Uma infância difícil não é uma sentença

É uma infância diferente e longe da família. Em situações de perigo e negligência, as crianças e jovens passam a viver em instituições ao abrigo de Processos de Promoção e Proteção das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens. E, quando chegados à vida adulta, que futuro? Que oportunidades? Inês, Ivo e Ana são três bons exemplos de que é possível ter uma nova família, um lar, sonhar e agarrar as oportunidades, independentemente do que viveram no passado.

É com um sorriso na cara que recorda as memórias de infância. Inês Pimenta tem 23 anos e desde os dois que vive institucionalizada. Por não ter noção do que se passava quando ainda era criança, considerava-se feliz. No entanto, não tem dúvidas de que só sentiu amor e mimo na maioridade. Tem recordações dos pais e dos irmãos, mas prefere preservá-los e deixá-los no anonimato. Até hoje, viveu em quatro instituições. Não foi um percurso fácil estar sempre a trocar de casa, de amigos, de escola, lidar com tudo novamente, uma e outra vez, até chegar finalmente ao local ideal. Define como “triste” essa vida em constante mudança, onde teve sempre dificuldade em criar laços significativos com as pessoas, como forma de defesa, porque sabia que não ficaria muito tempo no mesmo lugar.

Inês mora atualmente no Lar de Santa Cruz (LSC), em Matosinhos – instituição que neste momento acolhe um total de 15 raparigas, algumas com deficiência mental ligeira – e foi aí e depois de muito trabalho que conseguiu “abrir o coração”. Em abril deste ano, decidiu tornar a sua história pública, através do blogue Story of my life, que conta com mais de um milhar de seguidores no Instagram. Escreve com uma certa leveza sobre um tema que é particularmente difícil e demonstra uma maturidade invulgar. “Já queria ter realizado este projeto há algum tempo, mas o medo de não estar à altura foi maior do que a coragem.” O impulso que faltava chegou pela necessidade de criar um projeto para a cadeira de Empreendedorismo da licenciatura de Gestão de Restauração e Catering que terminou recentemente na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Instituto Politécnico do Porto. O blogue mantém-se fora do âmbito dos estudos, permitindo-lhe “transformar as dificuldades e o sofrimento em algo produtivo”.

Inês quer dar voz a outras crianças e jovens institucionalizados, mesmo em formato de anonimato, com um propósito claro: “Fazer com que as pessoas percebam que não somos apenas miúdos institucionalizados, mas pessoas com objetivos. E que a sociedade deixe de criar rótulos que nos fazem acreditar que não somos ninguém”. Paralelamente, está a candidatar-se ao mestrado em Higiene e Segurança no Trabalho e, depois de terminar os estudos, espera conseguir um estágio na Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE).

Uma outra família

Ivo Baldé, 23 anos, tem boas e más memórias da infância. Não foram tempos fáceis. “Tinha um temperamento difícil devido a várias circunstâncias da vida”, explica. Recorda-se de jogar à bola com os amigos, mas também dos problemas escolares e das dificuldades vividas em casa. “A base da minha educação foi muito à moda antiga e os meus pais não tinham grandes expectativas para mim.”

Aos 10 anos, passou a viver no Lar Juvenil dos Carvalhos, em Vila Nova de Gaia, onde permaneceu até atingir a maioridade. Tornou-se modelo internacional aos 19. Nessa altura, enviou uma candidatura para a Face Models e recebeu como resposta da agência a marcação de um casting presencial. “Não pensei duas vezes e coloquei-me sozinho num comboio até Lisboa. Fui recebido pelo Pedro Alves [diretor e booker da agência], que de imediato me disse que queria trabalhar comigo.” Conforme a situação profissional foi fluindo, tomou a decisão de sair do lar, alugar uma casa e viver sozinho em Guimarães, “dando o lugar a outro jovem que precisasse da vaga”.

Ivo Baldé, 23 anos, tornou-se modelo internacional aos 19. Já desfilou na Fashion Week, em Milão, para a Dolce & Gabanna. No futuro, gostava de ser ator
(Foto: DR)

Quando deixou de estar com a família, não encarou isso como problema. “Tentei perceber o motivo de não ter uma família funcional ou porque é que não podia ter as mesmas oportunidades e estar em pé de igualdade com os outros.” Não foi fácil e cada vez que pensa nisso sente que está por sua conta. “Claro que tenho muito apoio por parte da minha agência e dos meus amigos. São eles a minha família.” Ivo foi trabalhar para Milão por um mês, mas já passaram sete. A pandemia ajudou-o a dar um passo importante para a internacionalização. Ivo destaca o primeiro desfile na Fashion Week, em Milão, para a Dolce & Gabanna. Apesar de sentir saudades de Portugal, considera que o “bom trabalho” que tem desenvolvido permitiu “alcançar novos níveis”.

Para o diretor da Face Models, Ivo é um exemplo. “Muito profissional, flexível e exigente com ele próprio, quer fazer sempre melhor. Acreditei de imediato no seu potencial. Liguei-lhe para agendarmos um casting, disse-me que estava a estudar durante a semana e que não podia faltar [estava a tirar o 12.º ano de gestão no ensino profissional]. Abri uma exceção e agendámos o casting para um sábado.” Na Face Models, existem mais modelos que cresceram em lares e instituições. Ivo não é caso único.

Ana Sousa tem 26 anos, é auxiliar de saúde e também viveu no LSC desde os 14 anos. Tem seis irmãos, um da parte da mãe e cinco do pai (um deles faleceu – só conheceu quatro, quando tinha 14 anos). “Os meus pais sempre tiveram uma relação de atrito extremo e eu fiquei sempre à guarda da minha mãe, sem nunca ter a presença do meu pai. 14 anos depois, ele apareceu e foi quando descobri que tinha mais irmãos. Tenho muito contacto com três deles…. Os restantes têm outras vidas e é complicado”, explica, sem se alongar na partilha.

Relativamente à instituição que a acolheu, confessa-se “grata pelo destino” a ter levado àquelas pessoas, que considera como família. “Olhando para o passado, não me imaginaria a viver noutro local.” Ainda assim, confessa que a integração não foi fácil. “Ter de criar ‘um novo eu’ foi o mais difícil, mas consegui integrar-me com o apoio psicológico que tive no lar.”

O momento da entrada acaba por ser o mais marcante, na opinião de Liliana Morais, diretora técnica do LSC. “É muito complicado. Não nos podemos esquecer que entram numa casa com imensa gente que não conhecem. Há todo um trabalho a fazer e pode demorar semanas a meses até que as jovens ganhem confiança connosco.” Inês descreve-o ao detalhe. “Quando entramos nestas instituições, não sabemos o que é ter amor próprio e sermos amados, não sabemos o que é ser bem tratado e respeitar o outro.” É preciso paciência e tempo para trabalhar essas emoções e sentimentos. “Só passados uns anos é que comecei a perceber que isto de me darem carinho era mesmo a sério.”

Ana conciliou sempre bem a infância institucionalizada e os estudos. “Nunca tive problemas em admitir aos meus amigos que vivia numa instituição.” Detetava alguma curiosidade por parte de alguns amigos sobre as regras do lar, a relação com as “doutoras”, como tantas vezes são denominadas, mas não se importava de responder.

Quando a aposta nos estudos é continuada, os jovens podem residir nas instituições até aos 25 anos. Inês dá muito valor aos estudos e às oportunidades que lhe têm sido concedidas. Chega a ser chamada à atenção para fazer pausas e descansar. Foi essa mesma persistência que a fez chegar à faculdade e estagiar durante quatro meses na Madeira, como diretora de food&beverage, uma experiência “marcante”.

Relativamente aos comportamentos que alguns jovens acabam por ter, Liliana Morais defende que “muitos deles são o resultado de vivências anteriores em que houve adultos que falharam” e faz questão de partilhar com as meninas a mensagem de que “podem ser aquilo que quiserem”. Mariana Coimbra, assistente social do LSC e encarregada de educação de todas meninas acolhidas, acrescenta que “o futuro vai depender muito delas e dos ensinamentos que vão – ou não – levar da instituição”. “Eu conheço muitas pessoas que foram institucionalizadas e que têm hoje uma vida tão boa ou melhor do que a minha. Tudo dependerá das escolhas que fizerem.” Paralelamente, há todo um trabalho a fazer com a sociedade civil para desmontar a crença de que quem está numa instituição é delinquente e acabou neste local como castigo. “O nosso objetivo é precisamente o oposto e passa por dar um lar a quem não teve essa oportunidade no seio da família.”

Preparar o futuro

E depois da instituição? Quais os maiores desafios para os ex-acolhidos? Que receios enfrentam? Maria João Fernandes, vice-presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), refere alguns dos maiores desafios da transição de um período de institucionalização para uma vida independente. “Partindo do pressuposto de inexistência de retaguarda parental, uma vez que o acolhimento residencial, por mais protetor que possa ser, não é uma família e a sua capacidade protetiva não se perpetua, os jovens têm de adquirir competências de autonomização de forma mais precoce e mais célere.”

A ação da CNPDPCJ centra-se ao nível da planificação da intervenção do Estado, bem como ao nível da coordenação, acompanhamento e avaliação da ação dos organismos públicos e da comunidade, em matéria de proteção de crianças e jovens em risco. “Assume também um papel relevante ao nível da definição das políticas públicas refletidas nas medidas dos processos de promoção e proteção – de que é exemplo a alteração legislativa de alargamento da intervenção até aos 25 anos de idade”, explica Maria João Fernandes.

O desejo das equipas que integram instituições como o LSC é evitar que a institucionalização seja muito prolongada. “O nosso trabalho diário passa por garantir um futuro a estas jovens, temos de prepará-las para a vida, mas existem meninas que saem logo aos 18 e se arrependem”, explica Liliana Morais.

Além das questões práticas do dia a dia, como pagar as contas, encontrar e cuidar da casa, encontrar e manter um trabalho, a vida independente acarreta uma série de outras variáveis. “As casas de acolhimento têm um papel fundamental no sentido de tentarem evitar essas saídas atempadas e temporárias”, defende João Pedro Gaspar, doutorado em Psicologia da Educação e diretor da Plataforma de Apoio a Jovens Ex-Acolhidos (PAJE). O também professor universitário já viu um pouco de tudo: casos de sucesso, mas também jovens que acabaram na prisão. Ao perceber que não existiam dados estatísticos sobre o pós-acolhimento, o psicólogo acabou por realizar, em 2014, o primeiro doutoramento em Portugal na área de desinstitucionalização. A dissertação “Os desafios da autonomização: estudo compreensivo dos processos de transição para diferentes contextos de vida, na perspetiva de adultos e jovens adultos ex-institucionalizados” foi apresentada à Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra.

A PAJE, com sede em Coimbra, acompanha atualmente 255 jovens ex-acolhidos e conseguiu encontrar mais de 60 empregos (em alguns casos, dois empregos para uma mesma pessoa). São jovens com realidades diversificadas, desde os que não têm família, aos que têm família, mas que é como se não existisse (órfãos funcionais), passando pelos que têm família, mas que não é o modelo de referência de que necessitam. No entanto, existe unanimidade ao que à negação de direitos diz respeito. “Tratam-se de vítimas precoces, mas com a vida toda para sofrerem as consequências”, explica João Pedro Gaspar, preocupado com o facto de no perfil de saída estarem “muitos jovens com vários problemas, entregues a eles próprios e desamparados”.

E depois dos 18?

Ana decidiu sair aos 18 anos do LSC. “O que me deu mais medo foi o facto de estar sozinha. Quando estava no lar, sabia que se algo corresse mal, teria sempre alguém que me ajudava. Cá fora, já não é bem assim.” E continua: “Se pudesse voltar atrás, provavelmente não teria saído tão cedo e teria ficado mais um ano ou dois. Mas a ansiedade pela liberdade era tanta que nem pensei nos contras”. João Pedro Gaspar reconhece esse sentimento em muitos dos jovens ex-acolhidos que acompanha. “Muitos deles têm uma ânsia enorme de liberdade e confundem-na com a falta de responsabilidade, acabando por estar ansiosos pela noite mágica dos 17 anos e 365 dias. E ninguém mais lhes põe a vista em cima durante uns tempos.” Não foi o caso de Ana. Mas o caminho não foi isento de barreiras.

A jovem fez questão de ingressar num curso para concluir o 12.º ano e, com muito esforço, também tirou a carta de condução, uma das decisões de que mais se orgulha porque adora conduzir. No primeiro emprego, sentiu grandes dificuldades por trabalhar de manhã à noite no atendimento ao público. Realidade distinta foi a de Inês, que se manteve no lar e teve o apoio necessário para estudar no ensino superior e para tirar a carta de condução, um presente que o LSC faz questão de oferecer quando as jovens comemoram 18 anos e têm competências para tal.

Ana Sousa, 26 anos, auxiliar de saúde, decidiu sair da instituição aos 18 anos. Concluiu o 12.º ano e tirou a carta de condução. Adora conduzir. Gostava de ser tripulante de ambulância
(Foto: Rui Oliveira/Global Imagens)

O retorno à instituição não está previsto no Sistema de Promoção e de Proteção de Crianças e Jovens. A PAJE está a tentar uma alteração à lei para que os jovens possam regressar ao acolhimento após os 18 anos, caso algo corra mal. Foi o que aconteceu durante a pandemia a alguns deles, que se viram confrontados com situações imprevistas. “Falámos com todos os grupos parlamentares que nos receberam, porque achamos que deve ser permitido a estes jovens voltarem a entrar no sistema se algo correr mal ou de forma imprevista, sempre sujeito a avaliação, de forma a evitar sucessivas experiências.”

A Plataforma também está a lutar pela necessidade de reconhecimento da “figura do ex-acolhido”, sugestão apresentada a Ana Mendes Godinho, Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. “O historial de acolhimento remete sempre para a sonegação de, pelo menos, dois direitos fundamentais: o direito a viver em família e o direito que, por não acontecer, levou à retirada por motivos de abuso, negligência e maus-tratos”, explica João Pedro Gaspar. “A criação desse estatuto, ainda que numa perspetiva de inclusão pontual, em portarias que promovam discriminação positiva em áreas como o acesso à saúde mental, estágios profissionais, empregos, entre outros, é imperiosa.”

Contextualizando todas essas variáveis, a PAJE tem verificado que há uma dificuldade acrescida nestes jovens em encontrarem emprego e alojamento, enfrentando ainda o desafio de se projetarem no futuro. “Temos casos de miúdos com muitas fragilidades, que não têm um autoconhecimento muito aprofundado e que não têm autoestima”, afirma o psicólogo.

O corte forçado entre os jovens e as instituições que os acolheram, ao nível de laços afetivos e emocionais, é um dos desafios que Elsa Montenegro, professora auxiliar no Instituto Superior de Serviço Social do Porto e investigadora integrada do Centro Lusíada de Investigação em Serviço Social e Intervenção Social, denota. “Quando a maioria dos jovens sai de casa dos pais, sabe, à partida, que a ela poderá voltar, não apenas quando precisar de ajuda, mas em qualquer situação, seja ela de celebração das suas conquistas ou momentos felizes, seja em momentos de rotina familiares considerados banais.” Inês não demonstra vontade nem sente pressa em sair da instituição. “Se me perguntar se quero ir embora do lar, a minha resposta imediata é não. Quem é que se quer ir embora do ninho?”

A docente do ISSSP lamenta que ainda estejamos longe de países como a Irlanda, onde o recurso às famílias de acolhimento ultrapassa os 95% e, mesmo, de Espanha, onde as famílias de acolhimento correspondem a 60%. Inês conta com a sua “família de afeto, o casal Joana Castro e Tiago”, com quem passa fins de semana, férias e que a apoiam em tudo o que necessita.

Ana gostava de continuar a ajudar os outros enquanto tripulante de ambulância. “Já estou a tentar alcançar esse sonho.” Também gostava de aprender mecânica e assume-se disposta a tudo o que for possível.

Ivo assistiu a desfechos menos bons de colegas com quem viveu nas instituições por onde passou, mas foi na adversidade que encontrou força para formar a personalidade e para pautar os comportamentos do dia a dia. Para outros jovens que estejam neste momento institucionalizados, a mensagem é clara: “Não deixem de acreditar em vocês e nos vossos sonhos. Sejam persistentes e trabalhem no que gostem.” No futuro, gostava de investir no setor empresarial e numa carreira de ator.

Inês sonha em ter a sua própria casa, um cão e trabalhar numa área que goste, de preferência em higiene e segurança alimentar. “Também gostaria de viajar pelo mundo, quem sabe talvez casar e constituir a minha própria família.” Entretanto, pretende manter contacto com a família de afeto e as técnicas do LSC que a acolheram. Foi com eles que soube o que era ter um lar e um futuro.

Números de uma realidade nem sempre visível

97%
Em Portugal, de acordo com o último Relatório CASA – Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens -, a quase totalidade das crianças e jovens que necessitam de colocação encontra-se institucionalizada.

7,6%
É o aumento das situações de violência doméstica apontado pelo Relatório Anual de Avaliação da Atividade das CPCJ de 2020, enquanto os comportamentos de perigo na infância e juventude e a negligência registaram uma diminuição.

41.337
Segundo o mesmo relatório, número total das situações de perigo, correspondentes a 39.659 comunicações.

66.529
Número de crianças que beneficiaram da intervenção das CPCJ, valor que engloba as crianças entradas em 2020 e em anos anteriores.