O talento inato, inscrito nos genes, ajuda. Mas o que separa os bons dos melhores parece ser a quantidade de esforço que cada um põe naquilo que quer ser excelente a fazer. O treino mais eficaz para ser especialista em alguma coisa tem um nome: a prática deliberada.
O piloto puxa a manche do Beechcraft King Air e o pequeno bimotor descola do aeródromo e avança em potência máxima pela pista, atingindo a velocidade necessária para voar. Foi sol de pouca dura. Em poucos minutos, um olhar pela janela lateral confirma o alerta dos instrumentos do cockpit: o motor direito parou. O avião entra rapidamente em perda de sustentação, o que significa que já não está a voar, mas antes a cair. Vê-se, então, aquilo que ninguém quer ver quando está no ar: o chão a aproximar-se a grande velocidade. O comandante Miguel Sancho ri. “Acabámos de sobreviver a um acidente aéreo.”
Apesar do realismo capaz de provocar náuseas, este voo atribulado aconteceu num hangar do Aeródromo Municipal de Cascais, dentro de um dos simuladores que a companhia aérea regional e academia aeronáutica Sevenair usa para a formação de pilotos. É para treinar tanto procedimentos normais como situações graves como esta – de forma a evitar o desfecho deste voo em particular – que o simulador serve. “Podemos deixar a situação ir até limites que não são possíveis num voo real. Assim, o estudante aprende por tentativa e erro”, explica o responsável pela instrução de voo da academia aeronáutica. “Podemos parar o simulador e ajudar o aluno a analisar, em tempo real, a sua sequência de ações, a perceber que opções tinha e onde errou.”
Quando nos sentamos dentro de um avião, há uma coisa de que podemos ter a certeza: quem vai aos comandos não se limitou a ler livros sobre pilotagem e a ter aulas teóricas. Para operar um voo de linha aérea, um piloto tem, no mínimo, 1 500 horas de voo e uma formação que contempla virtualmente tudo aquilo que pode acontecer dentro de um avião, desde os procedimentos comuns, como descolar e aterrar, aos pouco frequentes, como perder um motor, ter um incêndio ou uma despressurização de cabina.

(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)
Os alunos, especifica o piloto, só chegam à parte prática do curso depois de completarem uma formação teórica de cerca de 800 horas, que lhes permite adquirir conhecimentos essenciais, como aerodinâmica, meteorologia, navegação e performance humana. Isto porque ter conhecimento não é igual a dominar competências efetivas. O processo de transformar o conhecimento teórico em ação requer um treino que permita automatizar certas tarefas. “É não ter de pensar em tarefas rotineiras que permite ter capacidade de resposta a situações inesperadas”, realça o piloto. “Estando a 1 500 pés de altitude e a descer a mil pés por minuto, tenho minuto e meio até chegar ao chão.” E isso deixa muito pouco tempo para hesitações.
Desempenho normal versus excecional
Nos anos 1990, o psicólogo Anders Ericsson tentou perceber o que distinguia o desempenho normal do excecional. A sua investigação mostrou que o virtuosismo tinha pouco que ver com talento inato, sendo antes sustentado num esforço deliberado que envolvia muitas horas de prática. Mas não uma prática qualquer: os seus estudos, inicialmente feitos com violinistas e pianistas, mostraram que a quantidade de horas de treino importa, mas a qualidade desse tempo é mais relevante.
Cunhou-se, assim, o termo prática deliberada como condição essencial para um desempenho de excelência: um treino feito com profunda concentração, dotado de um objetivo específico, dividido em pequenas tarefas, organizado por patamares e que implica receber feedback de um mentor. João Vasco, professor de piano na Escola Artística de Música do Conservatório Nacional e compositor de 44 anos, diz que esta prática é a essência do processo de aprendizagem de um instrumento, permitindo dominar aspetos técnicos como “a passagem do polegar, o relaxamento do pulso, o peso e a leveza, entre outros”.
“A implementação de rotinas de repetição”, prossegue, “destina-se essencialmente a uma educação do instinto, para que, em palco, não precisemos de racionalizar um gesto técnico, quando queremos, na verdade, comunicar um gesto musical expressivo e emocional”. Para isto, a repetição tem de ser feita com elevado nível de concentração e consciência do processo. “A quantidade de repetições necessárias para a aquisição consciente de uma competência, uma passagem específica ou uma técnica, será menor quanto mais consciente for o processo”, resume o docente.
A prática deliberada exige que se saiba detalhadamente o que se quer alcançar. Um instrumentista, quando se senta para praticar, não diz eu quero tocar piano melhor, mas antes eu quero tocar este compasso, desta peça, melhor. É esta compartimentação de tarefas que permite que o treino seja específico o suficiente para concretizar um objetivo, melhorará assim a habilidade no seu todo.

(Foto: Diogo Vilaça Santos)
Para lidar com o problema clássico do aluno saber tocar melhor os primeiros compassos da peça do que os últimos, por exemplo, João Vasco usa um método concebido especificamente para evitar essa assimetria. É um esquema de treino que apresenta uma série de regras de execução, “como regras de um jogo”, por patamares, que fazem com que “no final da aprendizagem da peça, o compasso número um tenha sido repetido, sem erros, tantas vezes como o compasso 20, numa prática que consegue “uma distribuição mais simétrica de tempo e dedicação”.
Saber pensar versus saber fazer
Desde há quatro anos, todas as terças-feiras e sábados de manhã, Alexandre Vaz senta-se cerca de uma hora e meia a praticar o seu ofício. E, apesar de na sua sala haver um piano e várias guitarras, ele não é músico, mas psicólogo clínico. Nesta área, a prática deliberada ainda está a dar os primeiros passos: o primeiro estudo foi publicado em 2015 e o primeiro livro em 2016. Agora, as organizações internacionais da área começam a dar importância ao tema e Alexandre Vaz está a escrever uma série de livros para a Associação Americana de Psicologia que ajudam a encaixar este tipo de prática nos modelos psicoterapêuticos.
“A psicologia clínica, muitas vezes, é ensinada como se fosse filosofia. A educação é focada no desenvolvimento intelectual, não no comportamental. Mas a sua aplicação passa por fazer coisas, e não apenas por pensá-las”, pormenoriza o doutorando no ISPA – Instituto Universitário. Sem surpresa, constata que, quando os alunos chegam ao estágio curricular e têm contacto com pacientes, se sentem impreparados. “Seria como colocar um basquetebolista a fazer o seu primeiro jogo depois de ter lido muitos livros sobre basquetebol, mas sem nunca ter pegado numa bola.”
A isto somam-se dois problemas. Primeiro: o senso comum diz que quem tem mais experiência é melhor profissional. E o senso comum está errado. “A investigação mostra que não há uma correlação entre os anos de experiência do terapeuta e os resultados que os clientes obtêm”, garante o psicólogo clínico. Segundo: o trabalho de intervenção psicológica consiste em duas pessoas sentadas numa sala a conversar privadamente. “Isso pode ser propício a uma não-evolução profissional. Até se pode ser um terapeuta relativamente ineficaz, e nunca ninguém vir a saber.”
Para combater estes e outros problemas, são usados métodos de simulação. No treino de estudantes, são habitualmente usados vídeos, feitos por atores, para visualizar a resposta a situações frequentes, como raiva dirigida ao terapeuta ou expressão de ideação suicida. Passada a fase de formação, alguns terapeutas pedem autorização aos clientes para gravar as sessões, de forma a treinarem, a partir do estímulo real, as dificuldades específicas que o cliente os faz sentir. Quando começou a gravar as suas sessões, Alexandre percebeu, por exemplo, que quando um cliente o confrontava, expressando descontentamento, ele desviava o olhar. “Era algo que nunca poderia ter levado para a supervisão como uma dificuldade minha, simplesmente porque não tinha consciência que o fazia. Isso só foi possível com as gravações”, admite. “Entre a memória e o orgulho, o orgulho ganha sempre. A filmagem é um olhar mais objetivo.”
Assim, podem observar o seu próprio desempenho, receber feedback de um supervisor, estabelecer objetivos para melhorar, repetir dezenas de vezes a intervenção que querem fazer e, finalmente, avaliar o progresso, que, como lembra Alexandre Vaz, “não termina na intervenção do terapeuta, mas na reação do cliente”. O psicoterapeuta refere que estão a ser conduzidos muitos estudos sobre os resultados desta prática e que, caso se comprove a sua eficácia, é possível que passe a ser um tipo de treino obrigatório nos cursos de Psicologia.
Construir a curva de aprendizagem
Quando um paciente entra numa urgência hospitalar com uma paragem cardíaca depende de uma equipa bem treinada, capaz de uma resposta adequada, imediata e sem falhas. Para o conseguir fazer, já teve de o fazer muitas vezes, sem pacientes reais. Hoje, através da simulação biomédica – um ambiente de aprendizagem que mimetiza o ambiente real -, é possível treinar quase tudo o que um médico ou equipa tem de fazer na sua prática clínica.
“A simulação serve para uma infinidade de situações: treinar procedimentos específicos, como intubações; cenários complexos, como a entrada de um paciente em choque anafilático na urgência; competências relacionais, como a entrevista clínica, e mesmo a verificação dos circuitos internos do hospital”, exemplifica Pedro Garcia. O médico, além de pediatra com especialização em cuidados intensivos neonatais, é um apaixonado por simulação: é coordenador do Centro de Simulação de Técnicas em Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, diretor clínico do Centro de Simulação da CUF Academic Center e ainda presidente da Sociedade Portuguesa de Simulação Aplicada às Ciências da Saúde.

(Foto: Pedro Rocha/Global Imagens)
O especialista explica que os cenários clínicos de simulação são compostos por um briefing (para apresentar a situação aos formandos), a execução do cenário pelos alunos – muitas vezes, com robôs de alta-fidelidade que mimetizam os humanos -, e o debriefing, que é o verdadeiro momento de aprendizagem. “É aqui que é feita a revisão do cenário em que se atuou, uma análise do que cada um fez e do raciocínio subjacente”, esclarece.
Depois de ensinar com recurso à simulação durante mais de 15 anos, Pedro Garcia quer levá-la mais longe. No ginásio de simulação da CUF Academic Center, está a cruzar dois conceitos: simulação e prática deliberada. Uma das diferenças fundamentais entre as duas é a existência de feedback. “Em simulação, durante o debriefing, as perguntas que fazemos são abertas, para que as pessoas cheguem à aprendizagem por elas próprias. Na prática deliberada, tenho de incluir o feedback direto para detetar falhas e corrigi-las.” Criou, por isso, extensões de aprendizagem nas formações para os formandos continuarem a treinar apoiados por um especialista. “Temos, por exemplo, uma plataforma através da qual os alunos podem enviar vídeos de ecografias ou outros procedimentos que executam para que um perito do corpo clínico dê feedback personalizado e valide o que foi feito.”
Esta validação é essencial. “Para uma pessoa estar apta a desempenhar uma função, tem de cumprir com uma curva de aprendizagem, com várias etapas”, defende o médico. O caminho para vir a ser cirurgião, por exemplo, começa com coisas tão básicas como colocar um feijão dentro dum copo, num simulador, para treino de competências em laparoscopia. “Só depois de atingir um patamar de aprendizagem se pode passar para o próximo. Para isso, em cada uma destas etapas, tem de haver um momento de avaliação, feedback e validação, como previsto na prática deliberada.” O oposto é a estagnação da aprendizagem ou, pior – algo grave, apesar de não invulgar – a perpetuação do erro durante anos.