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Arquivistas, os guardiões do passado

Instalado no Martim Moniz, o Arquivo Fotográfico de Lisboa é uma espécie de enciclopédia ilustrada que nos leva ao passado da cidade através das 600 mil espécies fotográficas dos séculos XIX, XX e XXI (Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

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Os arquivos são os grandes responsáveis pelos documentos históricos que chegaram aos nossos dias. Ou seja, pela nossa memória coletiva. Noutras épocas, aos arquivistas cabia organizar, catalogar e guardar documentos em papel e outros objetos físicos. Hoje, com a explosão do online e dos suportes digitais, têm também de conservar informação imaterial. Como mudou o trabalho destes “garimpeiros” ao longo do tempo?

Durante décadas houve um mistério por resolver no Arquivo Fotográfico de Lisboa: quem teriam sido os autores do sistemático levantamento fotográfico de 3985 imagens de prédios e ruas lisboetas, feitas entre 1898 e 1908, que deram origem à criação daquele Arquivo em 1942? Se dúvidas houvesse sobre a importância dos arquivos, elas ficariam desfeitas com o desenlace da história, em 2017. “Foi uma investigação exaustiva, feita com base no próprio Arquivo da Câmara Municipal de Lisboa – que cruzou livros de contabilidade, requerimentos, atas e registos dos cemitérios -, que permitiu chegar ao nome destes dois funcionários da Câmara e dos familiares ainda vivos”, explica Isabel Corda, atual coordenadora do Arquivo Fotográfico. Foram Arthur Júlio Machado e José Cândido d’Assumpção e Souza, dois desenhadores no Serviço Geral de Obras da Câmara, os autores dos 3985 negativos a que chamam “Fundo Antigo” e que nos permitem viajar até à Lisboa do final do século XIX.

Instalado desde 1994 no número 246 da Rua da Palma, no Martim Moniz, o Arquivo Fotográfico é uma espécie de enciclopédia ilustrada que nos leva de volta ao passado da cidade através das 600 mil espécies fotográficas dos séculos XIX, XX e XXI que constituem o seu espólio. As mais antigas, as “Provas Originais”, datam de 1858 e são um conjunto de imagens dos primórdios da fotografia, com técnicas antigas como as albuminas, papéis diretos e cianotipia. As mais recentes foram feitas no primeiro confinamento, mostrando a cidade deserta durante o mês de março de 2020.

Um arquivista, garante Isabel Corda, de 55 anos e profissional na função há mais de 30, começa por ser uma espécie de investigador: a sua primeira tarefa é inspecionar o estado de conservação e a proveniência dos documentos antigos. A isso juntam-se tarefas como a higienização, o acondicionamento, a descrição e, agora, a digitalização, para que possam estar preservadas digitalmente e acessíveis online.

No laboratório do Arquivo Fotográfico de Lisboa esse trabalho é feito diariamente, através de um processo de captura de imagens desenvolvido pelo fotógrafo Luís Pavão Martins. Os negativos originais são colocados em cima de uma caixa de luz que permite reduzir as sombras e transparências e fotografados com uma câmara digital montada num braço vertical, sendo depois as imagens enviadas para o computador, tratadas digitalmente se necessário e ficando de imediato disponíveis para consulta online. No dia em que estivemos no local, estava a ser fotografado um álbum de Eduardo Portugal (1900-1958), que congelou no tempo algumas cenas quotidianas na praia da Nazaré.

Isabel Corda, coordenadora do Arquivo Fotográfico de Lisboa, não tem dúvidas: os arquivos continuarão a existir e a transformar-se
(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

Um arquivo, mais do que um mero conjunto de documentos organizados, é uma fonte de informação que salvaguarda a memória, seja ela administrativa, histórica ou cultural. Por isso, Isabel Corda tem duas certezas: os arquivos vão continuar a existir e vão continuar a transformar-se. “O ímpeto de registar, conservar e guardar é inato. Pode passar a existir um arquivo organizado de outro modo, como já aconteceu: os arquivos eram em papel, agora encontramos arquivos mistos ou exclusivamente digitais. E o futuro pode trazer transformações, mas a necessidade de conservar documentos com valor legal e patrimonial nunca vai desaparecer.”

Mais do que preservar, dar acesso

Um arquivista não é apenas um guardião do passado, é alguém que o torna acessível. Cristina Cortês, diretora do arquivo da Universidade de Aveiro (UA), prefere mesmo chamar-lhe “profissional de informação”, em vez de arquivista. “É alguém que tem de ter um conhecimento muito transversal de tecnologias porque hoje a preservação e acesso são essencialmente digitais. Os formatos tecnológicos vão sendo reinventados e os anteriores deixam de ser acessíveis”, pormenoriza a responsável. Tornar acessível implica passar para formatos digitais a informação que está em objetos antigos, como as cassetes de vídeo ou o vinil, aos quais hoje poucas pessoas têm acesso. A coleção de cerca de quatro mil discos em goma-laca – material anterior ao vinil – que a universidade possui, por exemplo, está a ser passada para formato digital. “Muitas destas músicas portuguesas nunca foram escutadas este século e, assim, vão poder voltar a ser ouvidas”, esclarece a responsável.

O arquivo da Universidade de Aveiro é dirigido por Cristina Cortês
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

No arquivo da UA, encontram-se conservados arquivos de outras instituições do distrito, como o Magistério Primário, bem como arquivos pessoais e coleções doadas à instituição – como o espólio do compositor Frederico de Freitas. “O objetivo não é apenas as coisas ficarem guardadas, mas também serem investigadas”, resume Cristina Cortês. “O nosso foco, como universidade, é produzir informação científica e académica com base nestes fundos e nestas coleções doadas.” Os discos de goma-laca, por exemplo, foram objeto de análise numa tese sobre a evolução do mercado discográfico português.

Mas o arquivo é composto, sobretudo, por toda a informação que a própria universidade produz, nomeadamente os 48 anos de teses e dissertações de licenciatura, mestrado e doutoramento realizadas pelos alunos. Todo esse material está acessível digitalmente num repositório de acesso livre para quem o queira consultar. Agora querem ir mais longe e preparam-se para lançar um repositório de gestão de dados científicos. “Os artigos científicos e teses são outputs de um percurso de investigação que pode incluir, por exemplo, a aplicação de inquéritos por questionários ou o registo de experiências em laboratório. Todos estes dados vão passar também a estar disponíveis numa plataforma de acesso aberto”, revela. É a verdadeira ciência aberta a funcionar: com os dados do processo de investigação disponíveis online, qualquer pessoa pode usar essa matéria-prima para fazer novas análises.

O arquivo da Universidade de Aveiro é composto, sobretudo, por toda a informação que a própria universidade produz, nomeadamente os 48 anos de teses e dissertações de licenciatura, mestrado e doutoramento realizadas pelos alunos
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

“Às vezes as pessoas dizem: ‘Mas está tudo na Internet’. Esquecem-se é que, para poder estar lá, teve de ser feito todo um trabalho de fundo – foi preciso alguém trabalhar os documentos e colocá-los lá”, diz Cristina Cortês a rir. E para que sejam verdadeiramente acessíveis, não basta colocá-los online. Cristina usa duas palavras com frequência quando explica o trabalho dos arquivistas: “representação” e “recuperação”. Isto significa em termos simples que os arquivistas têm de dar pistas (representar) para que alguém numa pesquisa a possa encontrar (recuperar). “O arquivista, para representar, tem de criar informação sobre a informação. Tem de colocar numa base de dados o título, os autores, fazer uma descrição do item.” É isso que torna possível aceder à informação através de uma pesquisa na Internet.

A casa do cinema português

A meio caminho entre a Chamboeira e o Freixial, no concelho de Loures, encontra-se uma área murada de 18 hectares à qual se acede por um discreto portão ladeado de muros imaculadamente brancos. É preciso depois subir um caminho de terra batida, entre as altas árvores, para chegar aquela que é a caixa-forte do cinema português. É aí, nos cofres do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM), da Cinemateca Portuguesa, que estão guardadas mais de 40 mil curtas e longas-metragens, 21 mil delas portuguesas. Entre as raridades que aqui se encontram preservadas estão, por exemplo, os filmes de 1896 de Aurélio da Paz dos Reis – os primeiros feitos por um realizador português, em Portugal – e uma coleção de cortes da censura do Estado Novo.

“No total, porque cada filme pode ter mais de um rolo, temos mais de 100 mil materiais em arquivo, entre películas, vídeo e suportes digitais, além de uma coleção de dez mil aparelhos e objetos cinematográficos, como câmaras e projetores, que permitem contar a história do cinema como tecnologia, da produção até à exibição”, conta Tiago Baptista, 45 anos, diretor do ANIM desde 2017.

Tiago Baptista é o diretor do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento da Cinemateca Portuguesa
(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

Conservar filmes antigos exige condições muito específicas. Os filmes em nitrato de celulose, por exemplo, um material altamente inflamável que tantos incêndios causou em cinemas e estúdios, vão para um depósito a que chamam o “bunker”, semienterrado no chão e a cinco minutos a pé do edifício principal. É um depósito especial, com 56 células individuais, cada uma com cerca de 300 rolos, para limitar as perdas em caso de combustão espontânea.

Já os filmes de película de acetato ou poliéster, que substituíram o nitrato em meados do século XX, ficam no edifício principal, num dos 11 cofres climatizados a temperatura que vão entre quatro graus centígrados – para matrizes de filmes a cor -, oito graus – para matrizes a preto e branco – e os 12 graus – para cópias. Sempre a 30% de humidade relativa. “A película tem água na sua composição química e reage à quantidade de água que há na atmosfera da sala: se há muita humidade, ela é absorvida e causa bolores e fungos, se o ambiente for muito seco, há transferência da água da película para a atmosfera e ela poderá ficar quebradiça”, precisa o responsável.

Até a forma como as películas são enroladas é tida em conta. “Este filme foi emprestado, o rolo vem muito compactado e estamos a colocá-lo com uma tensão média, para que as condições de cofre climatizado cheguem melhor à película”, descreve Tiago Baptista ao aproximar-se de uma mesa onde uma das trabalhadoras executa essa tarefa. O empréstimo de películas, tal como o empréstimo de obras de arte pelos museus, obedece a regras estritas, que implicam verificar as condições do filme à saída, no ponto de empréstimo e à chegada. “Muitas das que existem podem bem ser as últimas que vamos ter de algumas obras cinematográficas. Assim, temos de olhar para elas como artefactos culturais únicos e devemos garantir que duram o maior tempo possível.”

Inclinada sobre uma mesa, Bina, uma das restauradoras do ANIM, está a terminar um trabalho que lhe levou três dias: reconstituir dois metros e meio de perfurações partidas de um filme suíço. Antes disso, teve em mãos a reconstrução de uma cópia com cerca de 100 anos do filme “O primo Basílio”. “Este trabalho é essencial para depois se fazer a duplicação”, realça a especialista em restauração. Além da vertente de arquivo, o ANIM tem o único laboratório fotoquímico da Península Ibérica em pleno funcionamento, o que lhe permite fazer essas cópias.

É no Arquivo Nacional das Imagens em Movimento da Cinemateca Portuguesa que está localizado o único laboratório fotoquímico da Península Ibérica em pleno funcionamento
(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

O arquivo de destino dos filmes nativos-digitais e das obras digitalizadas é outro. Tem a vantagem de ocupar menos espaço, mas, admita-se, também tem menos encanto. Em vez dos cofres climatizados com centenas de metros quadrados de prateleiras e rolos empilhados, as obras digitais ocupam uma pequena sala não muito maior do que uma arrecadação onde se ergue uma pequena torre feita de vidro, plástico, fios e circuitos integrados com capacidade para 1.2 petabytes de informação. É neste sistema LTO (Linear Tape-Open), uma tecnologia de armazenamento de dados que combina discos rígidos e fita magnética, que serão armazenadas, entre outras, as mil digitalizações de filmes portugueses que a Cinemateca vai fazer em breve.

Apesar da preservação de películas não ser simples, sobretudo pelos recursos humanos e materiais que implica ter um laboratório fotoquímico que as duplique a funcionar, ela tem uma vantagem: sabe-se que funciona por muito tempo. “Temos películas de nitrato com 150 anos. No caso da tecnologia de preservação digital, não temos grandes garantias do desempenho destes equipamentos de preservação digital a longo prazo. Quanto tempo dura? É um grande ponto de interrogação.” Teremos de esperar para ver.