Valter Hugo Mãe

A Playlist da TSF


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Encontro um vasto número de discos brilhantes que, quase todos usando a nossa língua, mesclam o passado com algo que ainda não sabemos muito bem o que é.

Julgo que somos todos, nem que por irritação, atraídos por listas, e eu levo qualquer lista muito a sério. Quando faço uma escolha posso andar dias a definir critérios que me deixem limpo. Tenho um amigo que me diz que a isto se chama carência, necessidade de ser justo para não ser rejeitado. Talvez seja verdade. Eu estudei Direito porque me fascinava a hipótese de contribuir para melhorar, e não perco o compromisso, nem que nas mais pequenas coisas. Quando Nelson Santos me convidou para uma lista de canções na semana que terminou (já disponível em podcast), fiz contas a mil versões. Sendo certo que quase só ouço música clássica, guardo um fascínio pela música de cariz popular que seja mais identitária, uma certa coisa do Mundo que diz respeito a um lugar e que talvez não pudesse ter origem num outro lugar qualquer.

Optei pela vibrante música portuguesa estreada no séc. XXI e, dentro desta, pelo que me parece mais difícil de explicar, o menos linear ou mesmo subterrâneo. Serve isto para dizer que encontro um vasto número de discos brilhantes que, quase todos usando a nossa língua, mesclam o passado com algo que ainda não sabemos muito bem o que é. Existiram sempre projectos alienígenas que impulsionaram sons e ideias. Do Variações ao João Peste, dos Mão Morta aos Mler Ife Dada, mais a Anamar ou o Paulo Bragança, por eles passou muita da estranheza maravilhosa da minha adolescência e juventude. Hoje, curiosamente, vejo um pouco de todos estes, mais um pouco do que havia antes, nos nomes mais entusiasmantes da nova geração.

Se puderem buscar o podcast verão cada um dos meus destaques, no entanto, permitam-me pedir-vos que testem três discos recentes, e muito incríveis, que julgo correrem o risco de ficarem à sombra de tanta indústria tão mais poderosa:

1. “Viagem a um reino maravilhoso”, dos Lavoisier, homenagem a Miguel Torga que toma seus poemas e os torna melodias cheias de temperamento e promessa de grito. O tema “Dies Irae” é dos mais arrepiantes da vasta música portuguesa, de verdade uma maravilha em crescendo que vai buscar o afadistado de Anamar em “Roda” e chega ao descabelado do punk, como A Naifa tantas vezes. Publicado em 2019. Se os puderem encontrar numa apresentação ao vivo não percam por nada. Duo dramático com um sentido de palco enxuto mas intenso como lava.

2. “Orgônio”, do André Júlio Turquesa. Aviso logo que o Turquesa canta um poema meu neste disco e é, contudo, com um orgulho e uma alegria enormes que posso honestamente declará-lo um dos tesouros da portugalidade contemporânea. Instrumentista exímio, a sua composição é uma ansiedade mutante, uma espécie de tudo ao mesmo tempo que o dota de recursos inimagináveis. Saiu em 2020, na semana da chegada do vírus. A pandemia cancelou concertos e acredito que adiou bastante a sua glória. Ao Turquesa, de todo o modo, já ninguém poderá parar.

3. “Bem Bonda”, dos Criatura. Editado em Fevereiro de 2021, é a potência toda emergindo entre a pandemia reclamando magnificência e festa. Tão mestiços quanto genuínos, os Criatura montam um arraial contagiante e propendem para ser épicos, com fartura de sons e letras de um imaginário algo telúrico, a levantar aldeias. São inesquecíveis ao vivo, são a minha obsessão mais recente, com canções como “A Mãe” ou “A Noiva”. Entre José Afonso e Fausto mais Zeca Medeiros e tudo o que for melhor na nossa tradição.