Em nome do sonho

Dois argentinos que vinham a contar ganhar 850 euros por mês e acabaram sem um tostão, com frio e com fome. Um brasileiro que chegou convencido de ter agente e contrato e foi abandonado à sorte. Um francês que pagou milhares de euros para atuar na Liga 2 e nunca fez um jogo. Da imigração ilegal ao tráfico de pessoas, das burlas aos contratos fictícios: como o futebol português se tem feito apetecível para um sem-fim de esquemas.

Imagine-se uma casa com janelas em falta, o frio invernal a entrar à bruta por ali dentro, obstinado a alojar-se em cada canto. Imaginem-se os meses mais rigorosos do ano em Miranda do Douro, cidade brigantina colada à fronteira, a interioridade que enregela sob múltiplas formas. Imagine-se que nesta casa de Miranda, além de parte das janelas em falta em pleno inverno, falta até a água quente. Para 12 argentinos que aterraram em Portugal em julho de 2019, o cenário descrito não é mero exercício de imaginação. É o relato da realidade que vieram cá encontrar, ao país que lhes tinha acenado com a promessa de serem jogadores de futebol profissional. Quase ano e meio depois do princípio de um sonho feito inferno, agora numa casa onde há janelas e conforto, dois deles acedem a puxar a fita atrás.

A falar, sem rostos nem nomes, das dores daqueles meses de desespero. A recordar como dormiam aos dois e três por quarto para se irem aquecendo. A lembrar das vezes que, a meio da noite, queriam ir à casa de banho e sonegavam a vontade para não terem de deambular por corredores que eram como frigoríficos. A partilhar que, para serem capazes de tomar banho, desatavam a fazer flexões, como que a ganhar ânimo para se aguentarem parcos segundos debaixo do chuveiro. A lamentar que o Grupo Desportivo Mirandês, clube dos distritais com que assinaram contrato, nunca lhes tenha pago um tostão. Que lhes tenha disponibilizado casa, sim, mas que nunca tenha resolvido o problema das janelas. Ou da água gelada. Que lhes tenha providenciado refeições sem tentar perceber se eram suficientes. “Volta e meia ficávamos com fome, porque era pouca comida. Muitas vezes nos juntámos a chorar.”

Desembrulhar a história implica recuar até à Argentina, onde ouviram falar de uns testes que iam decorrer em Buenos Aires, para captar futebolistas para Portugal. Decidiram ir. Em nome do sonho, pois. “Era um montão de jogadores, uns 300, não sei”, lembra um deles. No final, fizeram-lhes uma proposta: virem para a AD Oliveirense, na altura no terceiro escalão do futebol português, com contrato profissional de três anos, a troco de 850 euros por mês mais prémios, simpáticos, por sinal – 50 euros por vitória, 30 por empate, 20 por golo. “Não estranhámos porque não conhecíamos a realidade. Hoje teríamos percebido que era demasiado.” Na altura, disseram-lhes que se tratava de um projeto de um investidor argentino, que se preparava para injetar dinheiro no clube. O investidor em causa era Sebastian Diericx, argentino de 50 anos que, algures por essa altura, se tornaria presidente da SAD da AD Oliveirense, num enredo de final infeliz. Já lá vamos. Para eles, a história começou a cheirar a esturro quando, em julho, chegaram ao clube e perceberam que, só argentinos, eram 25 jogadores.

Jogadores argentinos passaram meses sem ser inscritos, numa casa sem as condições mínimas
(Leonel de Castro/Global Imagens)

Durante uma semana, ainda treinaram em Santa Maria de Oliveira. Depois, o grupo foi dividido. Parte dos atletas chegaram a ser inscritos pela AD Oliveirense SAD, que acabaria por fechar portas em fevereiro de 2020, afogada em dívidas. A outra parte, composta por 17 jogadores (cinco dos quais regressariam à Argentina pouco depois), seguiu de autocarro para Miranda do Douro. Lá, esperava-os um contrato de apenas um ano, com um salário 100 euros mais baixo em relação à promessa inicial. E esse seria o menor dos problemas. Primeiro, notaram uma desorganização total. Depois, perceberam que nem sequer estavam inscritos. “O clube dizia que o Sebastian [o investidor] não tinha pago as inscrições e o Sebastian dizia que a culpa era da Associação de Futebol de Bragança.” Certo é que tiveram de esperar até janeiro para poder jogar. Pouco depois, veio a pandemia e voltaram a parar, confinados numa casa onde havia janelas por colocar e água invariavelmente gelada, sem verem um cêntimo do vencimento prometido, sem dinheiro para voltarem a casa, com medo até de recorrer ao Sindicato dos Jogadores. Só o fariam meses depois, em meados do ano passado.

Foi já com a ajuda do sindicato que vários destes jogadores intentaram, em dezembro de 2020, uma ação laboral contra o Mirandês, a reclamar os salários em atraso e uma indemnização pelos danos causados. Contra Sebastian Diericx, o suposto investidor, pouco podem fazer, por não haver nenhum documento que o vincule à obrigação do pagamento de qualquer verba. Mesmo que ele ainda hoje lhes atenda o telefone, para dizer o mesmo que diz há ano e meio. “Que vai pagar.” Também a “Notícias Magazine” tentou contactar o argentino, mas nunca obteve resposta. Já a direção do Grupo Desportivo Mirandês disse estar “de consciência tranquila”. “Da nossa parte, em nada falhámos com o que foi acordado entre o Grupo Desportivo Mirandês e os atletas”, referiram, remetendo mais explicações para depois do término do processo judicial. Quanto aos dois argentinos que acederam a contar-nos a história deles, conseguiram entretanto ingressar num clube do Campeonato de Portugal que lhes paga o suficiente para viverem sem sobressaltos.

Mas o caso deles está longe de ser um episódio isolado. “É um problema estrutural do futebol português e nos últimos anos tem-se intensificado, em especial nas competições inferiores e com menor visibilidade, como é o caso do Campeonato de Portugal e dos escalões distritais”, relata Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol. Explicações? Várias. O dirigente aponta umas quantas. O facto de Portugal ser visto como uma plataforma de acesso à Europa do futebol, por exemplo. Um certo “desconhecimento das regras e amadorismo na gestão, que colocam muitos dirigentes nas mãos de pessoas sem escrúpulos”. As fragilidades financeiras de muitos clubes também. E ainda a chegada crescente de investidores estrangeiros que facilmente se tornam titulares de participações sociais numa sociedade desportiva. Eis o cocktail que tem feito do futebol português terreno apetecível para os esquemas contados nestas linhas.

O resultado, realça Evangelista, são “histórias dramáticas, de jogadores que pagam na origem a recrutadores para ter uma oportunidade de jogar futebol na Europa, iludidos com a promessa de serem profissionais”, acabando por encontrar condições muito diferentes das prometidas. “Além de se endividarem, ficam muitas vezes numa situação de grande fragilidade por entrarem de forma irregular em território nacional.” Segundo dados revelados pelo “Jornal de Notícias”, as fiscalizações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) a associações desportivas permitiram, desde 2019, detetar 110 atletas em situação irregular em Portugal. No início do ano, o SEF tinha ainda em curso 40 inquéritos-crime visando clubes de futebol do Campeonato de Portugal ou divisões inferiores por suspeita de prática de crimes de auxílio à imigração ilegal e tráfico de seres humanos relacionados com jogadores estrangeiros.

Ao deus-dará pelas ruas de Coimbra

É precisamente num quadro de auxílio à imigração ilegal que se encaixa o caso de Lucas Fernandes, brasileiro de 22 anos que em setembro de 2019 chegou a Portugal convicto de que ia assinar contrato profissional com o União 1919, clube dos distritais que é uma versão renovada do extinto União de Coimbra. Só que não só deu com o nariz na porta como foi abandonado à própria sorte. O enredo começa com um antigo treinador que o põe em contacto com o suposto agente Fabiano Menezes. “Falou-me num contrato de uma temporada, a ganhar 600 euros por mês, mais casa e alimentação. E o salário poderia aumentar de acordo com o desempenho”, garante Lucas. A ele, que queria tanto ser jogador de futebol profissional, soou-lhe a oferta irrecusável. Enviou rapidamente os documentos pedidos e pouco tempo depois recebeu uma alegada carta convite do União. “Estava tudo direito. Por isso, quando recebi o visto [um visto de turismo que lhe valeria até à formalização do contrato], fui para Portugal.” Pelo meio, jura, pagou 1 200 euros ao alegado agente, que terá ficado de o apanhar no aeroporto. Mas não apareceu. O sonho inquinava-se logo ali.

A custo, recorda, conseguiu que Fabiano lhe atendesse o telefone uma única vez, para lhe dizer que já não poderia ir para o União. Desesperado, Lucas pegou no dinheiro que lhe restava e rumou sozinho a Coimbra, onde deambulou pelas ruas até conseguir encontrar as instalações do clube. Lá chegado, apresentou a carta convite e pediu satisfações. Responderam-lhe que a parceria que tinham com o referido agente tinha sido desfeita. Terão acrescentado que nada poderiam fazer por ele. Mesmo que o atleta tenha suplicado por ajuda. Desnorteado, sem dinheiro para poder voltar para o Brasil e sem ter sequer onde dormir, Lucas sentiu-se ao deus-dará. Até que os pais se lembraram que tinham uma pessoa conhecida em Lisboa que lhe poderia dar guarida. Por lá, ainda bateu à porta de uns quantos clubes, na esperança de que algum lhe abrisse a porta. Mas o máximo que conseguiu foi que o deixassem treinar.

Lucas veio do Brasil com uma carta convite do União, mas de nada serviu. Acabou a deambular por Coimbra
(Foto: DR)

Foi então que recorreu ao Sindicato dos Jogadores. E que ficou a saber que o referido agente era já um “velho conhecido”, tendo estado envolvido noutro caso semelhante, com recrutamento de jogadores para o clube Caçadores de Ansião, em Leiria. Sem clube, com um visto que tinha os dias contados e com a esperança de se fazer profissional de futebol arrasada por uma experiência traumática, Lucas regressou então ao Brasil – com o apoio do sindicato, que lhe financiou a viagem. Mas o desalento segue-o até hoje. “Foi uma deceção muito grande. A minha ideia era sair do Brasil para melhorar a minha qualidade de vida e acabei por ficar desempregado e endividado. Entre tudo, gastei mais de três mil euros.” Atualmente, para minorar as dívidas e se ir sustentando, trabalha como cuidador de idosos em São Paulo. Mas nem assim abre mão do sonho de jogar em Portugal. “Gostaria de voltar, desta vez com uma coisa séria.”

Apresentou entretanto uma queixa-crime no DIAP da Comarca de Coimbra, visando Fabiano Menezes e o União. Contactado pela NM, o suposto agente (que nos disse fazer assessoria desportiva e não agenciamento de jogadores) contou uma versão bem diferente da relatada por Lucas e pelo sindicato. Assegurou que prontamente ajudou o atleta a voltar ao Brasil e que este regresso terá acontecido rapidamente, no espaço de seis dias. Disse ainda que logo devolveu ao pai do jogador “o valor do serviço” – os tais 1 200 euros, depreende-se. Quanto à carta convite, nada esclareceu, remetendo quaisquer informações adicionais para os advogados que entretanto terá contratado. A NM abordou ainda a direção responsável pelo União 1919 à data dos factos, mas esta declinou comentar oficialmente o assunto.

Paralelamente a situações que se enquadram nos crimes de auxílio à imigração ilegal e tráfico de pessoas, o sindicato tem-se deparado, cada vez mais, com uma intrincada teia de ilegalidades que vão desde os contratos simulados à falsificação de documentos, passando pela prestação de falsas declarações e pela burla. Muitas vezes, entrecruzam-se, numa espiral de aproveitamento fraudulento. Joaquim Evangelista detalha os esquemas mais comuns. “Acontece muito ser dito ao jogador estrangeiro que vai assinar um contrato de trabalho ao chegar a Portugal, mas esse documento só irá servir para apresentação no SEF e/ou entidades desportivas. Na realidade, o jogador não vai auferir o salário convencionado, acabará por pagar para ter a oportunidade de representar um clube. Nas situações mais graves existem recrutadores que forjam documentos alegadamente subscritos pelos clubes para ‘seduzir’ o atleta.” Há ainda casos em que os jogadores assinam efetivamente contrato, mas como roupeiros ou empregados de limpeza, o que permite aos emblemas furtarem-se a uma série de obrigações.

E quem tira partido de tudo isto? “Os dividendos são em primeiro lugar dos recrutadores, quase sempre falsos intermediários que recebem por fazer esta ponte ou prometer que fazem, com um dirigente e clube nacionais”, aponta Evangelista. Em segundo lugar, dos próprios dirigentes de clubes, geralmente de escalões inferiores e âmbito regional, que beneficiam da atividade de jogadores estrangeiros com custos diminutos. O dirigente refere ainda que vários clubes se prestam “a ser autênticas ‘barrigas de aluguer’, colocando-se nas mãos de agentes ou investidores que raramente dão a cara quando as coisas correm mal”.

Foi precisamente para combater a proliferação deste fenómeno que em 2015 foi estabelecido um protocolo entre a Liga Portugal, a Federação Portuguesa de Futebol (FPF), o Sindicato dos Jogadores e o SEF. Desde então, já foram dados passos importantes. O regulamento disciplinar da FPF passou a prever, por exemplo, que dirigentes e clubes pudessem ser sancionados por violação dos deveres de cuidado, ainda que o jogador estrangeiro se encontre a treinar no clube sem ter sido inscrito. No caso dos dirigentes, a pena pode implicar suspensão de atividade até dois anos. A FPF passou ainda a impedir a inscrição de amadores em situação irregular no país, numa tentativa, esclarece Evangelista, de combater os “casos de estrangeiros que entram com um visto de turismo e a quem é ‘arranjado’ um contrato simulado só para efeitos de apresentação de manifestação de interesse no SEF e inscrição desportiva”.

“Entrei no avião a pensar: ‘Já vai começar o sonho’”

O problema está ainda longe de resolvido, ainda assim. Tanto mais quanto estes recrutadores jogam com a ingenuidade e o desconhecimento de atletas que de repente creem ver escancaradas as portas do sonho. Allan Barroso, luso-francês de 21 anos, reconhece hoje que foi exatamente isso que lhe aconteceu. Em França, atuava no Mureaux, da divisão National 3 (equivalente ao quinto escalão). Nunca lhe pagaram para jogar futebol. Por isso, há muito carregava a ilusão de fazer testes em Portugal. A oportunidade surgiu no ano passado, quando lhe falaram num antigo jogador e suposto agente que organizava uns jogos entre vários aspirantes a profissionais, para que pudessem ser observados. Allan quis tentar a sorte. E à primeira vista o golpe de asa até lhe correu às mil maravilhas. No final, o alegado intermediário, Luís Gonzaga, ter-lhe-á dito que tinha muito potencial e que o iria ajudar a arranjar clube.

Allan quis tentar a sorte no futebol português

Passado uns tempos, chamou-o para treinar, de quarta a domingo, em Vieira de Minho. Transmitiu-lhe depois que o clube queria ficar com ele, mas não lhe poderia pagar. Então, assegura Allan, o suposto agente ter-lhe-á apresentado duas opções: ingressar num clube mais pequeno, sem receber, e ir subindo devagar, ou entrar logo num clube profissional. Mas para isso teria de abrir os cordões à bolsa. Para o convencer, Gonzaga ter-lhe-á vendido a ideia de que a prática é comum no futebol português. Allan diz que acreditou. Que queria tanto ser profissional que, mesmo sem grandes posses, estava determinado a conseguir os 12 mil euros que lhe foram pedidos para, supostamente, ingressar no Varzim. A princípio, foram cinco mil. Para os pagar, teve de vender a mota.

Em outubro, viajou para Portugal. Mas passou as duas primeiras semanas fechado porque apanhou covid. Depois, o agente chamou-o para assinar o suposto contrato, num hotel de Braga. Sem nenhum dirigente do Varzim presente. Nessa altura o jogador terá pago ao intermediário mais mil euros. Entretanto, começou a treinar no Varzim B. Mas não podia jogar. Gonzaga asseverava sempre que estava a tratar de regularizar a situação, enquanto pedia com insistência os outros seis mil euros. Allan fez finca-pé. Não pagaria até que tudo estivesse regularizado e pudesse jogar… algo que nunca aconteceu. Em novembro, contactou o sindicato e percebeu que o alegado contrato nunca tinha sido registado na FPF. Nem sequer estava inscrito em qualquer competição. Começou então a ver com clareza todos os indícios fraudulentos que lhe tinham escapado. Do suposto contrato, que até teria o carimbo e uma assinatura do clube, nem o nome completo do atleta constava. E número do documento de identificação nem vê-lo. Sem contrato, sem fundo de maneio, com o sonho estilhaçado, Allan voltou para França, onde continua a trabalhar como taxista.

Entretanto, prepara-se para apresentar uma queixa-crime contra o referido agente. Em causa poderá estar uma situação de burla e falsificação de documentos. Contactado pela “Notícias Magazine”, Luís Gonzaga garantiu apenas estar a tratar de tudo para devolver os seis mil euros o mais rápido possível. Já a direção do Varzim confirmou que o jogador esteve a treinar à experiência na equipa B, mas que nunca foi oferecido ao atleta qualquer vínculo contratual, demarcando-se totalmente da verba que terá sido paga pelo mesmo para ingressar no clube. “Viemos a saber pelo sindicato que foi apresentado ao jogador um contrato que tem assinaturas forjadas, retiradas de um outro documento que foi entregue ao suposto agente para intermediar a contratação de um jogador da Liga”, acusa o emblema poveiro. Para Allan, que em nome do sonho vendeu a mota e se preparava até para pedir um empréstimo, sobrou só um imenso rasto de desilusão. “Entrei no avião em França a pensar: ‘Já vai começar o meu sonho, já vou começar a minha carreira.’ E acabei burlado por uma pessoa que andou a brincar comigo e com a minha família. É muito triste.”