A pandemia e notas de um médico-cidadão

Na maioria dos casos, a infeção resolve-se sem complicações associadas

A saúde deve ser entendida em diferentes dimensões: orgânica, psicológica e social. O que aconteceu e o que é preciso fazer? Como não repetir erros? Está tudo em aberto.

Há anos que zoonoses e, em particular, alguns vírus são monitorizados por vários especialistas em vários pontos do planeta. E uma pandemia, segundo parece, não estaria assim tão fora das previsões. Luís Cortez, cirurgião no Centro Hospitalar de Setúbal, tem refletido bastante sobre o assunto. A situação sanitária que se vive desde o início de 2020, sustenta, “era não só expectável como também fora anunciada por vários epidemiologistas, virologistas e outros cientistas em todo o Mundo”.

Parafraseando o infeciologista Fernando Maltez, na Revista de Medicina Interna, em maio do ano passado, “o vírus mostrou as fraquezas dos sistemas de saúde internacionais e será uma importante lição para futuras pandemias, enquanto o confinamento, mesmo que intermitente, terá profundos efeitos negativos económicos, sociais e educacionais. O Mundo poderá pagar um elevado preço”. Talvez não se tenha dado o devido valor e atenção ao aparecimento de um vírus tão forte e com tantas mutações.

Luís Cortez fala em tempos complicados e, além da pandemia, há outros fatores que, em seu entender, vieram agravar a situação. “É o caso da política de saúde: desde 2000, tem-se assistido na Europa e em Portugal a uma mercantilização progressiva deste setor. Isto tem causado uma diminuição de recursos físicos e humanos no setor público, associados à persistência da falta de articulação e integração dos diferentes níveis de cuidados de saúde (primários, secundários e terciários).”

Nos últimos seis anos, saíram do país 1 189 médicos e, entre 2017 e 2019, 8 528 enfermeiros

Em sua opinião, a saúde deve ser entendida nas suas várias dimensões: orgânica, psicológica e social. Porém, repara, “infelizmente, em Portugal, o investimento que tem sido feito no Sistema Nacional de Saúde continua abaixo da média europeia. Aliás, o Relatório da Comissão Europeia (2019) indicava que o nosso investimento era cerca de 30% inferior à média europeia. Se esta avaliação fosse efetuada na base da percentagem do PNB (Produto Nacional Bruto) em vez do PIB (Produto Interno Bruto) a diferença seria ainda maior”.

Luís Cortez, cirurgião no Centro Hospitalar de Setúbal
(Foto: DR)

O cirurgião junta aqui o que chama de “subfinanciamento crónico do SNS”. E apresenta dados. “No período de 2015/2021, as transferências do Orçamento do Estado (OE) para o SNS, em todos os anos, foram inferiores à despesa total do SNS. Assim, entre 2015 e 2021, a despesa total do SNS foi de 71.617 milhões e as transferências do OE para o SNS foram apenas de 63.702 milhões, ou seja, menos 7.915 milhões. Em 2020, o défice de execução orçamental foi de 276,3 milhões.” Nos últimos seis anos, saíram do país 1 189 médicos e, entre 2017 e 2019, 8 528 enfermeiros. E a Ordem dos Enfermeiros já avisou para a necessidade de 30 mil profissionais em janeiro de 2020.

“Neste ano, o número de médicos por mil habitantes era de 5,3, mas no SNS correspondia a 2,9 (média da União Europeia:3,8) e de enfermeiros era de 7,2, sendo no SNS correspondia a 4,6 (média da EU:8,2).” Além disso, indica, o número de camas de Medicina Intensiva é insuficiente, apresentando um rácio de 6,5 camas por cem mil habitantes, com taxas de ocupação dos serviços deste setor, já antes da pandemia, superiores a 100%. “Isto acontece porque, desde 2003, o número total de camas do SNS tem vindo a reduzir, apesar da epidemia sazonal da gripe, que anualmente causa situações de rutura em alguns hospitais e cancelamento de numerosas cirurgias por falta de camas e cuidados intensivos.”

Segundo a Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla, há doentes a morrer por falta de tratamento, na maioria pacientes crónicos

São notas de um médico cidadão em tempos complexos. “Em tempo de pandemia, tudo isto é especialmente notório no caso dos doentes não-covid.” Há doentes que morrem por falta de tratamento, por falta de cuidados. “No entanto, apesar da desvalorização que o SNS tem sofrido e de todas as insuficiências manifestadas, foi a sua resiliência que permitiu que existisse uma resposta sanitária à atual pandemia. Em parte, uma das grandes razões prende-se também com o desempenho dos profissionais de saúde que aqui trabalham”, realça.

Além disto, é crucial não repetir situações semelhantes às vividas noutros países, como Itália e Espanha. Para isso, em sua perspetiva, é essencial garantir o cumprimento da Lei de Bases da Saúde, que inclui o direito à proteção da saúde, um direito e uma responsabilidade de todos. Nesse sentido, é necessário respeitar determinados aspetos, desde logo, aumentar o financiamento do SNS, de forma a possibilitar o investimento necessário em infraestruturas, equipamentos e recursos humanos.

O médico tem uma lista do que deve ser feito. Executar o Orçamento do Estado atribuído à saúde. Alterar o pagamento aos hospitais conforme está nos contratos-programa. Favorecer a prevenção e a promoção da saúde. Reorganizar a prestação de cuidados integrais, articulando os primários e os hospitalares centrados no doente. Internalização de atividades clínicas nucleares, atualmente contratadas no exterior. Proporcionar condições de trabalho, remunerações e carreiras dignas aos profissionais e funcionários da saúde.

Palavras e sentimentos de médico e cidadão. “A atual pandemia é sentida pela grande maioria das pessoas e cada um de nós tem um papel que não deve ser alienado, mas sim funcionar em prol de um bem coletivo, sobretudo no atual contexto social”, remata.