A segunda vida de quem esteve às portas da morte

Madalena Xardoné ficou sem uma perna e quase perdeu o coração. Estuda Economia e está a tirar a carta de condução. António Faia foi dado como morto. Continua a nadar debaixo de água e a dar catequese. Sofia Mendonça reaprendeu a andar e a respirar. Vai casar em junho. Mário Rui esteve meio ano nos Cuidados Intensivos depois de ter dado positivo à covid-19. Voltou a casa e matou saudades de um bacalhau na brasa. Maria José tem cicatrizes no corpo e agradece cada dia. Jaquelina Soares esteve dois meses em coma com a barriga aberta e não perde a boa-disposição. Todos estiveram às portas da morte. Todos sobreviveram.

O sol bate no terraço de casa, início de tarde no Estoril, o tempo arrefecerá não tarda. Madalena Xardoné, 20 anos, regressa às férias de verão de 2019, mostra fotografias tiradas em Veneza, guardadas no seu telemóvel. Estava com cara de poucos amigos. Não havia como disfarçar por fora o que se passava por dentro. Há dias que sentia enjoos, vómitos, cólicas, dores de cabeça, quebras de tensão, suores. Caminhava cinco minutos e parava, deitava-se e melhorava, levantava-se e ficava pior. Um mal-estar permanente, um cansaço estranho. “Sentia que estava a morrer.” E estava, de facto. Ninguém imaginava, nem ela, nem os pais, tão-pouco a irmã mais velha ou irmão mais novo, que dali a poucos dias estaria em coma, órgãos em falência, ventilador para os pulmões, ECMO (Oxigenação por Membrana Extracorporal) a substituir-lhe o coração, hemodiálise, sonda no nariz, perna direita amputada acima do joelho. Um vírus atacava-lhe o coração. Não era o seu estômago a queixar-se da falta de comida de casa, não era uma gastroenterite aguda como se chegou a pensar. “A probabilidade de morrer era quase certa”, recorda.

Aterrou sem forças no aeroporto de Lisboa, a porta da ambulância fechou, não se lembra de mais nada. Um dia depois, 2 de agosto, estava nos Cuidados Intensivos do Hospital de Santa Maria. Chegou a estar no topo da lista para um transplante cardíaco, tantas infeções e complicações. “Morri várias vezes.” Ou era amputada ou morria, ficou sem perna e o seu organismo começou a reagir.

Mais a norte, em Caminha, na varanda de pedra da sua casa em Moledo, repleta de vasos de flores nas escadas, António Faia, 67 anos, vê o mar e emociona-se quando volta àquele longo fevereiro de 2014. Aterrou no Porto, vindo de Madrid, parou em todas as estações de serviço até Viana do Castelo, onde morava. “Sentia que alguma coisa se passava do ponto de vista racional, mas não sentia nada fisicamente.” Depois, uma tosse terrível, cinco dias na cama. Tinha uma pneumonia agravada pelo vírus da gripe A, pulmões a funcionar a 2%. Entrou no Hospital de Santa Luzia, em Viana, saiu logo para o Hospital de São João, no Porto.

Faia sobe os degraus devagar apoiado nas bengalas, os músculos traseiros das coxas ficaram afetados, amputaram-lhe um dedo em cada pé. Foi obrigado a reformar-se por invalidez, a deixar a intensa vida profissional num grupo internacional de produção de papel e a carreira de professor universitário na área de Gestão. Emociona-se quando fala do coração que lhe chegou a parar e da bendita hora em que os médicos decidiram usar pela primeira vez a ECMO num adulto no São João. Esteve 33 dias em coma, fez 60 anos nessa altura. O seu caso é uma impossibilidade, um mistério para a comunidade científica. Acordou do coma sem lesões cerebrais.

Madalena teve de amputar a perna por causa de um vírus. “Tenho mais noção de que a vida é mais frágil e que, de um momento para o outro, tudo pode mudar”

No Porto, numa manhã de sol, Sofia Mendonça, 27 anos, dá as boas-vindas à porta de casa, entra na sala, senta-se no sofá e desenrola a sua história. Tanta vontade de viver que transparece nos seus olhos claros e brilhantes, naquele corpo que renasceu depois de um acidente de viação. Teve de reaprender a andar, a engolir, a respirar. Caía para trás quando se sentava, teve os pés pendentes, usou elásticos para puxá-los para cima. Há um ano, estava em coma numa cama de hospital. Saiu a 23 de junho, precisamente o dia que escolheu para se casar este ano.

“Não sou mais a mesma, nasci uma nova pessoa”, garante. Mais forte, mais sensível, mais compreensiva. “Lutei muito para estar aqui. Depois de passar por isto, nada me vai derrubar e nunca mais vou aturar um frete na vida. É uma segunda vida e vou aproveitá-la.”

Mário Rui Ribeiro, 54 anos, chegou a casa há dias do Centro de Reabilitação do Norte, em Valadares (Gaia), onde esteve internado quatro meses. Exatamente um ano depois de entrar no hospital. Nem mais, nem menos. Matou o desejo de um bacalhau na brasa ao almoço e as saudades da mulher e do filho. Sentado no sofá, andarilho e cadeira de rodas na sala, fala do passado, do presente, do futuro. “É um bocado complicado levantar-me, ir à casa de banho, toda essa logística. É o que é.” Esteve quatro meses em coma, cinco meses ligado à ECMO, seis meses nos Cuidados Intensivos do São João. É a pessoa, em todo o Mundo, que mais tempo esteve ligada à ECMO e que sobreviveu. “Não é um motivo de orgulho, ou melhor, será, mas pelos piores motivos.”

Maria José Anastácio vive numa casa de madeira, pinhal à volta, buda no jardim, a 15 quilómetros de Pombal, curvas e contracurvas de estrada. Tem 54 anos, é formadora e tradutora de inglês, agora dedica mais tempo à meditação. “Mais introspetiva, mais de gratidão, não tanto de pedir. A gratidão está sempre presente. Refilar porquê? Podia não estar aqui.” Teve um acidente de mota, quase não resistiu.

Jaquelina Soares tem 42 anos, mora em Oliveira de Azeméis, trabalha num centro de bioenergia emocional em Aveiro, e tem três pancreatites agudas na ficha clínica. A primeira, tinha 27 anos e ficou dez dias em coma; a segunda, aos 35, foi mais ligeira; a terceira, no final de 2017, foi tão forte que quase não aguentou. Dois meses em coma de barriga aberta nos Cuidados Intensivos do Hospital de São Sebastião, em Santa Maria da Feira. Tiraram-lhe a vesícula, parte do intestino que estava a apodrecer, fez hemodiálise, transfusões de sangue, foi várias vezes ao bloco operatório. Quando teve alta, quatro meses depois, pediu ao marido para ir ver o mar no Furadouro antes de ir para casa. Ainda estava em cadeira de rodas. “O que me aconteceu não foi um problema, foi uma situação de vida”, confessa.

A fragilidade da vida, os lentos despertares

É quinta-feira, Madalena Xardoné teve aulas online de manhã, está a terminar Economia no ISEG. Quer dedicar um ano a fazer estágios em várias áreas para perceber exatamente o que quer fazer. “Para não ir à toa para o mestrado.” Em janeiro deste ano, foi novamente amputada porque o osso da perna cresceu, aguarda nova prótese para largar as canadianas. Está a tirar a carta de condução, inscreveu-se na natação, quer voltar ao ginásio. Quer estar com as amigas, ir às compras, sair à noite quando as circunstâncias permitirem. “Não vou deixar de fazer o que quer que seja por ser amputada. A perna é um mal menor, tive uma sorte do caraças.”

Sente que é a mesma, faz tudo o que fazia antes. “Já era uma pessoa que valorizava a vida, não estou mais grata pela experiência de quase morte.” Houve um clique, porém. “Tenho mais noção de que a vida é mais frágil e que, de um momento para o outro, tudo pode mudar.”

António Faia faz fisioterapia, conduz, continua a nadar debaixo de água, a dar catequese a um grupo de adolescentes, agora por Zoom, mantém uma intensa atividade na diocese de Viana do Castelo, dá uma ajuda a um grupo que está a traduzir a Bíblia. “Se Deus me deixou cá, sem lesões cerebrais e com mobilidade, de certeza que quer algo de mim.”

A sua história arrepia. “Tinha tido mais uma paragem cardiorrespiratória, fatal dessa vez. Fizeram manobras de reanimação e nada. Tinham ali um cadáver quentinho e saudável, decidiram aguentar o coração a bater, enfermeiros de cada lado para o coração não pifar, fizeram uns buracos para enfiar os tubos, trinta por uma linha, durante duas horas não recebi oxigénio.” Tudo filmado numa hora e 39 minutos para um tutorial sobre a ECMO que circula pelo Mundo. “Eu ia para a morgue, o médico ia passar a certidão de óbito, a enfermeira diz-lhe que havia sinais vitais.” Não podia ser, mais um exame, confirmava-se. O médico a achar que era impossível, a máquina estaria avariada, era preciso repará-la, uma ressonância magnética.” Havia sinais vitais.

António Faia esteve em coma devido a uma pneumonia agravada pelo vírus da gripe A. Acordou ao fim de “uma longa noite de 33 dias”. “Se Deus me deixou cá, sem lesões cerebrais e com mobilidade, de certeza que quer algo de mim”

António Faia acordou e recuperou sem sequelas neurológicas, retomou a leitura na página do livro que andava a ler, deu uma password de 11 carateres alfanuméricos ao filho. Sente que adormeceu e voltou a acordar no exato ponto onde tinha deixado de viver. “Foi uma longa noite de 33 dias.”

O acidente de Sofia aconteceu a 8 de março de 2020 a caminho da Baixa do Porto. O carro capotou, bateu numa árvore. Coluna e costelas partidas, ombro partido, fístula no fígado. Entrou no Hospital de Santo António, dois dias depois, operação à coluna, paragem cardíaca, hemorragia interna, mudança de equipa, cirurgia à barriga. Havia rutura do duodeno. Infeções, febres altas, septicemia, órgãos em falência. Sofia foi entubada, o coma induzido.

Às 3.30 horas de 20 de março, 12 dias depois, o telefonema para casa, não havia nada a fazer. De manhã cedo, pai e mãe no hospital, as irmãs recusaram a despedida, acreditavam que Sofia ia dar a volta. Havia a ECMO, no São João, não se sabia se aguentaria, transferência feita nessa manhã. Sete dias ligada à ECMO e a esperança. Sofia sobreviveu. A operação à coluna teve de ser feita sentada. Gessos, cicatrizes, fios, traqueostomia. Em meados de maio, passou para a enfermaria. Dois dias depois uma pneumonia, voltou para os Cuidados Intensivos.

“Acordei sem falar, com o cabelo rapado, com fralda, com drenos por todo o lado.” A querer falar sem sons nas palavras, sem forças. “Sempre soube que tinha tido um acidente, mas não sabia há quanto tempo. Vi que as cicatrizes não tinham pontos e percebi que estava ali há algum tempo, mas não tinha coragem para saber de tudo.” Perdeu 15 quilogramas, pensou que não iria andar, teve pesadelos no coma, ratos que engoliam brincos enormes. “Parecia que estava noutro Mundo.” O choque quando se viu pela primeira vez ao espelho na casa de banho do hospital. “O que é que me aconteceu?” Pediu roupa interior, pijama, maquilhagem. “Tinha necessidade de me sentir eu”, confidencia.

Cicatrizes, memórias, “pequenos grandes milagres”

A 23 de março de 2020, Mário Rui deu entrada no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, com dificuldades em respirar, já tinha dado positivo à covid-19, estava em casa atento aos sintomas. A oxigenação no sangue não estava bem, tinha de ser entubado e o coma induzido. Foi transferido para o São João e começou uma longa batalha. Não conseguia falar, não sabia se ia voltar a andar, tubos, ventiladores, traqueotomia, fisioterapia. “Tive vários sonhos, uns com final feliz, outros com final angustiante. Sentia o coração a bater muito devagarinho.”

Há ainda um longo caminho, sessões de fisioterapia, reabilitação física. “Não tenho outra forma de continuar. É treinar, treinar, treinar….” Perdeu sensibilidade nas pernas dos joelhos para baixo, ainda não consegue fechar totalmente as mãos, há sequelas internas que não se veem. Foi um longo ano. Mário Rui levanta-se, pega no andarilho, vai à varanda. “Estive várias vezes para morrer e foi um milagre.”

Mário Rui é a pessoa do Mundo que mais tempo esteve ligada à ECMO e sobreviveu. “Percebi que não somos nada. De repente, temos tudo, de repente, não temos nada”

Mário Rui é técnico comercial de uma empresa de borracha em Santo Tirso e sente muitas saudades de trabalhar. “Gostava de me sentir útil.” Não é mais o mesmo. “Mudou tudo. Mudou a minha personalidade, era bastante ativo, não parava um minuto, agora tenho de parar. Percebi que não somos nada. De repente, temos tudo, de repente, não temos nada.” É um dia de cada vez. Família mais unida e talvez, quem sabe, comemorar os 25 anos de casado na Madeira, viagem sempre adiada, no final do ano.

Em julho de 2017, Maria José sofreu um acidente de mota, politraumatismos em várias zonas do corpo, traumatismo cranioencefálico, omoplata direita fraturada, rim perfurado, vértebras e ossos do rosto partidos. Entrou no Hospital de Leiria, foi transferida para Coimbra. Esteve 21 dias em coma, disseram-lhe que não ficou paraplégica por milímetros, sente que foi “um pequeno grande milagre.” “Às vezes, parece que foi ontem, outras vezes, parece que foi há uma eternidade.”

Lembra-se de subir para a moto e acordar três semanas e meia depois numa enfermaria. Lembra-se de sonhar com jogos de basquetebol e de uma festa de despedida com todos vestidos de azul e branco, lembra-se de uma voz que lhe dizia para respirar. “Viajei imenso, não me lembro de nada de mau, feio ou ruim, no coma.” Depois acordou sem perceber o que tinha acontecido, a misturar acontecimentos. Uma recuperação lenta e dolorosa, cadeira de rodas, fisioterapia, nível sete em dez na escala de dor. “Sou a pessoa mais sortuda do Mundo.” O tempo passou a ter outro sabor, as prioridades alteraram-se. No ano seguinte ao acidente, a viagem a Cuba, a Cuba dos cubanos, sem resorts, tantas vezes adiada, com o companheiro. “Nunca tínhamos tempo para nada, deixou de ser assim, é preciso termos tempo para os dois.” Sente que ficou cá por algum motivo. “Não deixei de ser eu, mas há um antes e um depois. Há tanta coisa que quero fazer.”

Maria José, que já viveu em vários países, trabalhou na Amnistia Internacional em Londres, sobreviveu a um atentado da ETA em Madrid, em 2008, fala em esperança. “Se eu consegui, toda a gente vai conseguir.” Recuperou sem lesões neurológicas, meses em cadeira de rodas, fisioterapia. Sem nunca esconder as cicatrizes.

Os sinais da pancreatite passam despercebidos. Na última vez, Jaquelina sentiu uma dor de barriga que passou para os rins. Os valores dos triglicerídeos eram assustadores, ficou internada, tiveram de induzir o coma. Acordou como se fosse o dia a seguir, confusa, já não era Natal, como pensava, disseram-lhe que era Carnaval. Estava paralisada dos pés à cabeça. Teve de aprender a respirar sem o ventilador, a andar, a comer. Voltou à sua vida e cumpriu dois sonhos: foi ao Brasil e tem um jipe.

Jaquelina acordou confusa depois de dois meses em coma de barriga aberta por causa de uma pancreatite. Voltou à vida e cumpriu dois sonhos: foi ao Brasil e tem um jipe

Acredita que nada acontece por acaso. Continua brincalhona e bem-disposta, a encarar a vida com um sorriso no rosto. Está mais decidida, não perde tempo, se é para ir é para ir, não faz projetos para o futuro. Um milagre? “Não é um milagre, é um merecimento. Algo que nós fazemos e somos recompensados”, responde. Neste momento, aguarda uma operação para colocar uma rede para tratar a hérnia, repuxar a barriga, colocar os órgãos no sítio.

Angústia, fé, e os anjos da guarda

Todos os dias, naquele longo e chuvoso inverno de 2014, Maria Cristina Faia e a filha Maria Ana rezavam junto à imagem de Nossa Senhora ao Pé da Cruz quando chegavam do São João, depois de uma hora de estrada até Moledo. A estátua continua lá, na sala de jantar, iluminada até hoje. “Agarrámo-nos a essa fé, foi o que nos manteve de pé”, lembra Maria Ana que estava sempre a colar as suas mãos às mãos do pai no hospital. A mãe não esquece o dia em que petrificou quando viu tanta gente à volta do marido a tirar e a meter tubos. Não conseguiu entrar no quarto. “Somos pessoas de fé. Neste momento, só podemos agradecer”, sublinha.

Clara Pestana, mãe de Sofia, também se agarrou à fé, sentava-se no chão antes dos telefonemas do hospital, por volta do meio-dia. Tinha medo de cair. “Foram três meses e meio sempre a tremer”, admite. E sem as visitas normais por causa da pandemia. “Rezei sempre, acreditei sempre.” No ano passado, o Dia da Mãe foi a 3 de maio. Sofia estava acordada, deram-lhe um coração vermelho e uma caneta. Escreveu numa letra tremida: “Feliz Dia da Mãe, és a melhor do Mundo”.

Mário Rui teve várias paragens cardíacas, esteve algaliado nove meses, perdeu muito peso. Maria Francelina Coimbra, a mulher, confiou em Deus. Não podia cair numa cama, não queria andar medicada, tinha de ser o suporte do marido e do filho. “Não há palavras, só eu sei o que passei, nunca acreditei que o meu marido pudesse partir, sempre acreditei na equipa médica.” As chamadas do hospital ao meio-dia e às sete da tarde, aquele telefonema de madrugada, quando ouviu que o coração do marido estava a falhar. “Olhava para o céu e pedia a Deus e acho que Ele me fez a vontade.”

Sofia Mendonça sofreu um grave acidente de carro. Os pais chegaram a despedir-se da filha. Teve de reaprender a andar, a engolir, a respirar. Depois de toda a luta, diz que nunca mais vai “aturar um frete na vida”

A 1 de outubro de 2019, Madalena Xardoné dava entrada em Alcoitão para reabilitação, preparar-se para a prótese. Voltou para casa no início de dezembro, cinco meses depois. Quando acordou, não achou estranho estar no hospital, sabia que se tinha sentido mal. Sentia a perna que não tinha, não tinha voz para explicar o que queria, estava pele e osso. “Não sabia que tinha estado a morrer, alucinava muito, entrava em todos os programas de televisão, resolvi crimes, era uma atriz que fingia estar doente, um dos médicos era o guionista, os exercícios para respirar eram para o teatro”, recorda. A mãe, Alexandra Xardoné, lembra os momentos duros, de angústia, os “cuidados inexcedíveis de saúde”. “Todos os dias, havia muita coisa e não sabíamos o que esperar no dia seguinte.” A família assumiu uma atitude positiva. “Com muita disciplina mental para estarmos à altura por ela e para ela.” Etapa a etapa naqueles meses que pareceram anos.

Durante o coma, Jaquelina chegou a sonhar que era transportada numa nave de vidro por cima do mar. Paulo Pereira, o marido, não esquece o dia em que lhe disseram que lhe iam ligar durante a noite. Não dormiu e o telemóvel não tocou. “Foram dias difíceis, mas sempre acreditei que ia correr tudo bem.” Todos os dias no hospital, a querer saber tudo, agarrado à alegria da mulher. “Sempre pensei que não estava na hora daquele sorriso partir.”

Jorge Neves, companheiro de Maria José, também viveu com o coração nas mãos, primeiro sem saber se havia vida, depois pelo estado de saúde, pela recuperação. “Foi muito complicado, principalmente a primeira semana, sem saber se ela sobreviveria.” Todos os dias, a viagem até Coimbra, depois, noites sem dormir, Maria José em casa, vesti-la, pegá-la ao colo, dar-lhe banho, limpar as feridas de onde ainda saía alcatrão da estrada do acidente.

Nos hospitais quase morreram, nos hospitais recuperaram a vida. Todos, sem exceção, agradecem a extrema dedicação daqueles, e são tantos, que trabalham nos hospitais. A todos os que salvam vidas. Aos anjos da guarda de carne e osso.