Aceitação. A perda como motor para a mudança

Para não entrar nesta luta perdida, o primeiro passo é entender aquilo que se sente como natural

No último ano, com as mudanças e o sofrimento causados pela pandemia, houve um conselho que saltou dos consultórios de psicologia para os ecrãs de televisão: é preciso aceitar. O que se perdeu, o que mudou, o novo normal, as emoções. Mas, afinal, o que é exatamente a aceitação? E, sobretudo, como podemos fazer esse processo?

Ama os seus filhos. Depois, há dias em que acha que ser mãe é a melhor coisa do Mundo e outros em que só lhe apetece “sair do comboio em andamento”, “pôr os miúdos à venda no eBay” ou “atirá-los pela janela”. “E está tudo bem. Não somos mães de merda por isso. Faço o melhor possível e, às vezes, o melhor possível não é muito.” Esta franqueza de Susana Almeida, a forma despojada como abraça todas as suas emoções – também as mais desagradáveis – , é um bálsamo para a alma de quem passa na sua página de Facebook “Ser super mãe é uma treta”.

Aos 41 anos, é mãe da Mariana, de sete, e do Tiago, de cinco. Diz que foi logo quando a filha nasceu que começou a sentir necessidade de desconstruir a maternidade cor-de-rosa que lhe tentavam vender, feita de mães sempre felizes e bebés roliços. Mariana não mamava e ela sentia culpa por não estar a corresponder ao ideal de mãe. “Senti necessidade de baixar as expectativas, de aceitar que a mãe ideal não existe. De aceitar a minha realidade.”

A realidade que importa quando se fala em aceitar é sobretudo a que está do lado de dentro. É uma luta muito cansativa. E não funciona. Nós fazemo-lo por bons motivos, claro: queremos evitar o que dói. Mas acontece que, apesar das nossas boas intenções, tentar controlar pensamentos e sentimentos não só não é uma solução, como é parte do problema. “Nós vivemos de acordo com duas regras implícitas: ‘o sofrimento é mau e a ausência de sofrimento é bom’ e ‘se alguma coisa é má, devemos livrar-nos dela’”, refere Maria do Céu Salvador, psicóloga clínica e docente da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra.

Estas duas máximas podem fazer sentido na relação com o mundo externo, mas são péssimas ideias para lidar com o que sentimos. “Se os sapatos me estão a magoar, tiro-os – problema resolvido. No entanto, quando o que causa sofrimento está no mundo interno, o resultado pode ser bem diferente. Não se tiram pensamentos da cabeça como se tiram sapatos dos pés.”

A dor, a tristeza, a raiva ou a ansiedade são desagradáveis, mas inelutáveis. E quando insistimos em hostilizá-las, embarcamos numa batalha perdida chamada “evitamento experiencial”. É como tentar apagar um fogo com gasolina, na realidade. “A tentativa de suprimir experiências internas desagradáveis, como pensamentos e sentimentos, não funciona e pode, paradoxalmente, aumentá-las”, explica a formadora em Terapia da Aceitação e Compromisso. “A psicopatologia ocorre quando as pessoas aumentam os seus problemas ao tentar fugir da dor emocional.”

Um demónio chamado tristeza

Para não entrar nesta luta perdida, o primeiro passo é entender aquilo que se sente como natural. “Há muitas circunstâncias em que o normal é estar triste. Isso não é uma doença”, vinca Miguel Ricou, presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses. “Aceitar passa por perceber que essa tristeza é natural em função das circunstâncias.” No contexto da pandemia, por exemplo, o psicólogo clínico e professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto frisa que não é de espantar que pessoas não se sintam bem, já que estão confinadas, não conseguem cumprir com as rotinas que conferem segurança, estar com os amigos e fazer atividades que lhes dão prazer.

Não aceitar essas emoções como normais e achar que “não se devia estar assim” é o princípio dos problemas. “Se a pessoa começa a olhar o mal-estar como algo que não devia estar a sentir, transpõe o problema do exterior, das suas causas, para si próprio. Assume uma dimensão existencial e pensa: ‘o problema sou eu’.” É aqui que começa o círculo vicioso das perturbações emocionais: quando o que perturba deixa de ser o que sucedeu, mas reação ao que ao que aconteceu. “A pessoa começa a estar triste porque está triste, a ficar ansiosa porque fica ansiosa, a sentir raiva porque sente raiva.”

Claro que nada disto acontece no vácuo. O que cada um sente ser legítimo sentir está profundamente enraizado nos valores sociais dominantes. “No meu consultório, quando as pessoas começam a chorar, pedem imediatamente desculpa. Mas ninguém pede desculpa quando se ri. Porquê?” Esta diabolização da tristeza, defende Miguel Ricou, acontece porque ela obriga-nos a parar e isso é contrário a um dos principais valores sociais – a produtividade.

A tristeza faz-nos abrandar. Há uma diminuição da energia e da força, da motivação e da vontade, há desejo de estar sozinho. “Isso tem uma função: permite-nos ganhar tempo para contemplar uma realidade que se alterou, uma perda que houve. Seja a perda de uma pessoa, uma função, um objetivo, de uma relação, da saúde ou do emprego. Em função dessa perda, a pessoa não consegue continuar a viver da mesma maneira.” Precisa de tempo para se adaptar à vida sem aquilo que perdeu e só depois de esse processo se fechar é que a tristeza se esbate. “O sofrimento é uma energia de mudança. Mas é mais fácil mudarmos parados do que em andamento.”

Primeiro a emoção, depois a razão

Todas as emoções têm uma função. E é por isso que temos de as viver. Quando Susana Almeida tem consciência que está farta e cansada, quando admite ter vontade de sair de casa ou quando afirma que “não faz mal sentir desespero ou frustração, o que faz mal, é não nos deixarem sentir isso”, não podia estar mais correta. Porque aquilo que está a fazer é precisamente a não abrir espaço para reagir de forma mais automática. É largar a luta com o que não se controla, sublinha Maria do Céu Salvador, “o que permite controlar aquilo que é verdadeiramente controlável: o comportamento”.

É por isso que a aceitação não só está longe de ser sinónimo de resignação ou passividade, como é parte integrante da mudança. João Salgado, professor no Instituto Universitário da Maia (ISMAI) e presidente da Sociedade Portuguesa de Terapia Focada nas Emoções, prefere falar de processo de aceitação. Aceitar não é uma chave para abrir a porta que nos permite sair do sofrimento, mas antes “o fim de um longo processo”. É por esse motivo, alerta, que não basta dizer a uma pessoa que se sente esmagada pela realidade – seja uma morte, uma doença ou outra perda – que tem de a aceitar. “Isso pode ser quase uma forma de agressão, se ela ainda não estiver preparada para o fazer.”

Como todos os processos, tem várias fases. O contacto com a dor é o primeiro. Depois vem a procura de formas de consolo. “Às vezes, isto passa por falar da experiência, contar a história do que nos atropelou, descrever como nos sentimos e como ficámos após isto tudo. Pôr em palavras ajuda habitualmente a regular e a acalmar um pouco o que se sente”, sustenta o psicólogo clínico e professor. Depois, poderemos então perguntar: “O que é me faria bem agora? De que necessito, agora?”.

Este é um ciclo que se repete as vezes necessárias até já não ser o desespero que nos possui, mas sermos nós a ter o desespero e conseguirmos acalmá-lo. “Nesse momento, quando olhamos para o que nos atormenta, tudo nos vai parecer um pouco mais fácil. Não é fácil, é apenas um pouco mais fácil. Quando tal acontece, diremos que estamos a aceitar”, resume. Isso quer dizer que é preciso primeiro conhecer o local psicológico onde se está, antes de poder partir. Porque, como conclui Leslie S. Greenberg, criador da Terapia Focada nas Emoções, “não podemos sair de um lugar se ainda não tivermos lá chegado”.

A ideia de que é necessário ouvir o que sentimos para perceber do que precisamos não é nova e é transversal a muitas áreas. Uma das obras que deu mais destaque a este entendimento foi o best-seller mundial “O Erro de Descartes”, publicado há 26 anos, em que o neurocientista português António Damásio desmonta a ideia cartesiana da primazia do intelecto sobre a emoção. No seu último livro, “Sentir e saber”, volta a esta noção. “Antes de chegarmos ao saber, é preciso percorrer o ser e o sentir”, enfatiza, nas primeiras linhas.

Porventura uma das mais belas histórias sobre esse saber que as emoções e os afetos nos trazem viu a luz no dia 18 de abril de 2014, um dia após a morte do escritor Gabriel García Márquez, no suplemento especial que o jornal “El Mundo” lhe dedicou. Num dos textos, o escritor e jornalista Juancho Armas Marcelo relata um encontro entre o escritor – Gabo, como era conhecido – e o amigo Jorge Eduardo Ritter. Gabo estava com demência e praticamente sem memória há vários anos. Manteve-se calado muito tempo, mas após uma hora de silêncio, olhou o amigo e disse-lhe: “Não sei quem és, mas sei que gosto muito de ti”.