Publicidade Continue a leitura a seguir

A nova vida de Isabel dos Santos

Publicidade Continue a leitura a seguir

Um ano depois da morte do marido e quase dois anos após o escândalo Luanda Leaks, Isabel dos Santos está cheia de ritmo e mostra-o a todo o mundo no Instagram. Madrugadora, mais magra, amante de desporto, sempre a viajar - no metro, em voos low cost, em iates de luxo. A empresária angolana mudou de visual e de atitude. Reergueu-se. E parece pronta para a luta contra o Governo do país que se viu forçada a abandonar.

Abril de 2021, a celebração dos 48 anos como mote – volvidos seis meses desde a morte trágica do marido, o congolês Sindika Dokolo, vítima de um acidente de mergulho no Dubai, e mais de um ano depois do escândalo Luanda Leaks -, Isabel dos Santos reaparece. Os cabelos longos, lisos e escuros desapareceram, estão encaracolados, curtos e de pontas loiras agora. A mudança da filha do antigo presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, não se findava no visual, era sinal de um novo capítulo, de uma nova atitude. A princesa angolana, que já foi considerada a mulher mais rica de África, com uma fortuna avaliada em 1,8 mil milhões de euros em 2020 (chegou a ser de 2,9 mil milhões), parecia, nesse mesmo ano, condenada a viver longe das luzes da ribalta, abatida e sem glamour, com o império a desmoronar-se. Mas, depois do luto, voltou a entrar em cena, e em força, em partilhas constantes nas redes sociais.

Em julho, em férias na Rússia, a terra natal da mãe, Tatiana Kukanova, as imagens da Praça Vermelha, em Moscovo, a servir de cenário aos Insta stories da angolana. Em agosto, a bordo de um iate de luxo na companhia dos filhos. Depois, a passear-se por Veneza ou pelo Vaticano, em Itália. Nas publicações, também surgem vídeos a viajar de metro ou em voos low cost lotados. A imagem mudou. E parece empenhada em viver a vida… e em mostrar como a vive.

A residir no Dubai, onde se autoexilou depois de todo o alarido, começou a fazer exercício, descobriu a paixão pelo desporto. E emagreceu. Acorda todos os dias às seis e meia da manhã e às 7 horas já está a fazer kickboxing, jogging ou pilates. Também faz meditação. As muitas imagens ousadas em biquíni que publica são o carimbo da confiança que decidiu vestir nos últimos meses. “O caminho é difícil, é um dia de cada vez, não há milagres. Mas a estrada faz-se caminhando e aprendi que todos os dias tenho de agradecer o facto de acordar, de estar com a minha família. Tem sido um processo.” As palavras são da própria, declarações a um podcast angolano este ano, em que surgiu de cabelo entrançado. Foi aí que assumiu ter agora uma “vida diferente”, estar num “estado mais espiritual” e com “energia positiva”.

Família é a prioridade

Os quatro filhos, três rapazes e uma rapariga, entram no quadro. A família é a grande prioridade. “O meu filho mais novo ainda é muito pequenino [três anos] e precisa muito de mim. Hoje, o que eu quero é ser mãe dos meus filhos.” E levanta cada vez mais o véu à vida privada, como quando mostrou a homenagem ao marido, na data em que se assinalou um ano da sua morte, há menos de um mês. Ou como quando partilha imagens antigas do homem com quem esteve casada cerca de 18 anos.

“Na prática, o que Isabel dos Santos procura com esta aparente exposição pública é conquistar a simpatia e uma certa redenção em relação a todo o envolvimento que tem no estado a que Angola chegou. É, no fundo, um branqueamento de imagem.” Manuel Dias dos Santos, sociólogo e historiador, da Plataforma de Reflexão Angola, conhece bem a família. E tem poucas dúvidas. “Estas partilhas visam fundamentalmente os angolanos, passar a ideia de humildade, simplicidade, proximidade. Todos sabemos que Isabel dos Santos, nos seus tempos áureos, não tinha essa relação de proximidade nem de visibilidade.” Sempre foi bastante fugidia a empresária, discreta na exposição pública. Nada como agora, em que dá ares de abertura.

Afastou-se de Angola, “é óbvio que ela não se sente segura lá”. E tanto está no Dubai, como em trânsito. “Tem uma vantagem, é titular de mais do que uma nacionalidade, o que lhe permite circular em vários Estados de forma corrente.” Isabel dos Santos tem cidadania russa e também se acredita que tenha nacionalidade inglesa. “Não nos esqueçamos que a mãe de Isabel é russa e também é cidadã inglesa, é casada com um inglês. A própria Isabel estudou e viveu em Inglaterra, fez o Secundário e o Ensino Superior lá, quando a mãe foi para a Sonangol em Londres. Ela circula com imensa facilidade aí e não há nenhum impedimento legal em relação a isso. O Estado angolano não conseguiu de forma alguma impedir que ela pudesse circular.”

Na educação dos filhos, na retaguarda, estão as avós, que não largaram nunca a família. “Tanto a mãe do Sindika como a mãe de Isabel são avós extremosas, que adoram os netos e os acompanham. Além da irmã e do irmão do Sindika, que têm estado muito presentes.” Afinal, como diz Manuel, as pessoas não são uma unidade monolítica. “Não podemos cometer generalizações e estereotipar as pessoas como monstros humanos. Isabel é boa mãe, dedicada aos filhos, foi uma boa mulher do seu marido, uma boa filha, uma boa estudante. Agora, há responsabilidades por causa do seu lugar de influência que não podem ser ignoradas.”

Curiosamente, o pai, José Eduardo dos Santos, voltou há poucas semanas para Angola, para Luanda, depois de ter vivido em Barcelona desde que largou o poder em 2017 e de ter estado no Dubai a apoiar a filha após a morte do marido. O homem que liderou Angola durante quase quatro décadas está a caminho dos 80 anos, vive sozinho, separado da ex-primeira-dama. “Chegou visivelmente fragilizado. Durante a presidência, apresentava uma forma física bastante poderosa e agora nota-se uma fragilidade, não só física. É como se quisesse estar em Angola para viver os últimos tempos da sua vida”, comenta o historiador.

A mulher mais rica de África em declínio

Se recuarmos a 2013, quando a revista “Forbes” declarava Isabel dos Santos como a mulher mais rica de África, a mulher que casou com o colecionador de arte Sindika Dokolo numa festa milionária entre 800 convidados, a empresária de sucesso, o Mundo estava longe de antecipar a queda da primeira filha de José Eduardo dos Santos. A miúda que aos seis anos vendia ovos para comprar algodão-doce – contou ela ao “Financial Times” -, que ia a pé para a escola e que sempre quis estudar Engenharia, cresceu. Fala fluentemente russo, português, inglês, francês, espanhol e italiano. E de um bar ao negócio dos diamantes, o polvo empresarial da princesa africana estendeu-se a cimenteiras, operadoras de telecomunicações, bancos, supermercados, à gestão da petrolífera estatal Sonangol, a Portugal, ao Mundo. Uma teia que chegou a mais de 400 empresas, de 41 países. Sempre negando a influência do pai na ascensão empresarial. Metade da fortuna, como já dizia a “Forbes” à época, estava em empresas portuguesas, da Galp à Efacec, da NOS ao Eurobic.

O falecido marido, então um dos homens mais ricos do Congo, chegou a elencar, à televisão angolana, as virtudes da mulher, que sempre pareceu ter olho para o negócio: “É muito tranquila e muito estável, gosta de ter uma perspetiva a longo prazo. Tem três qualidades que a transformam na grande força de Angola: autoconfiança, estabilidade e ambição”.

Por cá, fonte que contactou profissionalmente com Isabel dos Santos, através dos negócios que a empresária mantinha em Portugal, diz que a imagem era a de “uma mulher lutadora e reservada, no sentido em que gostava de manter o recato mediático, não era muito espalhafatosa”. E mais: “Era uma pessoa com ideias claras relativamente aos negócios, ao que queria fazer, o caminho a seguir, bastante esclarecida. E determinada. Com força para agarrar um projeto e levá-lo por diante”. Aliás, o discurso de Isabel dos Santos batia com a imagem que faziam dela: chegou onde chegou, num país de tanta miséria, graças à sua visão empresarial.

Mas basta voltar a janeiro de 2020 para ver a bomba explodir. O Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação revelou mais de 715 mil ficheiros, os famosos Luanda Leaks, que detalham alegados esquemas financeiros de Isabel dos Santos e do marido, que entretanto morreu, que lhes terão permitido retirar dinheiro do erário público angolano através de paraísos fiscais. Destaque para um esquema de desvio de 115 milhões de dólares da Sonangol, da qual a angolana foi presidente, para uma conta no Dubai. Ou o esvaziamento de todo o saldo da companhia petrolífera numa conta do Eurobic Lisboa um dia depois de ter sido demitida da Sonangol pelo novo presidente angolano.

Portugal no olho do furacão

Portugal ficou no olho do furacão e as autoridades angolanas pediram que a justiça portuguesa arrestasse as participações da empresária no Eurobic, Efacec e na NOS como garantia patrimonial de mais de mil milhões de euros, valor do prejuízo causado pelos alegados crimes da princesa africana. A reboque, chegou a nacionalização da parte que Isabel dos Santos detinha na Efacec pelo Governo português. Ou um Eurobic com prejuízos ainda à espera de um investidor que compre a posição da angolana.

Com bens arrestados, empresas bloqueadas, contas bancárias congeladas, perda das participações empresariais, Isabel dos Santos perdeu gente da sua confiança pelo caminho, como o advogado português Jorge Brito Pereira, que a representou durante mais de dez anos, ou Mário Leite da Silva, braço-direito nos negócios que trabalhava a partir de Lisboa. Mas não mudou nunca a narrativa: é uma perseguição do novo presidente angolano, João Lourenço, que sucedeu ao seu pai, movido por motivos políticos. E do discurso passou à ação.

Império a ruir e a nova atitude

O império de negócios ruiu e Isabel dos Santos parecia caída na desgraça da opinião pública. Mas a mudança de atitude que fez ver nas redes sociais, com o novo visual, com mais confiança e mais próxima das gentes, veio a par de vários processos em tribunal para enfrentar um Governo angolano que acusa de “perseguição” e de estar motivado por uma “vingança pessoal”. Dos tribunais de Paris a Londres, a angolana passou ao ataque. Contratou uma empresa de investigação israelita, a Black Cube, de antigos agentes da Mossad, Polícia secreta de Israel, que conseguiu gravações áudio e vídeo secretas de membros da elite política e empresarial de Angola e que a empresária alega serem provas de que o regime angolano orquestrou uma “campanha política” para a destruir e difamar.

Sedrick de Carvalho, angolano, jornalista e ativista pelos direitos humanos, não consegue bem descortinar esta nova Isabel dos Santos, feita de maior exposição. “Não sei se será uma estratégia de comunicação, porque ela até aqui era muito fechada, havia poucos registos públicos. Ou se está mesmo decidida a ter uma vida pública mais descontraída. A verdade é que o império de negócios está despedaçado e talvez por aí queira dar uma ideia de que está tudo bem com ela.” E, diz ele, está efetivamente. “Em termos financeiros, está tudo bem mesmo. Apesar dos processos judiciais, Isabel foi a que mais beneficiou do saque de dinheiros públicos em Angola. Todos estes arrestos ainda não beliscam muito o seu estilo de vida. Prova disso é que consegue sustentar uma vida no Dubai. Esta cleptocracia angolana espalhou o dinheiro pelo Mundo todo, é muito difícil garantir que vão chegar a todo o lado.”

Ainda assim, o ativista, que foi preso político do regime angolano, reconhece que Isabel tem motivos para se sentir ameaçada e lesada pela perseguição de um presidente que fez da luta contra a corrupção uma bandeira e da angolana o rosto da sua luta. “João Lourenço tratou de colocar a Isabel dos Santos no topo da lista das pessoas a perseguir, e foi o que fez. Gastou imensas energias contra ela. Só que, paralelamente, está a fazer tudo ao contrário em Angola, ao ponto de as pessoas terem saudades de Isabel dos Santos. É quase um sentimento masoquista.” Por Angola, correm caricaturas, humor, escrita sarcástica a demonstrar isso mesmo. E a destruição das empresas do grupo da empresária, desde os supermercados Candando a uma fábrica de cerveja ou à maior produtora de cimento do país, com milhares de trabalhadores sem salários e a caírem no desemprego, ajudou. “É paradoxal, porque são empresas construídas em cima de dinheiro roubado. Mas há este sentimento misto de saudades.”

A princesa africana não ignora o ambiente que se vive em Luanda e está a aproveitar o lanço. Aliás, Sedrick, também diretor da editora Elivulu, já chama de circo ao processo mediático que levou Isabel dos Santos a afastar-se do país e do qual se conhecem poucos desenvolvimentos. “Foi mais fogo de vista do que outra coisa. Houve alguns condenados, mas até esses circulam livremente pelo país.” E entende os argumentos da angolana. “Ela está, de facto, a ser vítima de uma perseguição, de um sistema judicial usado como arremesso político. Só não tem muito moral para o dizer. Está a ser vítima dos mesmos métodos de perseguição que o pai dela e ela própria usaram.”

A verdade é que, segundo Manuel Dias dos Santos, “o grande drama em relação a esta investigação é que muita da transferência de capital público para as mãos de Isabel dos Santos foi feita por decreto presidencial, pelo seu pai, o que do ponto de vista legal são transferências legítimas”. O caso da Efacec é o espelho disso: originalmente as ações eram detidas pela empresa nacional de energia angolana e foram transferidas para o nome de Isabel dos Santos. É inevitável: a empresária não pode ser vista à distância da governação de José Eduardo dos Santos. “Angola atribui tanto poder ao poder executivo que lhe permite governar assim, por decretos presidenciais.” E talvez por isso o caso seja uma pescadinha de rabo na boca.

“Quem mais saiu a perder com tudo isto foram os angolanos. Queimaram-se muitos recursos do Estado para criar ações legais contra Isabel dos Santos, devido às lutas de uma elite. Um processo que está a ser profundamente desgastante para todos. E, mesmo que se consigam anular os decretos anteriores, ela não pode pura e simplesmente repor os valores originais. É preciso indemnizar o país de todos os benefícios que obteve.” Algo que Manuel Dias dos Santos acredita ser improvável.

Isabel dos Santos saiu em janeiro do ranking da “Forbes” dos mais ricos de África (era a mulher mais rica do continente africano há oito anos consecutivos), devido aos ativos congelados. Pese embora a revista americana apontar que a empresária terá uma casa numa ilha privada no Dubai, onde mora, outra residência em Londres, onde vai frequentemente, e um iate no valor de 29 milhões de euros. “Provavelmente tem contas bancárias que a “Forbes” e as autoridades têm ainda de detetar”, escreveu a publicação.

Certo é que, depois do turbilhão, a angolana, que entretanto ainda perdeu o marido, se reergueu para dar luta. Para mostrar ao Mundo o lado privado no Instagram e para limpar o nome nos tribunais. E pode até voltar a recuperar parte do seu império empresarial. Mas a imagem de quem lesou Angola, de acordo com o sociólogo Manuel Dias dos Santos, “é uma responsabilidade de que as pessoas não a ilibarão nunca”.