Valter Hugo Mãe

Aquilo que é muito


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Prometo-me preparar o Natal no ano inteiro. Nunca o faço. Na verdade, um ano é tão pouco para o tamanho do que gostaria de dedicar a cada pessoa que amo.

O velho que há uns meses barafustava contra as medidas de cautela e dizia que os mortos agora eram poucos, como se desimportantes, morreu. Lembro de lhe dizer que a morte é muita nem que para apenas uma pessoa. Ao morto e aos seus isso fica bastante evidente. O velho hoje saberá e talvez se arrependa daquele nariz de fora da máscara e, sobretudo, da raiva contra a enfermeira que tomava café exausta já a começar o dia.

A Fany é uma cadela confusa. Julga que pode montar os cães e procura engravidar o Crisóstomo nas tantas vezes que se encontram no jardim. Há dias, pela primeira vez, veio expressamente cumprimentar-me, pedindo-me a mão. Fiquei pasmo. O seu espírito inquieto não lhe permitia mais do que bisbilhotar os cães e saltar à pressa. Ao fim de anos, não sei quantos anos serão muitos, a cadela deu conta que gosto dela e que andava esganado para lhe fazer umas festas. Fiquei contente.

O desenho que comprei do Diogo Costa nos pequenos formatos da Galeria Sete parece um japonês ou uma japonesa. Ninguém se entende. Pode ser de um filme de Ozu, há quem garanta que é uma senhora e justifique com imagens que o google mostra, há quem diga que é o senhor da casa, antes de partir pela floresta adentro. Por vezes, mesmo diante dos grandes mestres, escolho alguém mais estreante. Das paredes cheias da galeria, o que me afectou no desenho do Diogo Costa foi a ternura. Queria ter comprado a outra figura. Não pode ser. A arte, mesmo de bolso, é uma dor na carteira. Um amigo, a partir da fotografia que enviei, diz que o desenho é muito de uma senhora. Eu não diria muito. Diria que é uma senhora ao centro da humanidade. Profunda. Perfeita. Amo-a.

É quase Natal e quando é Natal é sempre muito. Não tenho tudo o que queria entregar às pessoas. Distraí-me. Perdi-me com detalhes muito obstinados e não controlei a grande vastidão de vontades. Acontece-me sempre assim. Quero ser tão específico que fico pelo caminho e não cumpro. Prometo-me preparar o Natal no ano inteiro. Nunca o faço. Na verdade, um ano é tão pouco para o tamanho do que gostaria de dedicar a cada pessoa que amo. Julgo que amo para depois de muito. O que me angustia é talvez não o saber dizer. Dizê-lo pouco. Parecer menos do que é. Deixar que passe a oportunidade de sermos muito, mas muito mais felizes.

Faço planos para que no novo ano volte às montanhas para escrever. Subitamente, as montanhas são o suporte perfeito, certa terra fundamental para a minha cabeça. Ainda não entendi o que faz com que seja assim. Estou diante da praia a vida inteira. Alguma coisa se normaliza apenas longe desta água toda. O pescador diz-me que nem é muita água. Só é muita quando se vai no barco e se percebe que não há costa à vista. Ali, diz ele, é que sente começarem os livros. Imagina, porque conhece os livros a partir do que o espanta.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)