A vida sexual de quem está fechado em casa

A sexualidade desempenha um papel importante na saúde física e psicológica

Um contexto sem precedentes, novos papéis familiares, a reorganização pessoal e profissional. Problemas que vêm à tona na intimidade. Como lidar com tudo o que acontece?

Da noite para o dia, surge uma pandemia que agrega medos e dúvidas e interfere na vida sexual. Mais tempo em casa pode significar maior investimento na atividade sexual e reforço da intimidade. Ou não. Pode haver menos disponibilidade mental para o sexo. Como sempre, cada caso é um caso. Para o bem e para o mal.

A discrepância sexual pode acontecer a qualquer momento e pode agravar-se no atual contexto. Qual o impacto da pandemia na sexualidade? Não há uma resposta única que encaixe em todas as situações. “Para alguns casais, o confinamento é uma oportunidade para passar mais tempo em casal, o que nem sempre, na correria do dia a dia, é possível. Em algumas situações, potenciou a sexualidade”, responde Catarina Lucas, psicóloga, especialista em sexologia, terapeuta de casal, autora do livro “Vida a dois”. A sexualidade não é uma equação simplista, relaciona-se com a disponibilidade do casal, com o tempo, com o investimento que se faz na relação, com as mossas que as rotinas provocam. “Estar em casa, mais disponível, para alguns casais teve um efeito positivo.”

Para outros, o confinamento traz à tona problemas que se empurram com a barriga. “Passar mais tempo com o outro, quando há dificuldades latentes, tenderá a evidenciá-las e a fazer com que passem a ser um problema incontornável, pois fica a descoberto. Nestes casos, não só a sexualidade se ressentiu, mas a relação como um todo. Para alguns, a convivência durante tanto tempo tornou-se insuportável”, sublinha Catarina Lucas.

O confinamento destapa dificuldades sexuais ou contribui para melhor sexo? Patrícia Pascoal não contorna o lugar-comum. Cada caso é um caso. “O potencial é maior para o agravamento de problemas preexistentes ou para o surgimento de novos problemas, mas sabe-se que, para algumas pessoas, este contexto aguça o engenho e novas formas de explorar a sexualidade”, sustenta. Tudo o que existe e foi construído importa, seja a qualidade da relação, seja o grau de conflito ou de cooperação.

Se há perturbações nas rotinas e na saúde mental, o desejo é afetado. A sexóloga clínica e presidente da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica conta que, nos últimos meses, a divergência de desejo, a insatisfação sexual, os comportamentos de risco e a solidão são os problemas mais referidos por quem pede ajuda. “Mais ansiedade, humor mais deprimido, stresse, inquietação, perturbações de sono”, especifica.

A sexualidade desempenha um papel importante na saúde física e psicológica. E sexualidade é contacto físico e erótico, é intimidade, é vínculo, é emoção. Para Gabriela Moita, psicóloga clínica e terapeuta sexual, a pandemia é uma variável a ter em conta, mas que não pode ter as costas largas para assumir tudo o que acontece neste momento. “Não é pandemia que afeta a sexualidade, é a forma como cada pessoa reage a tudo o que pandemia traz. O impacto no sujeito, na sua relação com a vida, consigo próprio, e com a sua sexualidade.” E acrescenta: “É muito difícil fazer um panorama geral, cada situação é uma situação particular”.

O que se passa na cabeça, as emoções, a forma como se reage ao stresse são determinantes. “E vai ter tantas ou mais implicações quanto mais as pessoas são regulares na sua vida.” Ou seja, explica Gabriela Moita, pessoas mais certinhas, com mais medo e incertezas, lidam pior com o atual contexto, logo, serão mais prejudicadas. Quem está habituado às adversidades adapta-se melhor. Mesmo assim, não há respostas óbvias. Depende do contexto. Um casal com filhos, por exemplo, pode viver satisfeito com essa harmonia familiar, mais tempo em conjunto, como um todo, mas em desequilíbrio por não haver momentos a sós para que os corpos se toquem com maior intimidade.

O rastilho de discussões e conflitos

O impacto da covid-19 na saúde sexual foi estudado por cinco sexólogas portuguesas a partir da perspetiva de 39 especialistas, através de um inquérito online, em abril do ano passado. Há conclusões a reter. O medo de contágio e as restrições para prevenir a infeção aumentam as dificuldades sexuais. O isolamento social potencia o consumo de pornografia e a utilização das aplicações de encontros, tanto para gratificação sexual, como para lidar com estados de humor disfuncionais. Os novos papéis familiares, por força das exigências da covid-19, são uma fonte de conflito conjugal que agravam dificuldades sexuais existentes.

A tecnologia revela-se essencial enquanto meio para alcançar o prazer sexual e o sexo seguro, como um recurso que está a moldar relações íntimas. Recorre-se mais a brinquedos e tecnologias sexuais. Além disso, a pandemia reforça a aprovação social de relações sexuais normativas, o que acentua perspetivas conservadoras das relações amorosas. E as conversas sobre segurança e proteção voltam a estar na linha da frente.

Patrícia Pascoal é uma das cinco sexólogas envolvidas neste estudo. “Ao nível das relações, acentua-se a discrepância de desejo já existente entre os casais que coabitam e que já sentiam esta dificuldade. Os conflitos decorrentes da reorganização e gestão familiar podem acentuar-se e a sexualidade é, por vezes, o rastilho que desencadeia as grandes discussões ou o campo de batalha para a expressão do conflito”, constata. Por outro lado, prossegue, “a pandemia trouxe também consigo a possibilidade da reinvenção das formas de namorar à distância e da redefinição do compromisso, da reinvenção dos jogos eróticos e das plataformas de expressão sexual online”.

A convivência e a distância unem ou afastam. A disponibilidade e o grau de investimento numa relação não são detalhes sem a menor importância. Sobretudo num confinamento em que os dias se diluem e se tornam iguais. Catarina Lucas lembra que “o desejo quer correr riscos, quer fugas à rotina, quer novidade, quer imprevisibilidade e quer adrenalina.” E o confinamento “representa, de alguma forma, o inverso”.

Há outros fatores, adiciona Gabriela Moita. O que mudou nos últimos meses? Há quebra no vencimento? Perdeu-se o emprego? Como está a correr o teletrabalho? E o ensino à distância dos filhos? Mais irritabilidade? Como se lida com a falta de liberdade? O impacto de tudo isso na vida de cada um interfere na forma como se vive a sexualidade. Há ainda a preocupante situação das vítimas de abuso. “Nestes casos, a sexualidade muda para um lado muito grave. Há menos mobilidade das equipas de apoio, as crianças estão mais presas e os agressores com espaço maior. É uma situação muito complexa em termos de sexualidade”, observa.

Criatividade, entusiasmo, empatia

Os pedidos de aconselhamento matrimonial aumentaram 286% em 2020, face a 2019, e 26% dos casais pensaram em divórcio no último ano, segundo um estudo da Fixando, plataforma de contratação de serviços profissionais, numa amostra de 8 300 pessoas. A pandemia deixa marcas na vida sexual.

O desejo tem altos e baixos, não é uma linha contínua da sexualidade. Catarina Lucas adianta que a intimidade e o desejo são conceitos com uma relação complexa. Se, por um lado, a proximidade e a intimidade podem potenciar a sexualidade, por outro, podem contribuir para a diminuição do desejo. “Por vezes, o excesso de intimidade retira-nos o interesse no outro, pois já o conhecemos muito bem, com todas as qualidades e defeitos e isso, muitas vezes, diminui a atração.” Mas o medo aproxima. “Em casais funcionais no seu dia a dia, esta situação de incerteza e de imprevisibilidade pode ter contribuído para um aproximar e valorizar do outro e do percurso conjunto”, defende a psicóloga. “Mas não podemos negligenciar o facto de que a ansiedade e a angústia, que todo este período causou, podem ter gerado uma maior indisponibilidade para a intimidade”, repara.

Patrícia Pascoal destaca que a intimidade sexual tem uma função reparadora e de manutenção da maioria das relações. “Para muitas pessoas pode, de facto, ser uma estratégia para aumentar o bem-estar e diminuir o impacto deste contexto.”

Mais tempo juntos num espaço geográfico limitado, stresse, tensões, conflitos, fricções. Tudo pode acontecer. Para Catarina Lucas, é preciso uma boa dose de criatividade para que o entusiasmo não esmoreça. “É preciso praticar a empatia e ser tolerante, colocando-se no lugar do outro”, sugere. Tarefas em conjunto, cozinhar, ver um filme, rever fotografias a dois, alterar a disposição dos móveis são algumas dicas da psicóloga. “Convém também respeitar o tempo e espaço do outro. O investimento em nós mesmos tende, inclusivamente, a ser atrativo para o outro.”

Gabriela Moita fala na descoberta dos prazeres. O que acende o desejo. Mesmo aí, não é igual para todos. Para uns, a masturbação pode ser uma maneira de libertar o stresse e a ansiedade, para outros, sem a tranquilidade necessária, nada faz sentido. “Não podemos deixar de ter o contexto presente, mas a pandemia não pode ser a variável explicativa para tudo”, reforça.

E se corre mal, com dificuldades sexuais e disfunções, o melhor é procurar ajuda especializada. “Adiar não resolverá o problema, pelo contrário, apenas o agravará”, avisa Catarina Lucas.

Recomendações da Ordem dos Psicólogos

  • Explorar a sexualidade de formas alternativas. Encontros virtuais, partilhar música, escrever cartas, tudo são estímulos para a intimidade.
  • Novos hábitos. Jogos sexuais, partilhar fantasias, procurar incentivos sexuais. Enviar mensagens de cariz sexual, partilhar fotografias ou vídeos, estimular a imaginação.
  • Investir na intimidade, criar oportunidades que permitam proximidade, partilhar momentos de bem-estar. Os casais com filhos devem criar um espaço para si, por exemplo deitando as crianças na cama num horário específico que lhes permita usufruir da companhia um do outro.
  • Aprender mais sobre a sexualidade. Ler livros e ver documentários sobre o tema. Descobrir preferências e fantasias.
  • Aproveitar oportunidades para conhecer e compreender melhor o corpo, descobrindo ou redescobrindo novas formas de ter prazer (sozinho ou acompanhado).
  • Conversar abertamente sobre o assunto, falar sobre as necessidades, desagrados e receios, procurando soluções em conjunto.
  • Aceitar possíveis dificuldades. A ausência de desejo ou excitação, por exemplo, é natural, expectável, transitória. É natural que a pandemia tenha repercussões negativas na vida sexual.
  • Manter o autocuidado. Cuidar do corpo e da imagem é essencial para a saúde física, psicológica e sexual.
  • Procurar ajuda ou aconselhamento especializado em situações mais complexas.