Anorexia: o insustentável peso da magreza

O confinamento fez disparar os pedidos de ajuda de doentes com perturbações do comportamento alimentar, anorexia em concreto. Os conflitos familiares e a desregulação das refeições explicam as recaídas de quem tem uma relação patológica com a comida. A luta contra o insustentável peso da magreza até à cura, na primeira pessoa.

“Ainda hoje, quando me olho ao espelho, acho que estou bem.” Ana Beatriz, 16 anos, luta há três contra a anorexia nervosa. Pesa 41 quilogramas (kg), tem noção de que sofre de uma doença grave e que precisa de comer e ganhar peso para segurar a vida. Porém, algo tão instintivo para a maioria de nós é uma tormenta para Ana Beatriz. E agora, sem aulas, confinada com a família, a ansiedade é palpável.

Depois de muitos altos e baixos, Ana Beatriz diz-se “estagnada”. No peso, que persistentemente não aumenta, nos sonhos – “não consigo imaginar o que poderei vir a ser”. O discurso é racional e estruturado. Aceita a doença que a acometeu, como um vírus que se lhe agarrou à pele e contra o qual luta todos os dias, todas as horas. A anorexia é vivida a tempo inteiro. Relata, quase com objetividade distante, o que se passa no corpo, a fraqueza, a amenorreia, a sensação de frio extremo a ponto de a fazer chorar de dores.

Nem sempre foi assim. Até aos 13 anos, comia normalmente. Pesava 53 kg e media 1,65 m – mais ou menos a altura que tem agora porque a severa privação alimentar travou o crescimento. “Desenvolvi-me mais cedo do que as minhas amigas. Comecei a comparar-me com elas e a achar que estava gorda. Resolvi reduzir nos açúcares, evitar certos alimentos mais calóricos, ter mais cuidado com o que comia.”

Era o início, insidioso, de uma doença que embora tenha uma incidência relativamente baixa (0,3 a 0,4% da população) assume uma gravidade clínica extrema, pelas sequelas a longo prazo, e porque pode conduzir à morte, seja por desnutrição, seja por suicídio (é a perturbação mental com a taxa mais elevada). Afeta sobretudo meninas (90% dos casos) com traços de perfeccionismo, obstinação e baixa flexibilidade.

A evitação de certos alimentos rapidamente escalou para uma restrição generalizada. O peso de Ana Beatriz começou a cair a pique e não passou despercebido à família. “A minha mãe, que costumava ir comigo às aulas de natação, notou que eu estava cada vez mais magra. Levou-me à pediatra, que aconselhou os meus pais a vigiar a situação.” Nessa altura, pesava 46 kg e já recorria a todo o tipo de estratégia para evitar comer. “De manhã, escondia a comida nos bolsos ou na mochila e depois deitava fora. Quando almoçava na escola, dizia sempre que não gostava da comida e não comia. O pior era ao jantar. Chorava quase todos os dias porque achava que a quantidade de comida que os meus pais me queriam obrigar a comer era sempre exagerada.”

“Sentia-me confortável com o meu peso”

Como continuava a perder peso, os pais procuraram ajuda e foi referenciada para psiquiatria. O diagnóstico de anorexia nervosa caiu que nem uma bomba no seio da família. “Nunca acreditei que tinha esse problema. Sentia-me bem, confortável com o meu peso. Achava que não precisava de comer. Às vezes, até sentia fome, mas não a ponto de querer comer. Ainda hoje é assim. E é isso que me impede de recuperar”, reconhece Ana Beatriz.

A fase mais negra foi em 2019, quando foi internada. Pesava 43 kg. Passou seis longas semanas no Hospital de Magalhães Lemos, no Porto. “O peso aumentou, mas a cabeça não acompanhou. Comi porque queria sair de lá, embora todos fossem cinco estelas. Saí com 48 kg. Quando regressei a casa, voltou tudo ao mesmo.” O confinamento de 2020 foi vivido sob pressão máxima. E este também potencia a ansiedade. Mas está alerta, consciente dos riscos. Quer recuperar a saúde. A vida. “Houve uma fase em que não gostava nada de mim. Estou a descobrir a minha força.”

Joana Saraiva, pedopsiquiatra do Centro Hospitalar e Universitário do Porto, confirma o impacto da pandemia em quem sofre de perturbações do comportamento alimentar: “Nestes últimos meses, o número de pedidos de novas consultas disparou e muitas jovens que já se encontravam clinicamente estáveis viram o seu estado agravado, até porque houve uma dificuldade acrescida em dar resposta em termos de consulta presencial/internamentos”. Mais horas em casa, mais desgaste, mais conflitos, também devido a questões alimentares.

“Mesmo em adolescentes previamente saudáveis, o confinamento que ocorreu durante a pandemia levou, como é obvio, a um maior isolamento, impediu a frequência da escola e de atividades extracurriculares e fez com que muitos indivíduos ficassem mais centrados na alimentação.” Acresce o quadro de maior ansiedade que contribui para a “desregulação emocional que, muitas vezes, acaba por ter ligação direta com a ingestão alimentar”, explica a psiquiatra da infância.

“Ainda agora ando a tratar o que estraguei”

Aos 32 anos, Vânia Gandra aprendeu a lidar com a doença cujos primeiros sintomas surgiram aos 16. Na altura, na pequena localidade do concelho de Tomar onde ainda vive, ninguém sabia o que era anorexia. Mas quando deixou de comer e perdeu 20 kg em poucos meses – com 1,73 m, atingiu os 50 kg -, a mãe levou-a à médica de família, que colocou um nome no sofrimento da adolescente. Como a maioria dos que padecem dessa perturbação, entrou em negação. Não aceitava que estava magra, não percebia por que a queriam forçar a alimentar-se. “Nessa fase, tornei-me uma mentirosa profissional para evitar comer.”

Foram quatro anos a debater-se com o peso, que deixaram mazelas. “Estraguei muito o meu corpo. Tenho um estômago frágil, uma hérnia do hiato, os dentes e o cabelo ficaram fracos. Ainda agora ando a tratar o que estraguei. As consequências ficam para a vida.” Quando olha para trás, compreende que traços de personalidade, como o perfeccionismo e a falta de autoestima, contribuíram para o quadro clínico. “Procurava um ideal. Tinha pavor de engordar. Queria gostar mais de mim, mas nunca me sentia bem.”

Por volta dos 20 anos, começou a gerir melhor a relação com a comida, complicada desde menina. Pensou que estava curada até que, oito anos depois, a crise emocional provocada por uma separação fê-la regressar à distorcida zona de conforto da anorexia. Deixou de comer e o peso afundou. Andou assim uns meses, recuperou sozinha – nunca teve, aliás, ajuda especializada – até 2019. Um pico de stresse no trabalho, nova recaída. “As pessoas voltaram a dizer que eu estava muito magra, mas eu nunca me sinto magra”, admite. No ano passado, durante o confinamento, engordou e o pânico regressou. “Comecei a correr para não engordar. Passei a usar essa estratégia. Tenho medo de voltar a descontrolar-me, tenho sempre medo de engordar. Não acredito que a anorexia se cure, lida-se com ela, aprendemos estratégias. Mas lutamos sempre com a visão distorcida de nós próprios.”

As estatísticas mostram que metade dos doentes recupera totalmente, sustenta Joana Saraiva, acrescentando que “à medida que o tempo vai passando, a probabilidade de recaída diminui”. No entanto, períodos de grandes mudanças e/ou exigências emocionais poderão trazer de novo alguns sintomas. “Há que estar atento e atuar de imediato.”

“Não é uma escolha, é uma doença”

Quando milhares de famílias estão forçadas a estar juntas, 24 sobre 24 horas, o potencial de conflito agudiza-se. A adolescência é a fase de maior risco. “É quando se constrói a autonomia, definem-se limites, começa a experienciar-se o corpo e a fazer-se comparações”, refere Cristina Pontes. Esse é processo de desenvolvimento normal. A anorexia nervosa surge geralmente no fim de infância e na adolescência. “Não é uma escolha, é uma doença. Ninguém escolhe emagrecer até aos 30 kg”, sublinha a psicóloga, que trabalha há 13 anos com estes doentes no Centro Hospital e Universitário de São João, Porto.

Sendo uma patologia que distorce a perceção corporal e corrompe a cognição e sentimentos, a adesão ao tratamento é o maior desafio. Há um desfasamento entre o que a razão sussurra e o que as emoções gritam. Nos casos mais extremos, o internamento pode ser a diferença entre a vida e a morte. Catarina Reis esteve dois meses hospitalizada no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Tinha 16 anos e debatia-se com a anorexia desde os 14. Chegou a pesar 38 kg. “Eu não aceitava que tinha de comer. Os meus pais não entendiam que eu recusasse a comida. As quezílias eram constantes. Senti que o Mundo estava contra mim”, recorda.

Curada desde os 20 anos e mãe de quatro filhos, Catarina Reis diz: “A anorexia é como uma dependência. Não comer era o meu vício”
(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

No hospital, aprendeu a negociar. Um quilo para falar ao telefone, mais um quilo para ter visitas – tudo plasmado num acordo que tinha de cumprir para ter alta. “Comi para sair de lá o mais rapidamente que consegui.” De regresso a casa, volta o frio na barriga na hora da balança. Valia tudo para não aumentar de peso. “Houve uma altura que tinha insónias e, durante a noite, via televisão e andava na sala de um lado para o outro para queimar calorias.” Resume: “A anorexia é como uma dependência. Não comer era o meu vício”.

Foram mais alguns anos assim, até que, aos 20 anos, um apelo desesperado do namorado, agora marido e pai dos quatro filhos, finalmente fez soar o clique da mudança. Desde essa idade que está curada. Criou com Vânia, “a irmã na anorexia”, o blogue “Duas bloggers, duas histórias, uma doença”, para dar a conhecer que é possível vencer a patologia.

Mãe e ex-anorética, conhece a necessidade de os pais estarem atentos, mas sem criar demasiada pressão. “Sentarem-se à mesa, de olhos fixos, não ajuda quem está a fazer um esforço para comer.” Fernando Correia, pai de Ana Beatriz, sentiu na pele o dilema entre querer alimentar a debilitada filha – “todos os dias tinha medo de receber um telefonema com más notícias…” – e confiar no processo terapêutico. “Agora, evito falar do assunto para não a pressionar, mas estou presente para o que ela precisa”, conta este pai que até se contorce em posturas de ioga para acompanhar a filha.

Negociar uma bolacha ou meia batata

Quando um filho adoece, toda a família sofre. No caso da anorexia, há um enorme capital de culpabilização por parte dos pais que é fundamental reverter. José Camolas, nutricionista do Santa Maria (Lisboa), fala da dificuldade de conciliar as expectativas dos progenitores (que avaliam como insuficiente a quantidade de comida prescrita) e aquilo que os doentes são realmente capazes de ingerir. “Estamos a falar de negociar pequenas quantidades. Se não come arroz nem batata, a proposta pode ser uma colher de sopa de arroz ou metade de uma batata. Se só bebe uma chávena de leite, acrescentar uma bolacha ou um quarto de pão. A reposição alimentar tem de ser muito gradual para permitir a adaptação física (muitos doentes ficam indispostos quando voltam a comer mais) e evitar a rejeição emocional”, exemplifica. “Por vezes, é preciso pedir aos pais que saiam da consulta, o que é terrível para eles. Mas o trabalho do nutricionista passa por criar uma relação de confiança com o paciente.” Com a pandemia a desregular os hábitos alimentares (“houve uma verdadeira epidemia de produção de pão e bolos em casa”) e a limitar os contactos com os pacientes, há mais recaídas.

A anorexia assume uma expressão clínica mais dramática, mas há outras perturbações do comportamento alimentar. A bulimia, por exemplo, é mais prevalente (atinge 1 a 1,5% da população, maioritariamente mulheres), mas passa mais despercebida porque os pacientes geralmente mantêm um peso normal. “É muitas vezes vivida em segredo, os doentes mantêm a doença em privado, a família e os amigos não reconhecem o problema. Às vezes, sofrem sozinhos durante anos. Consideram que conseguem resolver sozinhos o problema ou sentem vergonha em recorrer ao psiquiatra”, destaca Isabel Brandão.

A princesa Diana debateu-se anos com a bulimia. Na última temporada da série “The Crown” são evidentes os episódios de ingestão descontrolada seguida da indução de vómitos. “Trata-se de uma condição de vida que traz muito sofrimento psicológico. São doentes em que há maior prevalência de depressão, assim como de suicídio”, refere a psiquiatra do S. João.

Na solidão de um sofrimento tão incompreensível para o outro, estas doenças transformam-se quase na “melhor amiga”, diz Cristina Pontes. O resgate dessa perigosa zona de conforto é o caminho para a cura.

Doenças e comportamento alimentar

Anorexia nervosa

• Caracteriza-se por pavor de engordar e uma distorção da imagem corporal, que leva a que, mesmo estando com peso muito baixo, estes doentes não se sintam magros e recusem, por isso, alimentar-se
• Atinge sobretudo raparigas dos 13 aos 15 anos

Fatores de risco: características individuais (genética, personalidade) e familiares e fatores socioculturais (ideal de magreza, pressão dos pares, dos media)

Sinais de alerta: acentuada perda de peso, recusa de comer, estratégias para evitar as refeições e dissimular a perda de peso

Cura: 50% dos casos. As hipóteses de recaídas decrescem com o tempo, mas fases de maior stresse podem espoletar episódios

Bulimia nervosa

• Ingestão alimentar compulsiva seguida de comportamentos compensatórios, como longo jejum, excesso de exercício físico, vómitos ou laxantes. Subjaz o medo de engordar, mas ao contrário da anorexia, não se caracteriza por magreza patológica
• Afeta mais mulheres, a partir da adolescência e pode manter-se na vida adulta

Fatores de risco: aumento de peso na infância, insatisfação com o corpo na adolescência, doença psiquiátrica dos pais

Sinais de alerta: como conseguem manter um peso normal, estes doentes passam mais despercebidos. É importante vigiar oscilações de peso e eventuais comportamentos compensatórios