Animais que curam feridas

O contacto com cavalos e burros promove a regulação de emoções e o equilíbrio de sentidos (Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

A terapia com animais promove a regulação de emoções e a estimulação cognitiva e até já é usada na mediação em tribunais. Mas, em Portugal, a profissão não é reconhecida e os tratamentos não são comparticipados.

Pedro Afonso experimentou pela primeira vez a terapia há um ano. Uma doença neuromuscular degenerativa impede o menino de oito anos de falar e de andar e obriga-o a ser alimentado por uma sonda. “Está sempre bastante tenso, tem sempre os dedos fechados, como uma garra, mas, perto dos cães, a mão relaxa”, realça o pai, Marco Santos, que recorreu a uma clínica de reabilitação pediátrica na Maia e à Ladra Comigo, um centro de terapia auxiliada por cães. A atenção muda e o olhar torna-se capaz de transmitir as palavras que a boca esmaga entre os lábios. Relaxa os braços e as pernas e “abre logo os dedos”. Marco Santos recorreu, a título pessoal, à Ladra Comigo, que não tem acordos com o Estado. Nas sessões estão presentes a fisioterapeuta e a terapeuta com o cão, o que se traduz em gastos de mais de 60 euros por semana.

Durante as intervenções, são realizados circuitos com mecos no chão e exercícios como o de colocar um biscoito na mão de Pedro Afonso que uma cadela come ao primeiro piscar de olhos do menino. São também utilizadas bolas de várias cores para colar ao colete que o cão usa. Com o olhar, Pedro Afonso escolhe a que prefere, refere Clara Cardoso, terapeuta da Ladra Comigo. A criança reage “muito bem” à presença de Laika, uma cadela rafeira que abana a cauda, feliz, e que ironicamente lhe tira a cabeça da lua. Nada pede, mas reage a um biscoito ou a um carinho. A criança devolve-lhe com atenção e contacto ocular. “O cão não nos julga, olha sempre com o mesmo amor, quer a pessoa esteja a fazer bem ou mal. Já nós, mesmo sem palavras, fazemo-lo.”

Em Portugal, a terapia assistida com animais recorre principalmente a cães, cavalos e burros. Crianças com problemas de desenvolvimento cognitivo e motor não são os os únicos a beneficiar deste acompanhamento. Clara Cardoso estava no lar Santo António, na Maia, quando Maria Antonieta foi institucionalizada, em 2016. “A psicóloga chamou logo por mim para fazer a integração.” Na altura, a paciente ainda tinha autonomia. Cinco anos depois, desloca-se numa cadeira de rodas e a máscara de proteção esconde-lhe o sorriso. A doença de Parkinson e a demência não dão margem para marcha-atrás e agravaram as dificuldades da idosa de 86 anos. Numa época em que o contacto com os familiares é escasso ou inexistente, o animal favorece a criação de laços. “Hoje conseguiu fazer festinhas à Gema e, no final, até conseguiu dizer-me adeus. A Gema faz milagres.”

Cavalo equilibra os sentidos

Não é assim que Patrícia Pinote, terapeuta ocupacional que trabalha com cavalos, descreve os resultados da profissão. “Isto não é magia nenhuma, tem a ver com o facto de o cavalo equilibrar os nossos sentidos, e nós, para funcionarmos, precisamos de um adequado processo de integração sensorial, temos de ter os sentidos em harmonia”, assegura. O cavalo tem características que “ajudam a revelar” esse equilíbrio e a reeducar o cérebro para realizar movimentos adequados, para uma maior funcionalidade.

Há 20 anos na área, Patrícia Pinote faz reabilitação neuromotora em crianças, jovens e adultos com problemas motores e cognitivos no hipódromo do Campo Grande. Já passou dois anos à procura do cavalo ideal, que tem de ser “calmo e tolerante”. São cavalos “especiais” porque aceitam “meninos que não ajudam, nomeadamente com o peso do corpo “. Como o cavalo é uma presa, tem os sentidos muito apurados, torna-se muito sensitivo e sabe reconhecer quem não oferece perigo, o que permite o envolvimento.

Uma história que “marcou imenso” a terapeuta, entre as que já ajudou a contar, começa com um “era uma vez” pouco promissor. “Um menino com uma deficiência motora e intelectual muito grave começou a andar sozinho aos 11 anos, depois de o acompanhar desde os quatro.” Foi no picadeiro que deu os primeiros passos. “Houve um dia em que ele saiu do cavalo, olhou para o avô que estava à espera e começou, de forma muito instável, a andar sozinho em direção a ele”, rememora Patrícia Pinote.

Mauro Paulino, da Mind – Instituto de Psicologia Clínica e Forense, defende as terapias auxiliadas por animais, para “estimular a memória, a organização, a autoconfiança, a interação e o discurso e eliminar a ansiedade”. Há benefícios, já documentados em estudos internacionais, nomeadamente em crianças que, por estarem com um cão e por poderem acariciá-lo, “não sentem uma carga tão pesada na prestação de declarações em tribunal”.

Ajuda em casos de guarda partilhada

A mediação de cães no contexto do Tribunal de Família e Menores e de vítimas de alienação parental em Portugal é um exclusivo da equipa de Pedro Paiva. O terapeuta da Pet B Havior lida com trissomias 21 e 17, paralisia cerebral, demência, perturbação bipolar e busca da identidade de género, em escolas. Mas uma das histórias “mais marcantes” que narra tem como protagonista “uma menina com bastantes reticências quanto à parentalidade”. O processo prolongou-se por quatro anos devido à “resistência da menina à presença do pai”, mas, ao fim de seis meses de intervenção, a criança já passava fins de semana com o progenitor. “Hoje, é uma criança perfeitamente feliz, na guarda partilhada.”

Apesar dos benefícios, a atividade não é reconhecida em muitos países, entre os quais Portugal. Tiffany Howell, investigadora da área de cognição animal e saúde pública da Universidade La Trobe, em Melbourne (Austrália), explica: “Uma das limitações reais da investigação existente é não haver uma descrição completa do que o animal faz na sessão de terapia. Está deitado a um canto ou está ativamente envolvido? Não sabemos. Quando tivermos uma maior compreensão do que acontece, será possível determinar as espécies com maior impacto.

Em Portugal, a Associação Nacional de Equitação Terapêutica, que Patrícia Pinote foi convidada a integrar, está decidida a levar a discussão ao Parlamento, para que o tratamento possa ser comparticipado. Considera que a atividade deve estar circunscrita sobretudo a terapeutas, profissionais de saúde e professores do ensino especial. “Estamos a tentar andar para a frente com a associação, que junta equipas e técnicos de vários locais, para ver se finalmente a atividade é organizada e legislada.”