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A virgem desbloqueadora

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Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Um acontecimento de Lisboa capaz de chamar a atenção de verdadeiros admiradores e com aplausos na rua. Se forem ao YouTube colocar as palavras-chave “desbloquear carros emel” conhecerão um dos heróis anónimos da via pública que todos desejamos ver um dia. Alguns de nós, se um dia tivéssemos coragem, paciência e engenho, não quereríamos fazer o mesmo? *

Quem nunca foi bloqueado e, porventura, injustiçado pela Emel com multas absurdamente caras e azares ao calhas, que atire a primeira crítica ao homem que vi em tribunal. Um homem grande, muito grande, de camisola de rock heavy metal dos “Iron Maiden” (Donzela de Ferro), nas costas um espectro azul diabólico, de crânio apodrecido, a olhar-nos. É neste réu que agora penso, e no seu gesto vingador, para me vingar das minhas ruínas.

Dois anos depois, com a pandemia pelo meio, depois de os donos da Emel passarem horrores com a privação de multas (que droga viciante serão multas de mais de cem euros por “estacionamento indevido”) chegam mais casos a tribunal. O homem grande da camisola dos Iron Maiden. O caso do desbloqueador desaparecido… O mais interessante é que, para os funcionários da Emel, parecia magia negra. Tinham bloqueado um carro e, quando lá chegaram, nem carro nem bloqueador. Desaparecidos no ar, como Mandrake! Da conversa da procuradora do Ministério Público, e da juíza, com um dos funcionários-bloqueadores:

– Esta é uma fotografia do local. Já lá está o nosso veículo que remove os bloqueadores. Era Novembro, nove da noite. Já está escuro. Não encontrámos nem a viatura nem o bloqueador. Nem estava lá ninguém.

– É possível andar com a roda bloqueada?

– Não, não é.

– É possível haver um bloqueador mal colocado e, por alguma razão, o carro conseguir circular?

– Não consegue circular.

– Porquê?

– Porque o bloqueador, estando atracado ao pneu, impede o pneu de rodar.

– Como é que funciona?

– O bloqueador tem uma fechadura normal e depois tem uma chave sextavada.

– Isso é o quê?

– É como se fosse um tubinho com uma ponta de seis arestas. São duas chaves. É impossível tirar. E com o bloqueador não avança, mesmo estando mal colocado.

– Viu o arguido?

– O arguido nunca vi. Ninguém viu o arguido junto da viatura.

A segunda funcionária-bloqueadora tinha Ferreira e Charrua no nome e ali veio também falar de ferros e de chaves sextavadas.

– O meu serviço nesse dia era conduzir e colocar o bloqueador. Foi verificada a infracção e foi colocado o bloqueio.

O advogado do homem grande só lhe perguntou:

– Nunca viu o arguido?

– Não. Só aqui.

– Não significa que tenha sido o proprietário a retirar o veículo, pois não?

Com tanta ciência certa -não é possível retirar e não é possível andar – desmentida pela realidade (o carro sumiu, e da chave de seis arestas), lembrei-me da música dos Iron Maiden que fala do do regresso da Besta, o nome é 666… e de alguém, como estes da Emel, que não sabe se o que viu naquela noite foi real ou fantasia.

[Six six six, the number of the beast

Sacrifice is going on tonight]

O homem nunca disse nada. Levantou-se grande, muito grande, com um espectro no peito, um morto-vivo a sorrir-nos, e saiu.

* Deixo vídeo. Um senhor grisalho, saudado por vozes anónimas (os que o filmam?), enquanto com as mãos e em pára-arranca, retira e foge com o bloqueador. “Está bom! Mais um bocado! Agora por baixo! Ora aí está! Ah, ah, ah! Deixe a fita! Mainada! Vá-se embora, amigo, vá-se embora antes que o apanhem! Está feito! Espectacular! Mainada, vamos a uma salva de palmas! Palmas para o homem, é o maior! Boa viagem!”

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)