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Anúncio de assassínio

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Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

No átrio do 3.º andar, atravessando as vozes empasteladas de advogados, réus e testemunhas que esperavam a chamada, e ainda a três metros da sala 2, uma frase escapuliu-se da audiência – a porta estava aberta – e serpenteou até mim:

– … que configura um crime de ameaça agravada…

Entrei como o pescador que tem de apanhar uma minhoca na lama antes do peixe no rio. Nas margens de uma cadeira, sentado esperei. Uma mulher de tremendo cabelo negro estava no banco dos réus com o rabo-de-cavalo a tapar-lhe as costas. À frente, porém, o pescoço e os ombros trazia-os livres, só um caicai em plástica pele de leopardo cortava a nudez. Calças de ganga apertadíssimas enfaixavam-lhe as pernas de garça. Sabrinas douradas nos pés. O mais notável, no entanto, era a maneira como a mulher ouvia falar de si e do seu crime: abanava a cabeça a fazer que não – silenciosa mas a dizer não, não – e foi com surpresa que ouvi a juíza dizer que “a arguida admite todos os factos e confessa-se arrependida”. Era já a sentença, chegava-se ao resumo, à verdade e consequência de um amor falhado.

– A senhora e Pedro Alexandre mantiveram um relacionamento amoroso, um namoro um com o outro, durante cerca de seis meses. Desde o ano de 2018 que o ofendido coabitava com Noelma como se casados fossem, coisa de que arguida esteve sempre ciente. No contexto de namoro que mantiveram, a arguida mandou mensagens escritas e telefónicas, fazendo uso do telemóvel, dirigiu as seguintes expressões, das quais ele ficou bem ciente:

[A juíza numa voz limpa de críticas e morais, só factos, mas o não ritmado da cabeça da mulher cresceu como um metrónomo que marca o andamento do concerto.]

– Mato-vos aos dois, caralho, cansada dessa puta, lê bem com muita atenção, olha que queria falar contigo na boa, mas uma vez que não atendes, ok, amanhã estás fodido, como digo e sabes porquê, porque não tens escapatória, vai haver merda a sério pelo que estás a fazer. Mandas ligar às 19 horas e, mais uma vez, palhaça que me fizeste, amanhã teremos um encontro não muito agradável. Chega, chega, vou-te deixar uma marca, depois chama a polícia, chega.

[A mulher sorriu, observando-se de fora. Fui eu que fiz isto, onde tinhas tu a cabeça? Avisaste que o matavas, fizeste anúncio de um assassínio. Mas pensar nele com ela e nela com ele…] A juíza lia de voz cristalina:

– Em 15 de Junho de 2020, às 19.43 horas: “Para não me fazeres de parva, vou-te cortar a cara a ti e a ela”. O ofendido tomou conhecimento das expressões da arguida, em local não apurado situado na área do município de Lisboa ao declarar ao ofendido “mato-vos aos dois, caralho, amanhã teremos um encontro não muito agradável, chega, chega, vou-te deixar uma marca”, bem sabia a arguida que tais expressões em que anunciava ao ofendido a intenção de o matar e de o marcar, e bem assim de atentar contra a vida de Noelma, pessoa com quem sabia que o ofendido mantinha relacionamento afectivo, eram adequadas a causar medo e inquietação e ainda assim não se coibiu de as proferir.

[Pausa. Respiração.]

– Conforme já se disse, a arguida confessou os factos, diz-se arrependida. Solteira, tem filha de 26 anos de idade que não depende economicamente dela, aufere 460 euros da actividade profissional de empregada de limpezas, tem o 8.º ano de escolaridade, não tem antecedentes criminais.

Pagará 60 dias de multa, a cinco euros por dia, 40 dias de prisão subsidiária, taxas, custas do processo. Muita escada, muito chão.

– … também vai ser remetido o boletim criminal, mas sem transcrição, e de imediato irá fazer-se o depósito da sentença, bem como a competente notificação… a senhora arguida está-me a fazer que sim com a cabeça, compreendeu a sentença, e pode ir à sua vida.

Acabando de ouvir a sentença, com efeito, a mulher agora fazia que sim. Pouco antes, abanara a cabeça em círculos mais lentos, como se estivesse na pista, debaixo da bola de espelhos, a dançar sozinha o slow das três da manhã. Sorria. Olhei-a melhor quando saiu e tinha a pele cinza, um pouco quebrada e, parece, sem amor.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)