A vida depois do ano 1 da covid. A opinião de Rui Massena

Rui Massena, maestro

Opinião de Rui Massena, maestro.

Linha da meta

Estamos todos com as carapaças alinhadas na reta da meta à espera que o semáforo passe a verde. A corrida foi longa, e difícil. Esteve a chover, trovejou, fez sol, neve, houve acidentes. Uns estão sem para-choques, outros sem espelhos, outros sem travões, outros sem gasolina, e alguns até têm um carro novo, mas já está tudo nas suas posições à espera de continuar, e é assim que tem de ser. Desconfinar – aquela palavra que não conhecíamos e agora desejamos. Tudo, afinal, é uma alegre analogia à vida. Vamos dando voltas, e voltas sem o fim à vista. E foi sempre assim, toda a vida, em todas as vidas, e enquanto não chega a morte. A conclusão a tirar : é nos processos que está a beleza.

Este é um momento zero, para um novo começo. Estávamos há muito tempo familiarizados com o mesmo processo, uma espécie de rotina coletiva, relativamente pacífica e saborosa. Mas se olharmos mais fundo e quisermos um exemplo, há 20 anos, o 11 de setembro confinou uma lógica em que vivíamos, introduzindo uma ideia de terrorismo, que nos levou a uma mudança comportamental profunda, portanto, a uma certa forma de medo. Daqui para a frente, continuará a ser tempo de usar máscaras e isso terá aspetos positivos. Se analisarmos bem, a única coisa certa é a mudança e junto ao progresso há sempre um lado perverso que nos amputa algum tipo de liberdade. Agora é tempo de “desfamiliarizar”, conceito que ouvi de um amigo há bem pouco tempo, porque a realidade já mudou. E se me permitem, não me parece um mau exercício porque nos liberta dos rótulos que estamos habituados a atribuir a tudo, e que representam exatamente o momento em que deixamos de pensar.

Vai haver muitas lágrimas para secar, e muita transformação para fazer. É necessário apanhar o comboio, lavar as mãos e seguir viagem. (março 2020)

A vacina foi uma espécie de último andamento da nona sinfonia de Beethoven, com a humanidade a cantar em conjunto para a cura. É absolutamente belo ouvir o Mundo a cantar em conjunto. A ciência revelou-se e mostrou que a investigação preventiva, e a projeção a médio longo prazo são determinantes para debelarmos os próximos desafios à humanidade, que porventura podem ser piores. As próximas pandemias, a água potável, a descarbonização do Planeta são compromissos inadiáveis para a sobrevivência do ecossistema. Tolerância zero para o contrário.

Quanto à sociedade, afirmo com convicção que teremos que balancear a ditadura dos números com as Humanidades. As ferramentas servem uma finalidade e não o contrário. Precisamos de recuperar disciplinas que nos tragam pensamento, reflexão e adociquem a vida em sociedade. O voyeurismo agressivo e a desregulação virtual com que vivemos terão um efeito bem mais nefasto e rápido na evolução cognitiva e física da espécie humana do que os últimos milhões de anos, e não sou eu que o digo. A desregulação virtual está a modificar comportamentos de uma forma acelerada diminuindo o léxico com que nos relacionamos. A parte do cérebro que se demite é gigante e o espaço público está ocupado por uma imensidão de ruídos desorganizados, e por isso inaudíveis. A fragilidade que cada um de nós encerra está, tal como defende Gilles Lipovetsky, no seu livro “Os tempos hipermodernos”, associada à efemeridade dos nossos processos diários e ao desaparecimento das referências.

Projetar é o único verbo aceitável

As lideranças do futuro são uma questão muito séria para a vida do Planeta e de quem o habita. Líderes capazes de projetar o futuro, capazes de democracia, mas com um sentido comunitário acima dos populismos, serão um bem escasso.

Um plano de reconstrução de um país, de um continente ou de um coletivo mundial, é a única forma de não estarmos reféns de decisões avulsas.

Todo o estado de emergência foi consumido pela contradição. Diria que este ano terá sido o ano de todas as contradições. Uma relevante dicotomia entre o Eu e o Nós, entre o Presente e o Futuro, entre o Otimismo e o Pessimismo, entre a Ciência e o Senso Comum, entre a Economia e a Saúde. Foi inacreditável a velocidade a que passamos de um lado para o outro, com uma esquizofrenia acentuada.

Deixamos de controlar. Fomos controlados. Pelo medo de perder, adoecer, morrer. Fomos um saco de boxe nas mãos de quem nos quis controlar pelo medo, e conseguiu. Se por um lado foi fundamental para a nossa proteção, foi fatal para o nosso bem-estar. Económico e pessoal. E cada um nadou para onde pôde neste naufrágio coletivo.

A história desta pandemia mede-se pelo que perdemos. Para todas as pessoas que ficaram doentes, as que ainda estão, e às famílias que estão de luto, uma palavra sentida de afeto e força. Costumo pensar que as nossas maiores forças são também as nossas maiores fraquezas, e, cada vez que perdemos alguém de quem gostamos mesmo, apaga-se um pouco de nós. Que a Fé lhes traga força e determinação para continuar. E a todos nós, que façamos a recuperação ao som de uma banda sonora épica, a sair numa caravela à conquista de uma gargalhada.

Queriam que falasse de cultura? Estou cansado. Projetem.