A senhora niet
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
Em matéria de não – niet – e de desconversa, a senhora Jektarina terá licenciatura, a juntar-se a engenheira e a economista, cursos na União Soviética. Na primeira sessão, invocou não saber português, mesmo se foi casada com um e de estar a viver em Portugal há quase 30 anos. O marido morreu e, agora, Jektarina é acusada de violência doméstica sobre o cunhado Lucas, com deficiência mental e que vive com ela. Uma lista de pequenas misérias: que disse em público que ele não merece o que come, que um dia o matava, que o obriga a ficar sempre no quarto, que lhe tirou a televisão e o micro-ondas para poder aquecer a comida que as assistentes sociais trazem. Isto é, de ter feito do cunhado deficiente um homem acossado num Mundo de medo doméstico.
Foi com um sorriso sarcástico sobre esta incapacidade – os russos são notáveis em língua portuguesa em tempo recorde – que a juíza foi avisando a senhora Jektarina e a sua pobre intérprete.
Durante meia hora tentou furar a cortina de ferro em que a russa fazia que respondia e a juíza afirmava o papel das duas na descoberta da verdade. “Diga-lhe que não é para responder o que lhe apetece, mas aquilo que eu pergunto”, “a última vez que tive aqui uma tradução com uma pessoa da Europa de Leste, a verdade é que metade do que foi dito, para não dizer mais, não me serviu para nada. Ela que diga o que foi perguntado”. A tudo Jektarina respondia numa bela língua de jês, e de kapas e vogais e ditongos, e os eslavos niet, não, não, não. Jektarina de calças, um cabelo redondo e acobreado como capacete de cosmonauta.
– Aqui diz que Lucas sofre de doença mental, sendo dependente dos outros para alimentação e… o resto.
– Eu não posso dizer que isso é uma doença psíquica, mas ele não quer é fazer nada, disse Jektarina.
Lucas e Jektarina são herdeiros, mas a situação não se resolve.
– O que a senhora diz é que ele não é uma pessoa incapaz, apesar de o tribunal o ter decretado?
Um dia, fechou a porta da cozinha, impedindo as assistentes sociais de entregar a comida. Chamaram-se Bombeiros e Polícia. Recusou-se a falar com a Polícia, fechando-se no quarto.
– Não é verdade. Como é que eu podia, como é que eu podia fechar o sítio onde estão os alimentos e o frigorífico?
De súbito, deu-se um admirável deslocamento do eu. Jektarina observava-se a si mesmo de longe e tinha pena do que via:
– Ela diz: os factos estão todos contra a senhora Jektarina, o que é que ela pode fazer?, repetiu a tradutora.
A juíza continuou:
– Vamos continuar: diz aqui que costumava dizer que “ele não merece o que come”, até à dona da tabacaria.
– Niet, niet, não, não. Eu não conheço a dona da tabacaria.
A senhora Jektarina nunca conheceu ninguém em Portugal, pelo menos vivo, que faça alguma coisa de crédito.
– Eu nunca entendi qual era a função da tutora.
– É uma crítica?
– Não.
– Mas se diz que ela não estava, que não fazia, que não sabia o que ela fazia, é uma crítica!
– Eu não entendo a pergunta.
– Eu é que não entendo a sua resposta.
Um dia, deu uma estalada na funcionária que lá ia dar o almoço.
– Não é verdade. Só vi essa senhora no tribunal, de muletas. Como é possível eu bater numa pessoa que vai lá ajudar?
– Isso não é impossível, é disso que aqui está acusada. Se calhar o que é impossível é irmos neste momento ao Sol, mas bater noutra pessoa é possível!
Havia um plano, pensa ela, da família. Só agora dirá sim, “da”.
– Portanto é tudo um conluio, esta situação toda?
– Verdade. Pravda.
– E estas senhoras que estão no apoio domiciliário, também estão no plano.
Quanto às despesas da casa, “a herança é que paga tudo”.
– O que nos está a dizer é que vive à custa do Lucas, é isso?
– Da. Sim.
Disse uma prima de Lucas que o pobre homem sofre de “síndroma do refém”. Eu vi-o, encurvado, velho, aflito por um cigarro na sala das testemunhas. Preocupa-se muito com o bem-estar dela, sendo maltratado. Um dia, depois de uma gritaria, Lucas perguntou: também sentiste as tripas a tremer?
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)