Quando vão ao médico, muitas mulheres sentem que as suas queixas são desvalorizadas e o diagnóstico demorado. Infelizmente, estão corretas: na medicina, como na sociedade, ainda há um viés de género que principalmente as penaliza.
A jornalista e editora norte-americana Maya Dusenbery soube que tinha artrite reumatoide aos 27 anos. O diagnóstico foi simples e rápido, mas levou-a a interessar-se por doenças autoimunes, sendo que acabou por perceber duas coisas: muitas pessoas não tinham a mesma sorte e a maioria dessas pessoas eram mulheres.
Maya recolheu testemunhos e leu centenas de estudos científicos para chegar a uma conclusão: há um preconceito de género na área médica que prejudica muito a saúde feminina. Acabou por escrever o truculento livro “Doing Harm: The Truth About How Bad Medicine and Lazy Science Leave Women Dismissed, Misdiagnosed, and Sick” (sem edição em português) onde defende que as mulheres, mais do que os homens, experimentam longos atrasos no diagnóstico e recebem, comparativamente, pior tratamento em muitas situações. “As mulheres tendem a demorar mais até ser diagnosticadas adequadamente em quase tudo”, garante-nos Maya Dusenbery, ao mesmo tempo que vai citando estudos que chegam a essa conclusão em assuntos tão diversos como doenças raras, tumores cerebrais, acidentes vasculares cerebrais (AVC) e a prescrição de analgésicos necessários.
Há duas formas principais de preconceito de género que prejudicam a saúde das mulheres, defende a autora. “O primeiro é uma lacuna de conhecimento, já que mesmo os bons médicos não têm tanta informação sobre o corpo, os sintomas e as condições que nos afetam.” O segundo é uma lacuna de confiança: “Há uma tendência para minimizar, normalizar e, especialmente, psicologizar os sintomas das mulheres: elas acabam muitas vezes por ser ‘dispensadas’ por médicos que lhes dizem que sofrem ‘apenas’ de stress ou ansiedade.” Uma narrativa que se aproxima assustadoramente dos diagnósticos de histeria a que eram votadas as mulheres até meados do século passado.
“Há um estudo americano de 2009 que mostra que mulheres de meia-idade que relatam sintomas de doenças cardíacas tem mais probabilidade do que os homens de ser diagnosticadas com um problema de saúde mental. Um outro estudo, sueco, de 2002, concluiu que perante pacientes com uma dor no pescoço, havia mais probabilidade de os médicos solicitarem exames de diagnóstico quando o paciente era do sexo masculino e mais probabilidade de fazer perguntas psicossociais quando era do sexo feminino”, exemplifica a autora.
O caso da cardiologia
Um exemplo clássico de como factos semelhantes podem ser interpretados de modo diferente – consoante o protagonista seja homem ou mulher – é o da mão no peito. Se um homem de 50 anos parar na rua e colocar a mão sobre o peito, é provável que os outros transeuntes considerem que ele está a ter um ataque cardíaco. Se uma mulher de 50 anos fizer o mesmo, é possível que pensem que se trata de uma crise de ansiedade.
E, sem surpresa, as doenças cardiovasculares são um dos exemplos de viés de género mais apontado também em medicina. “Sabemos que são doenças que afetam mais as mulheres do que os homens. Contudo, as mulheres são diagnosticadas mais tardiamente, e em 52% dos casos de enfarte agudo do miocárdio, a mulher morre antes de chegar ao hospital, contra 42% dos casos nos homens”, exemplifica a socióloga Amélia Augusto, da Secção de Sociologia da Saúde, da Associação Portuguesa de Sociologia. Outros estudos mostram que as mulheres têm mais probabilidades de morrer de um ataque cardíaco após entrarem na urgência, uma situação que poderá resultar do facto de os sintomas serem menos dolorosos e alarmantes.
“Um estudo do Journal of the American Heart Association avançou que quando as mulheres recebem as mesmas terapias dos homens, as suas hipóteses de sobrevivência são as mesmas. Ou seja, quando a terapia é aplicada em igualdade de circunstâncias, a taxa de sucesso é semelhante para ambos os sexos”, garante a também investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-ISCTE). E isso permite concluir que a razão para a mortalidade ser mais alta nas mulheres poderá estar menos nos ataques que sofrem e mais na ausência de uma resposta médica adequada.
“Em medicina, habitualmente aprendemos as doenças tendo em consideração sua probabilidade de apresentação. E isso faz sentido, porque diagnosticar é fazer escolhas para chegar a uma solução”, começa Sabine Oertelt-Prigione, médica especialista em medicina interna, saúde pública e medicina de género. “No entanto, se uma doença for percecionada como tipicamente feminina – como a osteoporose – ou tipicamente masculina – como costumavam ser os ataques cardíacos -, um paciente que não corresponda a esse estereótipo pode ser diagnosticado mais tarde. Porque os próprios pacientes não acham que isso possa ser um problema para eles e porque, como médicos, podemos subestimar a probabilidade de um paciente ter essa doença”, finaliza a médica e professora da Universidade Radboud, nos Países Baixos.
A especialista defende que tem havido um interesse crescente pela Medicina Sensível ao Sexo e Género (Sex and Gender Sensitive Medicine – SGSM – no original) nos últimos anos, no entanto, ela ainda é pouco ensinada nos currículos médicos, o que significa que o conhecimento é transmitido de forma irregular. “Além disso, embora tenhamos algum conhecimento em alguns campos, como cardiologia, essas informações muitas vezes podem não ser suficientes para entrar nas ‘guidelines’ e, portanto, a implementação prática ainda é limitada”, conclui.
Uma questão de investigação e de formação
Um artigo publicado no início de julho na revista Nature Communications chama a atenção para um aspeto pouco falado acerca da pandemia: a falta de importância que os ensaios clínicos sobre a covid-19 têm dado às questões de sexo e género. Sabe-se que os homens estão mais vulneráveis a doença severa, são mais hospitalizados e morrem mais, declaram os autores. Apesar disso, dos quase 4500 estudos clínicos registados sobre o SARS-CoV-2 e a COVID-19 que analisaram, apenas 4% planeia explicitamente abordar as diferenças de sexo e género na sua análise.
Para Sabine Oertelt-Prigione, uma das autoras do trabalho, essas análises específicas por sexo são uma das mais importantes formas de mitigar o problema do viés. “E precisamos também de conceber estudos específicos que preencham as lacunas de conhecimento identificadas, para que possamos expandir as ‘guidelines’ médicas atuais para que incluam informações específicas do sexo”, refere.
Durante muitas décadas – e até há cerca de 20 anos -, os ensaios clínicos para novas moléculas foram feitos sobretudo com homens adultos, sendo depois os resultados extrapolados para outros grupos, incluindo as mulheres adultas. O impacto desses dados desajustados ainda se faz sentir hoje em dia: em 2020, um estudo da Universidade de Berkeley e da Universidade de Chicago (EUA) mostrou que as mulheres são muito mais propensas a sofrerem efeitos secundários adversos de medicamentos antidepressivos, analgésicos e antiepiléticos porque, tipicamente, as dosagens foram baseadas em ensaios clínicos conduzidos quase exclusivamente em homens.
Hoje, o equilíbrio é maior e geralmente os ensaios incluem homens e mulheres em igual proporção, mas as análises específicas por sexo ou género ainda não são a norma – como mostra o caso concreto dos ensaios clínicos relacionados com a covid. Apesar disso, um grande número de estudos mostra que essa análise seria essencial, já que os sintomas, fatores de risco, eficácia dos medicamentos e efeitos secundários podem ser diferentes em homens e mulheres.
Amélia Augusto, que leciona sociologia da saúde em vários cursos de saúde, entre eles em medicina, defende que é necessário incluir nos currículos conteúdos sobre as diferenças de sexo e género, com vista a evitar avaliações e decisões baseadas neste viés. Mas garante que a principal frente de atuação deve ser mais ampla. “A medicina não é neutra, o conhecimento e as práticas médicas são influenciadas pelas questões de género e pelos estereótipos de género existentes na sociedade. E o viés de género na medicina ocorre, precisamente, como resultado dessa influência.” É ela que deve ser combatida em primeiro lugar.