A nova vida dos animais do canil de Santo Tirso

Alguns dos animais que sobreviveram ao incêndio de julho de 2020 em abrigos escondidos na floresta, em Santo Tirso, encontraram uma família. Meio ano depois, entre pequenas e grandes conquistas e traumas que persistem, tentam sarar as feridas que não se veem.

No início, Krispie vivia aterrorizada, escondida do Mundo e de quem lhe quer bem, sob a proteção possível de uma mesa de jantar. Sempre de cauda murcha entre as pernas, em pânico por qualquer ruído que lhe soasse estranho ou mais agressivo. Recusava-se a pôr as patas sobre a relva; contornava tudo quanto fosse vegetal, e Margarida Pinto, que adotara com o namorado, José Esteves, aquela cadela bege de pelo despenteado, nunca entendeu por que a patuda rejeitava esse parque de diversões natural, sinónimo de diversão e felicidade para a maioria dos cães sadios, e que, hoje, adora.

Mas Krispie terá tido tudo menos uma vida saudável. É um dos animais que sobreviveu ao incêndio que a 18 de julho passado atingiu dois abrigos sobrelotados e insalubres plantados em plena serra da Agrela, concelho de Santo Tirso, matando 69 cães e quatro gatos. Antes disso, “ninguém sabe” o que viveu. Ela e todos os outros que saíram com vida daquela floresta ardida. Como Maria, Maggy ou Sheyla, cadelas que o destino abençoaria com uma segunda oportunidade, acolhidas em lares, junto de famílias que as embalam em mil cuidados e lhes amparam os traumas que não cicatrizaram.

“Não sabemos se já teve dono – será que já esteve em algum lado? -, nem o que passou lá [no abrigo] ou como foi o incêndio…”, resigna-se Margarida Pinto, que só é capaz de imaginar que “ela sempre viveu em cimento ou terra”, por inicialmente se recusar a experimentar o chão verde. “Achamos muito estranho e fazia-nos imensa confusão ela não pisar a relva. Nunca passava em cima; desviava-se. E, mesmo que a puxássemos para lá, ela puxava [no sentido oposto]. Não gostava de ir pela relva”, recorda a médica de família, que em outubro se mudou do Porto para Viseu, onde tem raízes familiares.

José Esteves, Margarida Pinto e Krispie. Quando foi adotada, a cadela era “arrastada” pela cuidadora, “porque não andava, estava cheia de medo e roeu metade da trela, a tentar fugir”. Agora, “brinca muito” e até “sobe para o sofá para dar beijinhos”
(Foto: Miguel Pereira da Silva/Global Imagens)

Hoje, diz por graça que “o Porto fazia muito barulho para a Krispie”, mas a verdade é que os primeiros tempos da cadela na agitada zona da Constituição, na Invicta, onde o casal de 31 anos morava quando a adotou, no final de agosto, não foram tranquilos. “Vivíamos numa rua que tem muito barulho, e ela tinha imenso medo de tudo. Não queria sair. Ir à rua era um pânico: qualquer barulho mais alto, carros a passar ou a mala de um carro a bater, dava saltos. Saltava imenso; uma angústia brutal. Para sair de casa, tinha de ser arrastada. Andava com o rabo entre as pernas, sempre a querer fugir e a tentar entrar em todos os prédios por onde passávamos. No primeiro dia, acho que esteve 24 horas sem fazer chichi ou cocó, e não comia. Dormiu uns dois dias debaixo da mesa. Depois, de cada vez que fazia cocó, era uma conquista. Dávamos um biscoito ou um miminho e não queria saber, comprávamos brinquedos e não brincava com nada. Só passava o tempo a dormir”, conta Margarida Pinto, que guarda memória de cada etapa da adoção que esteve quase para não acontecer.

Maggy, a doce tripé, não foi esquecida

No verão, quando o casal de Viseu decidiu acolher um cão, “o incêndio [na serra da Agrela] surgiu no caminho”, e na visita que Margarida e José fizeram à Associação Midas, em Matosinhos, já conheceram Krispie, que havia sido resgatada. E encantaram-se com a cadela que, apesar da curiosidade, teve receio de se aproximar deles, ainda que tenham sido recebidos em festa por outra. Mas, devido a “questões legais” que se prendiam com o processo-crime sobre o ocorrido nos abrigos Cantinho das Quatro Patas e Abrigo de Paredes, o casal foi informado de que não havia data prevista para que os cães da Agrela ficassem disponíveis para adoção, e que este “podia não ser um processo fácil”. “Aí, abandonámos a ideia”, lembra Margarida Pinto, que entretanto viu o processo descomplicar-se e a 30 de agosto adotou Krispie, que “veio basicamente arrastada” pela cuidadora, “porque não andava; estava cheia de medo, e roeu metade da trela, a tentar fugir”.

Margarida, uma tripé com um olho de cada cor que hoje se chama Maggy, não mudou apenas de nome. Mudou de vida
(Foto: DR)

Por essa altura, já Carine e Bruno mais os dois filhos tinham conhecido a doce Margarida – uma tripé que hoje dá pelo nome Maggy – na Associação dos Amigos dos Animais de Santo Tirso (ASAAST), onde também se depararam com a “barreira” causada pelo facto de o animal estar apreendido à ordem do processo. Descrentes em relação à possibilidade de adotar Margarida, visitaram o canil municipal do concelho, onde iniciaram o processo de adoção de um cão alheio ao incêndio nos abrigos, que batizariam de Rafiki. De regresso ao Luxemburgo, no final de julho, e após as férias na Agrela, a família, que já tentava adotar bem antes do incêndio, só teria em casa o macho “cruzado de labrador e rottweiler” quando Bruno, em meados de agosto, regressou a Portugal para levá-lo. “Mas a Margarida nunca nos saiu da cabeça, nunca a esquecemos. Ela tinha sido amputada, e o meu marido foi visitá-la ao veterinário com o Rafiki, para ver como eles se davam. E os dois cães reagiram muito bem juntos, foi uma interação muito boa”, descreve Carine Da Costa, que, tal como o marido, Bruno Vinhas, levou também em conta “a interação bonita” que os filhos – um rapaz de nove anos e uma menina de sete – tiveram com a cadela.

A 19 de setembro, Margarida virava Maggy e voava para o Luxemburgo, a esbanjar simpatia – dos dez cães acolhidos pela ASAAST, foi a que desde o início procurou o contacto com desconhecidos, que seduzia com meiguice e uma irresistível expressão sorridente – e charme de uma cadela que mais parece um peluche em bege claro com traços de Husky; um olho azul, outro castanho e uma orelha caída para a frente que não deixa ninguém indiferente. “A Maggy teve logo uma grande interação, veio ter connosco, deu a patinha… E o facto de ter uma patinha a menos sensibilizou-nos”, confessa Carine, que depois teve “uma grande surpresa” com alguma inversão no comportamento dos dois animais.

Pesadelos e despertares sobressaltados

“Estão completamente diferentes daquilo que eram em Portugal: quando vimos o Rafiki [no canil], estava deitado e não teve interação nenhuma. Tinha muito medo das pessoas, e era um cão muito apagado; estava num estado depressivo. Após a primeira semana connosco, começou a mostrar-se um cão completamente diferente, super ativo e brincalhão. Está irreconhecível. A Maggy teve muita interação connosco e, agora, é uma cadela capaz de dormir todo o dia. Gosta de ter o espaço e o sossego dela; é o tipo de cadela que passou por tantas coisas más na vida, que está a aproveitar o sossego. Vê-se que é feliz e que gosta muito de miminhos, mas, para uma cadela de dois anos, não brinca muito. A não ser com o Rafiki: brincaram logo desde o primeiro dia, foi impressionante. Nunca imaginei, nas minhas melhores esperanças, que se dessem tão bem. É como se tivessem crescido juntos”, observa a psicóloga.

Carine ainda tenta, porém, descobrir se os sonos agitados de Maggy se devem à perda da pata, que antes da operação de amputação lhe causava dores, por não ter sido tratada, ou a traumas. “Tem muitos pesadelos e tem espasmos. A veterinária acha que é devido à amputação, porque a nível biológico está bem”, diz. “Gostava que ela falasse, para dizer o que se passou. Tem a língua rasgada, os dentes estão todos estragados, como se tivesse estado a roer ferro, tem cicatrizes no corpo, na barriga falta uma grande parte de pelo e tem marcas no focinho. Penso que deve ter passado por coisas muito feias, mas não tem medo de humanos, o que acho incrível”, nota a dona de Maggy.

Sara Leite e o marido Nuno, que adotaram a pequena Sheila – hoje Sheyla -, recorreram a um treinador canino para melhorar a adaptação da cadela
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Sara Leite, que adotou a pequena Sheila – hoje Sheyla – também na ASAAST, relata igualmente noites sobressaltadas. “Sonha imenso e acorda muito assustada, a ladrar e a rosnar. Como se estivesse confusa e não percebesse onde está. Noto que ela já passou muito. É muito perturbada. Não é fácil, mas tínhamos a consciência de que são animais especiais.” Além disso, narra Sara, a cadela “é muito desconfiada, e ladra imenso se tentarem pôr-lhe a mão. Mas não é para atacar, é a dizer: ‘afastem-se’. Precisa muito do espaço dela, e não gosta de ser incomodada”. A não ser pela gata Mel, de quem se tornou amiga de brincadeiras e companheira de casa. Sheyla mora agora em Amarante, numa moradia com amplo espaço exterior. Deita-se ao sol e cerra os olhos, mas ao mínimo movimento dos visitantes ergue a cabeça. Está sempre a controlar, em vigia. “É um doce, mas tem mau feitio. Não gosta de visitas”, ri Sara.

Consultar um especialista em comportamento animal

Hélder Tulha, médico-veterinário que está ao serviço do Município de Santo Tirso desde que o veterinário municipal foi suspenso de funções, na sequência do fatídico incêndio na Agrela, sublinha que outros cães que não experimentaram as mesmas condições daqueles que viviam acumulados nos dois abrigos no meio da serra também podem apresentar fobia de humanos. Mas vinca que estes em particular “passaram um inferno”. “Nessa situação de matilha gigante e portes diferentes, é difícil controlar os cães. É muito provável que muitos deles sofressem bullying intenso. Não havendo espaço, e havendo uma quantidade tão grande de cães, é um stresse permanente para eles. A ausência de socialização com humanos é clara, e o facto de andarem à luta uns com os outros é ainda mais marcante para eles. E como não tinham sítio para fugir, ficavam mais stressados ainda”, considera o profissional. Daí que Hélder Tulha acredite que os pesadelos “venham das vivências e experiências passadas, que estão recalcadas e que nos sonhos aparecem e acabam por refletir estes comportamentos”. Por isso, defende que “todas as pessoas que têm esses cães deviam ter o apoio de um técnico especialista em comportamento animal, para tornarem o animal de mais fácil maneio. Muitos cães sofreram uma pressão psicológica muito grande, e um psicólogo canino ajudava muito”.

Sara Leite e o marido, Nuno, que quiseram adotar um sobrevivente do incêndio, acabaram por recorrer a essa ajuda. Principalmente, depois de Sheyla, ainda sob o stresse da adaptação inicial, ter respondido com pequenas mordidas nele e na filha pequena de ambos, em relação a quem a cadela até “é super protetora”. “Na ASAAST aconselharam-nos um treinador canino que colabora com eles, e ajudou um bocadinho. Ela tem vindo a melhorar gradualmente, penso que vai melhorar e, aos pouquinhos, aprender a confiar mais. Mas acho que estes traumas que tem vão continuar a fazer parte dela”, antevê Sara, que nota ainda que Sheyla “tem uma obsessão fora de série com a comida”, o que a leva a deduzir que “passou muita fome”.

Miguel Sousa e a namorada adotaram Sissi – agora Maria – para fazer companhia a Júlio. O medo de estranhos ainda existe, mas a cadela já salta, feliz, para a cama dos donos
(Foto: Gonçalo Delgado/Global Imagens)

Miguel Sousa, que adotou Sissi – agora Maria -, também pondera recorrer a um especialista. “Não é para treiná-los, mas para me treinar”, ironiza o jovem fotógrafo de Famalicão, que na manhã a seguir ao incêndio resgatou do Cantinho das Quatro Patas uma cadela que se encontrava prostrada e acorrentada. Quis adotá-la, mas o animal acabaria por não resistir e morreu passado um dia, enquanto ainda estava em internamento. Porém, Miguel não abandonou a ideia de adotar um cão para fazer companhia a Júlio, um enérgico patudo cruzado de labrador com dois anos e meio, e acabou por acolher, juntamente com a namorada, um dos animais resgatados da Agrela.

De visita à ASAAST, onde também fotografa os inquilinos, encantou-se com a cadela preta que a associação batizara de Sissi, ao ver que se entendia com Júlio. O medo de estranhos não se dissipou, mas Maria já salta para a cama dos donos. Mantém a “desconfiança dos humanos, mas com outros cães corre e brinca. São duas cadelas diferentes, com pessoas e com cães”, aponta Miguel.

Também Krispie se tornou “afetuosa”. E perdeu o medo da rua. “Agora, anda sempre cheia de vontade de ir”, repara o casal, que pediu ajuda à Midas. “Disseram-nos para normalizar o processo, e sentimo-nos sempre amparados. Isso é muito importante, e faz toda a diferença. Se não tivéssemos tido esse apoio seria horrível e angustiante, porque não sabíamos o que fazer”, admite Margarida Pinto, que agora tem “uma cadela extraordinária”, que “brinca muito” e até “sobe para o sofá para dar beijinhos”. “Agora, temos um problema, porque ela ficou mimada”, diz a sorrir.