Alan Weisman: “Se adotássemos a política de um filho, como a China fez, no final deste século atingiríamos o equilíbrio”

Um mundo em que o ser humano desapareceu do mapa não é uma construção catastrofista, mas uma reflexão com argumentos que são garras contra a ação humana. Em 2007, Alan Weisman foi aos quatro cantos do planeta e viu como a Terra ficará bem sem o ser humano. Agora, a pandemia tornou a visão de um Mundo desumanizado e silencioso mais ruidosa que nunca.

Alan Weisman tem dedicado as últimas décadas da carreira de jornalista à “missão” de ouvir cientistas internacionais para compreender e resolver a entropia da ação humana. De Massachusetts (EUA) para os cinco continentes, o repórter norte-americano pode mesmo dizer que foi ao fim do Mundo e voltou para contar. Em entrevista à “Notícias Magazine”, o autor, que assinou artigos na “New York Times Magazine” e na “Discover”, faz uma análise sobre o que espera a Humanidade nos próximos anos.

“O Mundo sem nós” é a confissão corajosa de um medo, que ganhou a par da sua consciência jornalística?
Sim, inicialmente, estava assustado, pela nossa espécie, mas também por todo o planeta. Como jornalistas, somos treinados para nos interessarmos por tudo e acabamos por compreender como tudo se interliga. Não tinha sempre trabalhos sobre ambiente, mas o ambiente acabava por ser sempre um problema de fundo, um fio condutor implícito. Escrevi um livro sobre a fronteira dos EUA com o México, no final dos anos 1980, e essa é uma linha que não só separa dois países e duas culturas, como divide um ecossistema, e muitas das diferenças culturais entre os territórios acabam por complicar a preservação do bioma. Nos anos de 1990, cobri muitos temas ambientais internacionais, estive em florestas tropicais, fui à Antártida e escrevi sobre o buraco na camada de ozono. Escrevi uma grande reportagem para a “Harper’s Magazine” sobre o acidente nuclear em Chernobyl. Não são eventos isolados, mas acontecimentos intrinsecamente ligados. A ligação é o nosso comportamento diário neste planeta. Tenho o privilégio especial de ter visto muito, por isso tinha de escrever acerca desta crise ambiental. Só que os livros sobre este tema são geralmente tão deprimentes e assustadores que só quem já sabe os quer ler. Não sabia como escrevê-lo para atingir uma audiência maior. Uma editora da revista “Discover”, que tinha lido a minha reportagem sobre Chernobyl, percebeu que, quando os seres humanos deixaram a região, a Natureza e a vida selvagem começaram a ganhar espaço. Eu descrevia como as plantas e as flores rodeavam as casas e iam até ao teto, e ela perguntou-me: “E se isto acontecesse em todo o mundo? Escreves um artigo para nós sobre o que aconteceria se os seres humanos simplesmente desaparecessem?”. Eu respondi que os seres humanos não poderiam simplesmente desaparecer, isso soa a ficção científica. Ela insistiu e fiz essa experiência.

E enquanto jornalista esse exercício mental pareceu-lhe interessante por que motivos?
Assim, não teria de falar daquilo que deprime as pessoas. Poderia simplesmente partir do pressuposto de que algo aconteceu – vamos dizer um vírus ou um génio que descobre a forma de atacar o nosso ADN irreversivelmente -, e de que já não existimos. O que acontece em seguida? O que já deixámos feito – como as centrais nucleares – continuaria a poluir? Quanto tempo demoraria a reabsorção de todo o dióxido de carbono? Provavelmente, mais de mil anos. Nalguns lugares do planeta, o tempo já é tão seco e quente que já não permitirá o crescimento de florestas. Surgirão savanas, provavelmente. Todas estas perguntas começaram a ganhar força dentro de mim.
Depois de toda a pesquisa que fiz para o livro, já não estava preocupado com o planeta. O planeta vai ficar bem. Sobreviveu a extinções em massa; 90% de todas as espécies já morreram, e a Terra renova-se sempre de uma forma cada vez mais bonita. A vida é incrivelmente resiliente neste planeta e dispõe de todo o tipo de mecanismos para ultrapassar desafios enormes. Mas o planeta que resultar desta grande extinção que estamos a provocar pode não albergar pessoas, por isso, não sei se a nossa espécie vai sobreviver. Cometemos muitos erros, mas ainda há algo de profundamente belo na nossa espécie. Não estou preparado para aceitar que se extinga. É, por isso, que continuo a escrever.

A pandemia avivou em si este pensamento sobre a extinção?
Penso que sim. Quando a pandemia apareceu e as pessoas começaram a ficar em casa, as ruas das cidades tornaram-se muito silenciosas. Começámos a ouvir o canto dos pássaros, começámos a ver animais na rua. Em Veneza, a água dos canais ficou translúcida e era possível ver cardumes e cisnes. Começaram a contactar-me para me perguntar se esta era a minha visão, se eu tinha sido capaz de prever o futuro. Eu respondi que não. Sou só um jornalista, mas entrevistei muitos especialistas que me revelaram o que poderia acontecer, incluindo epidemiologistas, com quem falei sobre a possibilidade de um vírus atacar a Humanidade. Sabemos que outras pandemias acabaram por desaparecer, e a Humanidade recuperou. Mas o que os peritos dizem é que estamos em contacto com cada vez mais vírus que habitualmente se mantinham entre animais. Um bom exemplo é o VIH. Esse vírus passou dos primatas para nós e ainda não desenvolvemos uma vacina para ele, apesar de os cientistas estarem à procura há mais de 30 anos. Se o VIH sofresse uma mutação e passasse a ser transmissível através do ar, em vez de fluidos, seria uma grande ameaça para a espécie humana.

Alguns cientistas têm falado também na diminuição preocupante da fertilidade como um fator de ameaça à sobrevivência da espécie…
No meu livro “Countdown”, os cientistas israelitas falam disso: os bancos de esperma em Telavive rejeitavam 99 em cada cem dadores, porque as contagens eram muito baixas. Shanna Swan mostra aquele famoso gráfico da fertilidade, que chega a zero em 2050, mas ela também defende que, quando a Humanidade chegar ao zero, isso não tem de significar que não haverá gravidezes. A evolução é muito interessante: em Chernobyl, onde tivemos uma grande explosão de vida selvagem, há tanta radioatividade que a esperança de vida é muito curta. As plantas atingem a maturidade sexual muito mais cedo. Esta é a forma que a Natureza encontrou para não desperdiçar oportunidades de desenvolver mutações que aumentem a possibilidade de sobreviver à radiação. A mesma coisa pode acontecer com os nossos problemas endócrinos, não sabemos… A verdade é que também criámos substâncias químicas que nunca existiram na Natureza, é isso que está a gerar o problema. A maior parte dessas substâncias está presente em produtos de limpeza e revestimentos. O problema é o comportamento diário do ser humano. Muitas das espécies que hoje conhecemos vão desaparecer; talvez os polonizadores, talvez nós. Ou talvez os elementos mais resistentes da nossa espécie tenham uma taxa de fertilidade tão elevada que os permita sobreviver.

A sua perspetiva acerca da presença da Humanidade na Terra mudou?
Há muitas formas de responder a essa pergunta, mas o mais importante é: eu sabia, desde o final dos anos 1960, quando Paul Ralph Ehrlich escreveu “The Population Bomb”, que a Humanidade tinha aumentado exponencialmente. Mas não era algo em que pensasse muito. O que é que ainda não me tinha passado pela cabeça? Que poderia haver pessoas que não quisessem que a Humanidade continuasse. Mas encontrei o Movimento pela Extinção Humana Voluntária, e contactei o dirigente. Acabou por se revelar uma pessoa muito sensata. Concluiu, tal como muitos cientistas, que os seres humanos merecem estar no planeta tal como qualquer outra espécie, e que poderíamos desaparecer tão rapidamente como surgimos. As espécies fazem muitas cópias de si mesmas porque algumas morrerão. O desejável é ter o suficiente para manter a espécie viva. Acontecia o mesmo com a Humanidade até aproximadamente 1800, quando a medicina moderna, que diminuiu muito a mortalidade infantil. O Movimento pela Extinção Humana Voluntária defende que nos tornámos tão numerosos que as nossas necessidades estão a colocar demasiada pressão sobre o planeta. Vamos acabar por levar à extinção alguma espécie que é indispensável à vida humana. Por isso, também acabaremos por desaparecer. Essa corrente diz que a única coisa ética que podemos fazer é pararmos de nos reproduzir já, e, daqui a um século, estaremos extintos, mas pelo menos não teremos levado mais espécies à extinção. Ele disse-me: “Pense nisto. A cada década, haverá menos crianças, e cada criança será muito valiosa. Os órfãos serão adotados. O mundo tornar-se-á mais natural, selvagem e bonito. As últimas pessoas no Mundo verão o jardim do Éden à frente dos seus olhos, depois morrerão, e será o fim. Mas o planeta continuará, sem nós”.

Alan Weisman reconhece: “Os seres humanos merecem estar no planeta tal como qualquer outra espécie” (Foto: DR)

É também o que defende? Porque o ser humano tende a colocar o conceito de moralidade ao serviço da existência humana…
Não, eu apercebi-me de que quero um Mundo com seres humanos, mas com equilíbrio. O ambientalismo tem uma componente ética mas também prática. A parte prática é: a nossa espécie desenvolveu-se neste ambiente. É bom que o preservemos porque senão podemos colocar-nos em risco. É como se estivéssemos num avião ao qual começámos a tirar peças. Tiramos a primeira e continuamos a voar, tiramos mais três e ainda voamos. Qual é o ponto em que dizemos “Neste avião, eu não vou andar porque a asa pode cai”’? Nós não sabemos quando é que a asa vai cair, e é isso que estamos a fazer com o ecossistema. O argumento de que somos demasiado numerosos faz sentido, por isso, quis saber se haveria um número de nascimentos razoável entre a solução mais radical e a natalidade que hoje temos. Fui até ao Fundo das Nações Unidas para a População, o centro mundial de toda a demografia, e disseram-me que, subtraindo as mortes aos nascimentos, estamos a acrescentar 84 milhões de pessoas ao planeta todos os anos. Quando dividi esse número por 365, percebi que, a cada quatro dias, acrescentamos um milhão de pessoas ao planeta.

Se esse número não é sustentável, qual é?
Na investigação para o “Countdown”, percebi o quanto a medicina moderna tinha diminuído a mortalidade e o quanto aumentou a longevidade. Antes vivíamos até aos 40 anos, agora vivemos até aos 80. Mas o que mais contribui para a explosão populacional é o facto de sermos capazes de produzir mais alimentos do que alguma vez a Natureza produziu. A quantidade de plantas era limitada pela quantidade de nitrogénio que havia no solo, e havia algumas espécies que fixavam nitrogénio da atmosfera, como o feijão, as lentilhas, a soja e a acácia. Quando nos tornámos capazes de retirar nitrogénio da atmosfera e de aplicá-la quimicamente na terra, tudo mudou.

Num século, quadruplicámo-nos. Em comparação com outras espécies, isso é algo quase sem precedentes no planeta. Eu adoro a Humanidade, a nossa arte, a nossa arquitetura, a nossa música. Sempre que ouço a Sexta Sinfonia de Beethoven ou o rap incrível que temos, percebo que há muita beleza no que criamos. Não são só os pássaros que cantam, nós também cantamos. Tem de haver uma forma de nos mantermos neste planeta, mas temos diante de nós um desafio imenso. Há mais dióxido de carbono na atmosfera do que alguma vez houve em três milhões de anos. Só com a alimentação, estamos a gastar metade dos recursos do planeta e 96% dos mamíferos são seres humanos ou produção nossa para alimentação. É um desastre ecológico. Mais cedo ou mais tarde, a população terá de diminuir. As mulheres que estudam e se licenciam não têm mais do que uma média de dois filhos. Duas pessoas substituem os pais, e a população não cresce. Mas, se tivermos apenas um filho, ou zero, a população diminuirá. Se adotássemos a política de um filho, como a China fez, a população poderia diminuir rapidamente. No final deste século, atingiríamos uma situação de equilíbrio com a Natureza, mesmo que continuássemos a usar combustíveis fósseis. Toda a gente detesta a política de filho único que a China adotou, mas se as pessoas tiverem entre zero e dois filhos, a população diminuirá em três gerações. Não temos tempo. Esta é a década mais importante da história da nossa espécie.

Há quem defenda que a inteligência artificial, de alguma forma, será o que nos manterá ou o que manterá o nosso legado no planeta…
Pode ajudar. Para já, a inteligência artificial tem sido usada para vender mais produtos e, de uma certa forma, para gastar mais energia, com todos os servidores que suportam essa tecnologia. A inteligência artificial é perfeitamente capaz de diminuir a quantidade de viagens necessárias ao longo das cadeias de distribuição, mas isso não está nem sequer perto do que precisamos.

Por que sentiu necessidade de falar com pessoas que se dedicam à religião e com cientistas de tantas áreas para explicar um mundo sem o ser humano?
Eu simplesmente faço muitas perguntas a pessoas muito mais inteligentes do que eu. Conhecia Paul Martin, um paleontólogo especialista no período em que o homem começou a migrar a partir de África, afetando outras populações de animais e causando grandes extinções. Deu-me uma grande lição acerca de como a vida humana tinha afetado as restantes espécies, e eu perguntei-lhe por que é que então ainda havia animais grandes em África. Ele disse que essa era uma pergunta muito importante e que tinha de lá ir para perceber. Fui para África e falei com David Western [biólogo e presidente do African Conservation Center], mas também com os indígenas e com a comunidade Samburu. Quis ir a lugares que tinham sido abandonados pela Humanidade, por isso, viajei até à zona desmilitarizada da Coreia. Viajei até às margens do rio Tinto, em Espanha. Depois descobri que havia um último fragmento de floresta europeia desabitada na fronteira entre a Polónia e a Bielorrúsia [Białowieża]. Algumas descobertas aconteceram por acaso, por sorte. Há uma palavra em inglês que descreve esses acasos: “serendipity”. Fui também convidado para uma conferência nos Estados Unidos e, no regresso, apanhei um táxi com o diretor de uma editora que me contou que tinha estado num cruzeiro no Mediterrâneo com a mulher e que, no Chipre, havia uma cidade [Varosha] que estava abandonada desde a invasão turca. Fiz alguma pesquisa e descobri que a única forma de ir até lá era pela Turquia. Entrei em contacto com uma grande escritora, Elif Şafak, e soube que em Capadócia havia cidades subterrâneas, e fui até lá. Também descobri que uma das criações humanas mais resistentes no tempo era o plástico, e quis ir até às praias. Poderia ter continuado a andar para sempre…

O livro “O Mundo sem nós” foca-se muito na questão científica. O Mundo sem a espécie humana é também um exercício filosófico? O que aconteceria, por exemplo, ao conceito do tempo? O ser humano leva milhares de anos a deixar uma marca muito concreta no planeta, mas num ano as construções e as infraestruturas que projetou seriam engolidas por plantas.
É uma pergunta interessante. Há uma discussão no livro sobre o que os líderes religiosos pensam acerca da extinção da espécie humana. E refiro com brevidade um rabino que defende que, no fim do Mundo, o tempo deixará de existir. O que é que isso significa? Ele diz que “só Deus sabe”. O nosso conceito de tempo é muito flexível.
Como sou jornalista, agarro-me aos factos. E, na escala geológica, houve uma longa sucessão de acontecimentos. Muitas vezes, os continentes colidiram uns contra os outros e montanhas emergiram. E depois a erosão abateu paulatinamente essas montanhas até serem planícies. Hoje podemos estar nos Himalaias e encontrar fósseis de criaturas marinhas. E houve também mudanças abruptas que marcaram as eras. Nós começámos a acelerá-las. Podemos ver isso olhando para os icebergues. Antes era uma erupção vulcânica que espoletava o degelo. Agora nós somos a erupção vulcânica.