Artrite reumatoide. Quando a inflamação é um ciclo vicioso

Joana, 38 anos de idade e 20 de doença, aprendeu a viver com dores diárias sem se deixar limitar (Foto: Ivan Del Val/Global Imagens)

É uma doença reumática, autoimune, crónica, de causas desconhecidas. Provoca dor, inchaço, rigidez. No limite, destrói o tecido articular. Carla e Joana aprenderam a viver com os movimentos presos.

Carla Piuça era uma criança irrequieta, chocava contra objetos, muitas vezes rastejava e não andava, passava a vida a chorar com dores. Os pais não sabiam o que se passava, ela, tão pequena, não sabia explicar o que sentia. Tinha cinco anos quando uma auxiliar do infantário reparou numa névoa na vista direita. Era uma catarata e Carla foi operada. Com sorte, foi parar às mãos de uma equipa médica multidisciplinar que percebeu o que eram, afinal, aquelas dores no seu corpo de menina. Sofria de artrite reumatoide, doença autoimune que inflama as articulações. Crónica, não tem cura.

Até aos 17 anos, a doença foi controlada com medicação, corticoides. “Nessa altura, começo a ter dores novamente no joelho”, recorda. Teve de tirar líquido do joelho, depois mais dores noutras articulações, um problema na anca, a prótese na anca, deslocação da prótese. Carla Piuça tem 42 anos, mora no Montijo, aguarda por uma operação para colocar a prótese no lugar, raspar a massa que se formou na calcificação para que essa pasta, que se tornou um gancho que lhe está a trilhar o músculo, desapareça e lhe dê sossego.

“Nunca deixei de fazer uma vida normal. Uma vida normal que é normal para mim”, conta. O tratamento biotecnológico, fármacos com anticorpos que combatem substâncias que destroem e causam inflamação, ajuda. “Até consegui engravidar e ter uma filha.”

Está reformada por invalidez, ainda trabalhou em joalharia e em costura, cortava os alinhavos com alicates, foi perdendo a destreza nas mãos. Não consegue dobrar os joelhos, anda de bengala na rua, de cadeira de rodas em casa, tem um cão de assistência cedido gratuitamente pela Ânima, associação sem fins lucrativos, instalada no Porto. Cóbi, assim se chama o cão, é um apoio importante, apanha objetos do chão, ajuda-a a tirar os sapatos, sempre atento a qualquer problema.

“Tenho algumas limitações que passaram a fazer parte da vida normal”, realça. Conduz, tem um carro com mudanças automáticas, e não desiste. “Se não posso ir para a direita, vou para a esquerda. Não faço dramas.”

Joana Pereira tinha 17 anos quando, uma manhã, se levantou da cama e tombou para a frente. Joelhos, tornozelos e pés estavam tão inchados e doridos que não conseguia caminhar. Hospital, raio-X, não havia fraturas, anti-inflamatórios, dor controlada. Ficou por ali.

“Passado pouco tempo, já não eram só os pés, eram as mãos, os cotovelos, os ombros”, lembra. Dores nas articulações, em membros diferentes, difíceis de suportar, análises com marcadores reumáticos, exames – um ano para chegar ao diagnóstico de artrite reumatoide.

Recuperar a qualidade de vida

“A doença era muito agressiva para a minha idade.” Aos 18 anos, uma prótese total da anca; aos 25, fusão de articulações nos pés; há dois anos, mais uma intervenção nos dedos das mãos e no punho esquerdo. Joana Pereira, cantora, tem agora 38 anos, 20 de artrite reumatoide. “Não tive sintomas de alerta, aconteceu de forma repentina. É um processo complexo. Hoje estamos bem, amanhã não estamos.” A certa altura, o seu corpo começou a recusar a medicação, devido a efeitos secundários. Esteve um ano sem terapêutica. A Associação Nacional de Doentes com Artrite Reumatoide foi um enorme apoio. Conseguiu o tratamento biotecnológico. “Não cura, mas trava a progressão da doença, recupera-se a qualidade de vida. Tenho sempre dores, principalmente de manhã, que são atenuadas por este tratamento.”

Joana Pereira confessa que é uma boa paciente, está sempre atenta a possíveis infeções porque é imunodeprimida, faz análises regulares, está em contacto permanente com o médico. Aconselha a não dar nada por adquirido porque é possível travar e controlar esta artrite. “Andamos cá para viver e não para sobreviver.”

Carla, que sofre desde menina de artrite reumatoide, tem em Cóbi um importante apoio no seu quotidiano
(Foto: Carlos Costa/Global Imagens)

A artrite reumatoide manifesta-se, normalmente, por volta dos 40, 45 anos. Carla e Joana, embora precoces na doença, encaixam-se na prevalência do sexo feminino. Cerca de três a quatro mulheres por cada homem. “A artrite reumatoide é uma doença crónica, inflamatória, reumática, autoimune. Como a maior parte destas doenças, é mais frequente nas mulheres”, adianta Helena Canhão, reumatologista, presidente da Sociedade Portuguesa de Reumatologia (SPR). Não há explicação para que assim seja, não se conhece a causa exata da doença. Há, porém, vários elementos em cima da mesa: predisposição genética, fatores hormonais, alterações de stress, um pós-parto ou um luto.

O que se sabe é que provoca dores, inflamação, calor, e tende a ser simétrica, afeta os dois membros. É uma inflamação que pode conduzir à destruição progressiva das articulações e à perda de função. Pode causar perda muscular por atrofia e, consequentemente, dificuldades motoras.

Um ataque do próprio organismo

As mãos, os pulsos, os cotovelos e os pés são as partes mais afetadas pela artrite reumatoide. Helena Canhão explica o que acontece no organismo. “O sistema imune responde de uma forma um pouco anómala e reativa.” Como um gatilho. “A pessoa entra num círculo vicioso de inflamação.” Uma inflamação que se autoalimenta e que destrói articulações.

“É um ataque do próprio organismo, um ataque com inflamação”, sublinha Luís Cunha Miranda, reumatologista. Não é uma dor de quando se bate numa cadeira ou numa mesa e depois passa. É uma dor persistente que se prolonga no tempo. “Não é normal que uma articulação sem traumatismo, e sem causa efetiva, doa mais de duas, três semanas.” E, acrescenta, “tem um impacto imediato e extraordinariamente rápido na vida das pessoas”. Dificuldades em levantar, vestir, caminhar, cuidar dos seus, cuidar de si.

A artrite não é uma artrose. A artrose está ligada ao desgaste das articulações, ao próprio envelhecimento. A artrite reumatoide é, segundo Luís Cunha Miranda, “uma das doenças mais paradigmáticas da reumatologia.” Com dor, sensação de prisão de movimentos, sobretudo ao início da manhã ou depois de períodos de repouso, e atinge múltiplas articulações. É uma dor inflamatória que existe mesmo em descanso. “A única prevenção é o tabaco que aumenta o risco de artrite reumatoide. Não fumar ajuda a que a pessoa tenha menos probabilidade de ter a doença”, assinala o reumatologista.

A inflamação pode ser controlada, a deformação implica próteses. Não é algo que desaparece por si. Isso é certo. “A doença tem de ser tratada, controlada e, cada vez mais, há armas para isso. Há vários fármacos que conseguem controlar a atividade da doença. Quanto mais cedo se diagnostica, mais cedo se controla, menos destruição existe”, sublinha a presidente da SPR.

Luís Cunha Miranda assegura que o correto diagnóstico, uma intervenção conjunta e um plano terapêutico estruturado fazem toda a diferença. Para uma vida o mais normal possível. “Aprender a viver com a doença, apesar da doença.” A 5 de abril assinala-se o Dia Nacional da Artrite Reumatoide. Uma doença que atinge cerca de 70 mil portugueses.