora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa, doutorada em Gerontologia, com vários estudos e publicações na área das relações intergeracionais, salienta essa ligação. “Avós e netos são duas gerações cúmplices. As relações são muito benéficas quer para os avós, nessa ligação ao futuro, quer para os netos, que têm carinho e amor.”

Os gestos, os olhares, o amor

Maria João Quintela conhece bem o significado desse amor. “É uma relação muito sólida e profunda e, acima de tudo, uma relação de segurança.” Uma relação que, de repente, não pôde ser como era, avós e netos entraram num processo de contenção, resiliência, e adaptação para que os laços não se rompessem de um dia para o outro. “A pandemia veio aguçar o engenho para outras formas de comunicação. Podemos não estar próximos fisicamente, mas podemos ter uma boa comunicação.” As tecnologias e plataformas digitais entraram em campo para aliviar saudades.

E o impacto nos mais novos? “As crianças tiveram uma experiência muito forte, não é habitual que tenham medo da doença e da morte durante períodos longos. A morte esteve muito perto e as crianças tiveram medo”, responde Maria João Quintela. Medo de contagiar os pais, medo de contagiar os avós. “Os miúdos tiveram rapidamente consciência de que havia um perigo de integridade física, que havia uma ameaça que não conseguiam controlar.”

A relação não será, portanto, a mesma por diversas circunstâncias. Há memórias do que aconteceu, do que se passa, do que marca, do que toca. Há saudades de saltarem para o colo dos avós, dos seus mimos sem restrições. E há ainda a noção de vulnerabilidade. “Vai ficar uma sensação de cautela e de noção de necessidade de proteção para todos”, frisa Maria João Quintela. A vontade de recuperar o tempo perdido é enorme. “Esta pandemia veio dar mais visibilidade à problemática da lonjura, do afastamento, da distância.”

Horácio Sá também anda preocupado com estas questões. “Este tempo automatizou um bocado os afetos, criou uma barreira invisível que temos de tentar que não seja muito profunda”, refere. Os receios são legítimos. “Temo que a prática de afetos, de ternura, de carinho, se tenha quebrado um pouco por causa destas regras que implementaram. Espero que essas regras para o bem-estar, para evitar o contágio, não toquem na parte humana e não retirem às nossas crianças essa sensibilidade para os afetos, para o carinho, para o amor.”

Os afetos precisam de contacto, de pele com pele, de carne e osso, de ver ao vivo sem ecrãs pelo meio. Quando a relação é robusta, nada será capaz de quebrá-la. “Quando os laços são fortes, eles mantêm-se. As famílias conseguiram, de alguma forma, reinventar essa ligação de afetos”, observa Stella Bettencourt da Câmara. Quando os laços são frágeis, o afastamento, a quebra e o corte podem acontecer num contexto pandémico. “O deslaçar de laços que até aí não eram tão profundos e que a pandemia por covid-19 veio mostrar.” A pandemia, segundo a professora e investigadora, não pode ser desculpa para esse distanciamento e as novas tecnologias vieram ajudar a não perder essa proximidade, mesmo que à distância.

A verdade é que os laços entre avós e netos sofreram várias alterações no atual contexto. Óscar Ribeiro lembra que o uso da tecnologia diminui distâncias físicas e intensifica relações. Todavia, é preciso ter noção de que estas interações não substituem o toque, “absolutamente fundamental para o desenvolvimento emocional e afetivo das crianças, mas também para o bem-estar mental dos mais velhos”.

“Além de gerir o distanciamento físico dos avós, que antes não só estavam fisicamente próximos como faziam parte de rotinas, crianças e adolescentes também tiveram de enfrentar o risco de contaminação e perda, já que os avós faziam parte do grupo de risco”, sustenta o investigador na área do envelhecimento.

Colos adiados, outras dinâmicas

As famílias foram gerindo os dias com outras dinâmicas, contactos em suspenso, encontros que não puderam acontecer, aniversários por comemorar, épocas festivas que saltaram do calendário. Há avós que reforçaram o distanciamento por vontade própria ou a pedido dos filhos. Há avós que, cientes dos riscos e com todos os cuidados, não abdicaram de ver os netos por uma janela de um carro ou de uma casa, consoante a evolução da pandemia. E há avós que vivem em lares e que, segundo Óscar Ribeiro, “mais intensamente poderão ter vivido o distanciamento do Mundo, da evolução do ciclo de vida familiar, da sua renovação geracional, apenas por meio de dispositivos móveis pontualmente cedidos. Emocionalmente sós”.

E não só. Há avós que ainda não conhecem os netos que nasceram em tempos de pandemia e há avós que só os conheceram meses depois do nascimento. Há avós que ainda não pegaram ao colo os filhos dos seus filhos. E há avós de primeira viagem na pandemia. Para estes, realça Óscar Ribeiro, a experiência “tornou-se muito diferente” do expectável. “Não só o modo de conhecer e interagir com o recém-chegado elemento da família se viu comprometido, gerindo-se uma distância inimaginável e um adiar doloroso do primeiro ‘pegar ao colo’, como também o apoio aos filhos, inexperientes no exercício da parentalidade e em isolamento, confinados, sofreu ajustes.”

A pandemia é uma situação inédita e serão necessários meses ou anos para compreender, em profundidade, os impactos psicológicos na saúde mental dos mais velhos e dos mais novos. “Não são só as pessoas mais velhas que sofrem com esta falta de contacto, os jovens também se sentem sozinhos e as questões do isolamento também foram importantes para eles”, adianta Stella Bettencourt da Câmara. Há estudos em marcha em vários países sobre as interações entre avós e netos durante a pandemia e primeiros efeitos do distanciamento imposto em termos emocionais nesta relação. “Há netos que não conhecem os avós, há avós que só conhecem os netos meses depois de nascerem e é necessária uma reflexão de como fazer esta aproximação fundamental para a vida futura”, acentua a professora e investigadora do ISCSP.

A gestão do tempo, o tipo de vida, a família que se quer, são questões a analisar depois de tudo isto. Com tudo o que isso implica. “Perdeu-se um ano de vida, num horizonte temporal de existência que se afigura cada vez mais curto, mas perdeu-se também um ano de proximidade das mudanças que, a ritmo frenético, ocorrem na infância”, repara Óscar Ribeiro. “As crianças crescem rápido e os avós, neste último ano, observaram com angústia os ponteiros do relógio a movimentarem-se a grande ritmo. Sentem-se a perder momentos importantes da vida dos netos e isso é algo que não está sob o seu controlo.”

Como recuperar o tempo perdido? Rentabilizar as competências em literacia digital dos mais velhos é um dos caminhos. Reforçar tempo de qualidade entre gerações é outro aspeto. Há esperança de que tudo isso aconteça e que os contactos entre os mais novos e os mais velhos sejam devidamente valorizados. Óscar Ribeiro deixa mais um conselho. “Que aprendamos a usar mais, ainda, o sorriso que o nosso olhar permite, algo que os olhos dos avós tão bem já sabem fazer.”