
Opinião de Pedro Abrunhosa, músico.
Como o SNS salva o Governo [E não o contrário, como deveria ser]
Durante um ano esta pandemia provocou já em todo o Mundo dois milhões e meio de mortos. Como referência, e para memória futura: 510 mil nos Estados Unidos, 252 mil no Brasil, 122 mil no Reino Unido e 16 300 em Portugal. Em apenas um ano, estes avassaladores números normalizaram-se no íntimo coletivo que, em desesperado ato de instintiva sobrevivência emocional, se apressou a transformar a dor e o luto de dois milhões e meio de famílias em frios indicadores estatísticos. Para os gregos da Antiguidade, o pior dos medos era a possibilidade da perda da memória e, consequentemente, da identidade. Os mortos realmente não morriam: apenas desapareciam do meio dos vivos para descer ao Hades e aí, sem rosto, sem nome ou voz, permanecerem eternidade fora desprovidos de qualquer tipo de personalidade terrena. Os dois milhões e meio de mortos que esta pandemia já levou circulam também silenciosamente entre nós, agora friamente travestidos de estatísticas, taxas e rácios. Nesta sua crua marcha final, cada um destes cidadãos sem rosto é capaz ainda de fornecer aos vivos muita da informação necessária para que estes ajuízem da eficácia dos seus próprios governos no combate ao vírus SARS-CoV-2.
Sem espanto, e como aqui escrevi como provável há precisamente um ano, a primeira liderança a ruir estrondosamente às mãos destes trágicos indicadores foi a Administração Trump, que desde o início menosprezou a vaga pandémica como se esta fosse sucumbir pelo “acaso”, depois “pelo calor”, pela “lixívia” e , finalmente, pela natural imunização de grupo. A Natureza, com a força implacável do vírus, encarregou-se do desmentido. Trump, e apesar dos indicadores económicos não lhe serem totalmente desfavoráveis, pode ter errado em muitas frentes, mas foi esta que lhe custou a reeleição.
À distância, sentimo-nos turistas de uma vida que já não reconhecemos e que não sabemos quando voltará. (março 2020)
Em Portugal, e apesar dos elevados valores de mortalidade não divergirem muito dos norte-americanos e serem até um pouco mais elevados que estes últimos, 1 603* contra 1 579* por milhão de habitantes, e de acordo com as últimas sondagens da Aximage divulgadas a 29 de fevereiro, o PS ganharia de novo folgadamente as eleições com 37,6% das intenções de voto e uma vantagem clara de 11% para o segundo classificado, o PSD. Não sendo este artigo de análise política, não deixa de ser surpreendente que o partido que governa o país há dois mandatos consecutivos e que enfrenta o massivo desgaste diário que o combate à pandemia inerentemente traz a qualquer liderança, se mantenha de pedra e cal como provável vencedor das próximas legislativas.
A meu ver, apesar dos muitos erros cometidos (mas quem os não cometeria perante o desconhecido?), das mensagens contraditórias, dos confinamentos contestados ora por excesso, ora por defeito, e, sobretudo, apesar das lancinantes políticas de cativações malabaristas que têm impedido um financiamento a sério ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), é precisamente pela eficácia reconhecida por todos ao SNS, mesmo perante a proximidade do colapso verificado em janeiro último, que o partido no Governo consegue manter-se ainda com valores tão elevados nas intenções de voto.
Ao contrário do caso norte-americano onde abundam meios mas falta abrangência, o Serviço Nacional de Saúde cobre 100% da população em todo o território e em todas as áreas da saúde. Não é pequena esta conquista que, com toda a legitimidade, se reconhece ao que de melhor trouxe o 25 de Abril. Pelo contrário, nos Estados Unidos, o plano de saúde do presidente Obama, o ‘Obamacare’, que visa exatamente suprir as populações de cuidados de saúde públicos permanentes, mormente aos mais pobres, às minorias, aos que vivem nas mais remotas localidades, foi o alvo mais visado da Administração Trump, que nunca conseguiu apresentar alternativa credível senão a assumida privatização da saúde através dos seguros. Traduzindo: quem tem dinheiro compra cuidados. Quem não tem, tivesse. Atendendo à política de isenção de impostos e benefícios fiscais para as grandes empresas imediatamente posta em prática por Trump, não admira que se queira também um sistema de saúde menor, absolutamente privado, tal como muitos ainda almejam para Portugal.
Vista como negócio num país onde a população envelhece a olhos vistos, que tratamento teria sido dado, por exemplo, aos idosos, muitos com reformas que mal pagam o pão e o teto, se forçados a adquirir um “seguro” que pouco os seguraria? A resposta está nas entrelinhas: o SNS é, também, um esteio no campo social que extravasa muito para lá das competências meramente formais da área estrita da saúde. Parece-me elementar concluir que a Saúde, ao lado da Justiça, da Educação e da Cultura, quer-se essencialmente como bem público e que é isso que, na sua maioria, as populações desejam e, em última análise, a defesa de tal paradigma será o que sustentará a proposta ganhadora nas próximas eleições.
Uma última palavra para o setor privado da saúde em Portugal que, sobretudo nos últimos meses, conjuntamente com a rede de farmácias e de laboratórios, se coordenou com o setor estatal para fazer frente ao vírus numa “coexistência concorrencial” que muito digna a tradição humanista europeia de acudir aos seus pares. Acredito num mercado regulado na área da saúde onde todos caibam e que todos possam pagar, donde ninguém fique excluído por falta de recursos, género, credo ou raça. Contudo, creio que desta pandemia sai um SNS reforçado na perceção que os portugueses hoje dele têm. O exato oposto do que a propaganda de descrédito tentou incutir continuadamente no inconsciente coletivo nacional.
*Dados do Worldometer