Ana Garcia Martins: das malhas das redes sociais também nasce um Natal solidário

Ana Garcia Martins largou os holofotes das televisões, os palcos da comédia e os microfones do podcast para um dia de solidariedade num lugar onde se oferecem futuros a mães em situação de risco. Há muito que a influencer apoia a Ajuda de Mãe, a quadra foi só o pretexto para uma visita demorada. A infância, o lado altruísta, os filhos, o divórcio e a morte do pai, numa viagem natalícia ao mundo de uma das mulheres mais influentes do país.

Uma chamada rápida, para uma marca de produtos infantis. E, de repente, Ana Garcia Martins, ou melhor, A Pipoca Mais Doce, consegue toalhitas para 200 bebés. Assim, num ápice. São 14.45 horas, sexta-feira de uma semana de roda-viva, de corrupio entre entrevistas, autógrafos, selfies. Afinal, acabou de lançar um livro com o mesmo nome do podcast (Separados de Fresco) que lhe pôs o divórcio nas parangonas de jornais e revistas. Mal tinha posto os pés dentro da Ajuda de Mãe, a associação que há muito apoia e que quis visitar neste Natal, quando Maria Flor Mendonça, da direção, se lamentava da escassez de toalhitas. A blogger e influencer não esperou. Ligou ali mesmo para a Chicco. E fez chegar um presente de Natal antecipado.

Mas é preciso rebobinar a cassete do tempo até à época em que o blogue “A Pipoca Mais Doce” ainda batia as redes sociais nas visitas para tomar o pulso a uma ligação que já soma anos. “Andava à procura de uma instituição à qual pudesse doar coisas do meu filho, do Mateus, que já tem oito anos”, conta a influenciadora digital. Tinha roupas e artigos de bebé e “queria entregar num sítio onde pudesse fazer realmente a diferença”. Esbarrou na Ajuda de Mãe, em boa hora. Conheceu-lhe a história. E nunca mais largou a associação que dá a mão a mães em situação de risco. Desde jovens que engravidam ainda menores a vítimas de violência doméstica que se veem forçadas a sair de casa na gravidez ou de bebé nos braços.

Ana Garcia Martins está à porta do número 282 da Rua Arco do Carvalhão, Lisboa. É aqui que se embrulham futuros para oferecer a mães de esperança caducada. A Ajuda de Mãe apoia entre 200 a 300 mulheres. Não só lhes permite continuar a estudar ali mesmo, enquanto toma conta dos seus bebés, como as apoia já em idade adulta, com formação e reintegração no mercado de trabalho, com bolsas de emprego, com acompanhamento psicológico, com roupas e comida. E ainda acolhe cerca de 40 mães em três residências. Um trabalho infinito. De que Edimira, de 17 anos, bem pode ser o rosto. Está a acabar de ter uma aula quando vê A Pipoca Mais Doce e faz questão de a levar até ao berçário, escadas abaixo, para conhecer a sua Kelly. Ali estava ela, entre paredes azul-celeste, de babygrow branco. “Tem quatro meses. É minha esta princesa. Estou cá a estudar e ela fica aqui. De vez em quando venho cá dar de mamar”, relata à influencer.

A associação sobrevive sobretudo de donativos e precisa de tanta coisa. “Dinheiro é útil. Bens essenciais de bebé, fraldas, toalhitas, leite, produtos de higiene. Estamos sempre um bocado aflitos. As mães que vivem connosco ou que aqui vêm não pagam nada”, desabafa Maria Flor Mendonça, para logo depois se desfazer em elogios a Ana Garcia Martins, com ela à escuta. “É muito nossa amiga. Desde que cá veio a primeira vez, a relação nunca mais parou. Lembra-se sempre de nós, apoia com muita regularidade. E apoia-nos sem show off. Vem trazer roupas dos miúdos, quando vende alguma coisa dá-nos sempre comissão.”

O poder dos influencers

O elogio tem adesão à realidade. Todos os anos, a blogger organiza duas vendas com amigas. Juntam-se para vender o que têm a mais em casa, desde roupa a acessórios. Não cobram entrada, mas pedem a quem vai que leve produtos para doar à Ajuda de Mãe. “Coisas tão simples como um pacote de fraldas, umas papas, umas toalhitas. Tudo somado, faz realmente muita diferença na vida daquelas mães.” E uma parte das vendas destes eventos também reverte para a associação. Mas o apoio não se esgota aqui, longe disso. Trabalhando com marcas, sempre que há iniciativas que possam envolver uma instituição, Ana guarda poucas hesitações: é para a Ajuda de Mãe. “Já me juntei a várias marcas, como o Boticário, e fomos oferecer presentes às mães. A verdade é que os donativos acabam sempre por ser muito direcionados para as crianças e, às vezes, esquecemo-nos que estas mães precisam de uma coisa tão simples como terem o mimo de receber um perfume, um batom. Saberem que alguém se lembrou delas também enquanto mulheres além de mães.”

E não há dinheiro que pague as reações de felicidade. “É incrível vê-las tão felizes quando entregamos os presentes. E ver o quão reconhecidas elas são ao trabalho que a Ajuda de Mãe faz com elas. É um trabalho absolutamente imprescindível para que estas mães possam, pelo menos, perspetivar um futuro para elas e para os seus filhos.” Parece irónico, mas, se recuarmos aos primórdios do blogue que lhe deu nome e que está prestes a completar 18 anos, o instinto maternal não lhe corria no sangue. Nem tampouco a maternidade parecia entrar nos planos. Ana cresceu, tem 40 anos e dois filhos, Mateus e Benedita. E o público cresceu com ela. “Claro que, sendo mãe, é impossível não me pôr no papel daquelas mulheres e pensar que se fosse comigo seria ultra importante haver uma porta onde pudesse bater e saber que me iam acolher. A Ajuda de Mãe permite que as mães sonhem e concretizem uma vida melhor.”

Edimira, jovem mãe de 17 anos, saiu apressada de uma aula para levar A Pipoca Mais Doce até ao berçário da Ajuda de Mãe e lhe apresentar a sua Kelly, de quatro meses

Se, tantas vezes, o papel dos influencers “tende a ser menorizado ou associado só a coisas fúteis”, Ana é a prova viva de que as redes sociais carregam uma fortuna muito para lá disso. É uma das 25 mulheres mais influentes do país, segundo a revista “Executiva”, ao lado de nomes como Cristina Ferreira, Paula Amorim, Marta Temido ou Elvira Fortunato. E é a influenciadora digital com mais notoriedade em Portugal, de acordo com a Marktest.

“Tendo uma voz e uma plataforma que chega a milhares de pessoas, acho que é uma obrigação associarmo-nos a causas.” Basta olhar para a recente onda de solidariedade que juntou Carmen Garcia, enfermeira e autora do blogue “Mãe Imperfeita”, à influencer Madalena Abecasis, angariando mais de 135 mil euros para garantir uma casa digna a uma família em agonia. “Esse caso mostra que podemos fazer a diferença. Que as influencers podem ter este papel de mobilizar muita gente. Há uns anos corri uma maratona e propus-me doar mil euros por cada quilómetro percorrido à Ala Pediátrica do IPO. Ou seja, o objetivo eram 42 mil euros e conseguimos juntar 75 mil. É incrível, não é?”. A pergunta é retórica, mas Ana responde com mais. No último fim de semana, juntou-se como voluntária à recolha de alimentos do Banco Alimentar. “Porque devemos dar o exemplo e chegarmo-nos à frente.”

“Com filhos, é impossível não viver a época com outro encanto”

A verdade é que a solidariedade sempre esteve bem presente, desde a meninice. Ana recua à infância. “Ajudar pessoas em condições mais desfavorecidas sempre foi uma coisa que me foi incutida pelos meus pais.” Mas a exposição pública e o poder de influência trouxeram-lhe, inevitavelmente, outra dimensão. E como é que era o Natal em miúda? “Guardo as melhores memórias, como qualquer criança que cresceu na década de 1980. Os meus pais faziam a cena toda do Pai Natal, de deixarmos o copo de leite e bolachas para ele vir buscar. E, sendo mais simples do que aquele que os meus filhos vivem atualmente, estava sempre a contar os dias para que chegasse o Natal.” A magia perdeu-se no meio da vida adulta até que os filhos a trouxeram de volta. “Voltei a gostar muito mais desta época por poder reviver o Natal pelos olhos deles, é engraçado ver a inocência com que vivem tudo isto. Com filhos, é impossível não viver esta época com outro encanto.”

Há tradições que cumpre religiosamente. Monta a árvore sozinha com músicas natalícias a soar nas colunas, para surpreender os miúdos quando chegam a casa. Compra calendários do advento, para todos os dias se abrir uma portinha. Faz a encenação do Pai Natal, muito embora os oito anos de Mateus já não lhe atribuam muita credibilidade. “Mas a Benedita ainda é pequenina [3 anos], acha a maior graça e ainda é fácil fazê-la acreditar.” Não adora bacalhau cozido, mas não falha na noite da consoada. E as prendas também entram no frenesim do espírito. Não quer deixar para a última hora. “Sempre fui muito pouco disciplinada nisso. Estou a tentar ser mais regrada de ano para ano. Até porque detesto aquela confusão de andar nas lojas e de já não haver nada.” Está a melhorar: já comprou presentes e até já embrulhou alguns. Não gosta de dar só por dar. “Gosto de pensar no que vou oferecer a cada pessoa, que saiba que realmente as vai deixar felizes. E isso implica algum trabalho.” Conta amigos com mais de duas décadas, a tarefa vai ficando difícil.

Nos filhos, tem regras. Ou, pelo menos, tenta. Definiu um número limitado, só que é difícil pôr travão nos avós. “Acho que, hoje em dia, os brinquedos são muito mais acessíveis. É muito fácil enlouquecermos e os miúdos receberem 50 presentes. Não quero que associem o Natal exclusivamente a prendas. E também por isso os levei comigo à sede do Banco Alimentar para participarem na separação dos alimentos e terem noção de que há vidas muito diferentes da nossa.” Tão diferentes que há crianças sem presentes para abrir na noite em que o homem de barbas brancas parece esquecer algumas portas.

É a propósito disso que lhe ocorre uma iniciativa em que participa todos os anos. Os Anjinhos de Natal, do Exército de Salvação. “Basicamente, as famílias que não podem oferecer um presente aos filhos recorrem aos anjinhos, inscrevem-se e depois é a sociedade – somos nós – que adota um anjinho. Compramos o presente, mas é oferecido como se fossem os pais.” Mateus e Benedita participam, escolhem um brinquedo e uma peça de roupa para entregar num dos muitos pontos de distribuição do Exército de Salvação. “Faço questão de ir com os miúdos escolher, para perceberem que o Natal não pode ser só a loucura de abrir presentes. Têm de dar mais valor àquilo que recebem.”

Nas contas da vida, a memória das piores prendas não foge aos clássicos do que recebia em catraia dos avós. “Pijamas, lençóis, toalhas, aquela ideia do enxoval que achava uma seca e que agora é o que mais gosto de receber.” Então e o melhor? Neste campo, sobram certezas. “A minha primeira Barbie, lembro-me perfeitamente da excitação que foi. Brinquei com ela durante anos e anos. Foi das coisas que mais me emocionaram no Natal.”

A primeira consoada separada

Depois de um divórcio público, que deu palco a um podcast com episódios que chegavam a ser ouvidos por quase cem mil pessoas, este é o primeiro Natal separada. Descomplica, é desassombrada. “Já temos guarda partilhada, vai ser na mesma lógica. Vão passar o 24 [de dezembro] com um e o 25 com outro. Eu ligo mais ao 24, gosto mais da noite de Natal do que propriamente do dia, portanto vão passar a noite comigo e com a minha mãe.” Os filhos, espera ela, não vão estranhar. Já estão adaptados à nova realidade. “E acho até que eles acham graça. Têm presentes de um lado e do outro. E aquela confusão toda de andarem de casa em casa.” Só que este também vai ser o primeiro Natal de Ana sem o pai, que faleceu neste ano. Uma nota negra na época. “Ele sempre adorou o Natal, aquela coisa de ter os netos com ele. E será, sem dúvida, a maior falta deste ano.”

Estar novamente apaixonada e numa boa fase traz-lhe paz de espírito. De tal forma que nem precisa de dar largas à imaginação. Se pudesse escolher qualquer presente, depois de um ano duro, a resposta tem pressa: “Uma viagem. Depois de dois anos com tantas restrições e impedimentos, em que vimos a nossa vida tão condicionada, viajar é o melhor presente.” Não é exigente, ironiza. “Qualquer destino onde estejam mais de 30 graus.”

Podcast, comédia e televisão

Voltando ao princípio, a semana de corridas desenfreadas, no meio da apresentação do seu sexto livro – desta vez escrito a quatro mãos, com David Cristina – chegou ao fim. O culpado é o podcast “Separados de Fresco”. Em que dois amigos, Ana Garcia Martins e David Cristina, quiseram falar de microfone aberto, e na primeira pessoa, sobre a dureza de uma separação, de estarem sozinhos. “Criámos o podcast por uma questão de sobrevivência própria. Para nos ajudarmos um ao outro, numa fase negra, pesada e difícil. Tanto eu como o David Cristina estávamos a passar pelo mesmo processo.” Abriram ao público a porta das conversas privadas em que afogavam as mágoas. E receberam empatia, muita. “Porque muito mais pessoas estão a passar por este processo, ou irão passar, já que 70% dos casamentos acabam em divórcio. Portanto, quem ainda não está lá, prepare-se, porque é muito provável que vá acabar divorciado”, brinca. A ideia era ser “quase terapêutico” para quem está no mesmo barco. “Até porque tanto eu como o David, enquanto pessoas recém-separadas, procurámos livros e coisas que nos pudessem ajudar. E não havia quase nada ou o que havia era tudo muito técnico.”

O tema ainda envolve o estigma de assumir que um projeto de vida, que se queria precisamente para a vida, falhou. E os dois falam sobre isso de forma “despudorada, leve, com humor”. “De todas as coisas que fiz, esta foi a única que foi absolutamente consensual, que não gerou polémica. A maior parte das pessoas empatizou connosco. Porque isto toca muita gente.” O projeto virou espetáculo, correu o país. E, agora, materializou-se em livro, que também “dá uma boa prenda de Natal”. Só lhes falta um musical, satiriza ela. A química entre os dois foi de tal forma aplaudida que vem aí mais. Mais um podcast, em janeiro. Será o “Pijaminha de Cenas”. Desta vez, não é sobre divórcio, mas sobre tudo e sobre nada, dois amigos à conversa.

Certo é que o sentido de humor desde sempre morou n’A Pipoca Mais Doce. Costuma dizer que se não o tivesse, não saía da cama. Faz piadas com as maiores desgraças da sua vida. O humor ajuda-a com tudo. Corrosivo, sarcástico, negro, sempre foi assim que pintou todos os textos do blogue. E o stand up acabou por também entrar na vida de Ana Garcia Martins, num acaso que parecia destinado a acontecer. Dos roasts na SIC Radical saltou para uma tour em nome próprio, em 2019. E daí para os palcos com Herman José, o gigante do humor, neste ano. “O stand up é um bocadinho como voltar aos tempos iniciais do blogue, em que não tinha qualquer espécie de filtro. Não havia redes sociais, tínhamos todos muito mais liberdade. Estamos numa altura em que as pessoas se indignam com tudo, por mais inócuo e inofensivo que seja aquilo que dizemos, ou que seja objetivamente uma piada. E percebi que a minha escrita ficou muito condicionada por causa disso.”

Carregou esse lado para a comédia, onde assume uma personagem, um alter ego. Tal como no Big Brother, o reality show onde é comentadora. Para onde leva o “azedume, o distanciamento, a petulância”. É a humorista quem o diz. E foi essa frontalidade que lhe trouxe reconhecimento do grande público. Sempre se confessou adepta do formato, um “guilty pleasure” que nunca se esforçou por esconder. A apresentadora da TVI Maria Botelho Moniz apelidou-a de “rainha do comentário mordaz”. O cognome pegou e Ana Garcia Martins veste-o, sem pudores, mesmo que contraste com uma faceta solidária, que parece abafada no meio de tanto ruído.

É péssima a traçar planos de vida. Não tem nenhum grande plano para 2022. As oportunidades vão surgindo e faz uma triagem natural. Gosta de ser desafiada. Foi assim que foi parar ao Big Brother, foi assim que começou a escrever livros e que acabou no stand up. E é assim que promete continuar.

* A realização da produção fotográfica com Ana Garcia Martins contou com caracterização e cabelos de Joaquim Guerra e a colaboração do hotel InterContinental Lisbon

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