A nova música do Rock in Rio

Num festival invulgar, o desafio de criar um mundo mais humano entra num palco virtual, que deixa os grandes concertos para dar lugar a conversas entre mais de 250 oradores das artes e do humor, da medicina e do ativismo jovem. Entre o Brasil e Portugal, o RIR Humanorama chegou esta terça-feira e a longevidade vem a reboque de um cartaz para lembrar os jovens que vão envelhecer.

Para um epidemiologista consagrado, especializado no estudo do envelhecimento, que corre as maiores universidades do Mundo e que até já dirigiu o Departamento de Envelhecimento e Curso de Vida da Organização Mundial da Saúde (OMS), aterrar num palco do Rock in Rio (RIR) pode soar estranho, mas não largou a oportunidade. O brasileiro Alexandre Kalache pinta um cartaz ao lado de nomes como Gilberto Gil, Sam The Kid, Marisa Liz ou Fábio Porchat (Porta dos Fundos), numa miscelânea brasileiro-portuguesa quase insana.

Não, não é loucura. “O tema longevidade atravessa todos os aspetos da sociedade moderna. É impossível pensar no século XXI sem pensar que estamos a viver mais, que a longevidade é maior. Na primeira vez que visitei Portugal, a esperança média de vida estava nos 60 anos, já passou os 80. Estamos a viver uma revolução e os jovens não se podem esquecer que vão envelhecer”, avisa o médico a partir de Copacabana. Mas, para não perdermos o fio à meada, é preciso voltar atrás e tomar o pulso a um festival que, desta vez, não se faz de palcos gigantes nem holofotes, que se despe dos saltos e dos gritos em uníssono. Que se desliga da música alto e bom som.

O evento, que mora nas duas margens do Atlântico, lá e cá, no Brasil e em Portugal, aterra no mundo virtual para agitar as águas da reflexão. Lançou uma plataforma online de conteúdos (festival.rockinriohumanorama.com) onde, entre 14 e 17 de setembro, vão entrar 80 horas de debates e workshops, com mais de 250 oradores brasileiros e portugueses, gigantes da música e do humor, da medicina e do ativismo jovem, das empresas e das universidades, a discutir os desafios do ser humano das próximas décadas. Do artista português Agir ao especialista em parentalidade brasileiro Marcos Piangers. Da rapper portuguesa Capicua ao ator brasileiro Fabio Assunção. E é gratuito.

A pandemia até podia ter sido o motor – e é certo que ajudou -, mas a semente da ideia já vinha de trás. Em 2018 e em 2019, o RIR organizou a Innovation Week, um evento presencial, em Portugal, sobre o boom da tecnologia. Robôs, óculos de realidade virtual, e, afinal, aquilo que o público mais procurou foram as palestras sobre a condição do ser humano no mundo da inovação. “Será que vou perder o meu posto de trabalho para um robô? O que é isso de a inteligência emocional ser vantagem competitiva? Era a resposta a estas perguntas que as pessoas procuravam”, recorda Agatha Arêas, vice-presidente do Learning Experience do RIR. Afinaram-se as agulhas, um 2020 pandémico passou, e chegou o RIR Humanorama em 2021, desta vez 100% online. “Sabemos que perdemos coisas, o próprio contacto humano, mas ganham-se outras oportunidades, como poder emitir conteúdos de qualquer lugar no Mundo”, refere Agatha.

Agatha Arêas, vice-presidente do Learning Experience do Rock in Rio, explica: “A polarização acontece porque as pessoas deixam de refletir, perdem a capacidade de ouvir o outro lado”
(Foto: DR)

Quatro dias, quatro “palcos”, num festival onde cabem quizzes, podcasts, 72 conversas com pouco mais de 30 minutos e 32 workshops em direto de 90 minutos. “É focado no ser humano. Vamos falar de autoconhecimento, pensamento crítico, relações interpessoais, liderança, habilidades sociais, diversidade e inclusão, projetos que geram transformação na sociedade”, explica Agatha. É um mundo sem-fim, dividido em dois formatos de conversa. “A Vida Imita a Arte”, onde figuras conhecidas escolhem um filme, um livro, uma música, uma série e o debatem. Séries como “This is us”, “Friends” ou “Atypical” vão entrar na discussão. E o Mashup, com pessoas de backgrounds diferentes a conversar. Ver a budista Monja Coen e o rapper Gabriel o Pensador a debater? Sim, é isso que vai acontecer. “Acho que é o que está a faltar à sociedade, o diálogo. A polarização acontece porque as pessoas deixam de refletir, entram no piloto automático e perdem a capacidade de ouvir o outro lado, de serem empáticos”, defende Agatha.

Preparar a velhice na juventude

Voltando a Alexandre Kalache, afinal não é difícil perceber como é que ele entra no cartaz do RIR Humanorama. “Para mim é muito bom atingir um público jovem. Porque temos que nos preparar para a longevidade desde cedo, se quisermos assegurar uma velhice boa. Vamos esperar pelos 60 para preparar a velhice?”, questiona. O presidente do Centro Internacional de Longevidade do Brasil faz um exercício rápido: para o público que foi ao primeiro RIR, há 36 anos, a velhice já chegou. É esse o debate que traz para cima da mesa de um festival invulgar. É certo que a única alternativa ao envelhecimento é morrer antes de chegar lá, mas as pessoas querem viver muito. “Então parem de reclamar que a velhice é uma coisa má.” O também fundador da Universidade de Epidemiologia do Envelhecimento da Universidade de Londres e criador do primeiro mestrado em Promoção da Saúde da Europa veste-se de sentido de humor. “Não quero ficar a falar só para velhos e médicos”, atira. Desta vez, o palco é outro e agarra-o com as duas mãos.

E se o sentido de humor é uma das maiores ferramentas para bem envelhecer, “porque ninguém gosta do velho rezingão”, o gerontólogo traz mais segredos para combater a pandemia do idadismo, que condena os idosos à marginalização. “Aprender, aprender, aprender. Formei-me há 51 anos, acha que o conhecimento que adquiri na universidade tem alguma relevância hoje? Só serviu de base. E com conhecimento, temos a oportunidade de participar na sociedade e de estabelecer relações intergeracionais.” Porque a amizade – e o episódio “Friends Reunion” é o mote do debate em que Alexandre Kalache participa – é antídoto para o idadismo. “Vou fazer 76 anos, os meus colegas de turma estão a morrer todos. Éramos 200, 70 já morreram. Tenho que investir em novas amizades, senão vou ficar sozinho.”

“A palavra que mais rima com longevidade é solidariedade. E nós colhemos o que plantamos”, garante o médico e gerontólogo Alexandre Kalache
(Foto: Zo Guimaraes/Folhapress,Poder)

Traz leveza à velhice e avisa que a saúde, ao contrário do que muita gente pensa, é só um dos eixos do envelhecimento ativo. “As amizades são fundamentais. Posso ter saúde e estar solitário em casa, infeliz. A vida, no passado, era uma corrida de 100 metros, hoje é uma maratona. E não sabemos o que a maratona nos reserva. Temos que criar reservas para chegar bem ao fim.” Esperar por políticas públicas ou pelo apoio dos filhos ainda está longe da realidade. Nos eixos do bem envelhecer, ao conhecimento, às amizades e à saúde, Kalache junta o capital financeiro. “É mentira que quando uma pessoa envelhece precisa de menos dinheiro. Pode ser até quando precisa mais, para ter a segurança de que se adoecer vai ser protegido, amparado.”

A pandemia pôs as fragilidades da população mais velha a descoberto. Fez disparar alarmes. “Primeiro, porque matou sobretudo os mais velhos e isso tem uma razão biológica. Depois, porque nem todas as pessoas idosas têm condições para se proteger. Mas os idosos já passaram por muitas e boas e têm um papel fundamental quando acaba uma crise, de mostrar às novas gerações que há luz ao fundo do túnel. Há muito a aprender com eles.” E às gerações mais novas cabe-lhes cuidar dos mais velhos, pois também lá irão chegar. “A palavra que mais rima com longevidade é solidariedade. E nós colhemos o que plantamos.”

Cidades amigas do idoso

No legado que o médico, que dá aulas no Reino Unido e em Espanha, deixou na OMS está o Marco Político do Envelhecimento Ativo, concebido em 2002, que tem servido para orientar muitas políticas públicas pelo Mundo fora. Foi beber informação ao Japão, Austrália, Portugal, França, América Latina, Canadá e criou um documento simples: 60 páginas. Pelo meio, um gráfico, uma linha. “O objetivo é chegar aos 80 sempre com a linha acima do limiar da incapacidade, para não ficar dependente. E estamos sempre a tempo de corrigir o declínio. Se mudarmos o estilo de vida sedentário, deixarmos de beber ou fumar, comermos melhor, mudarmos de trabalho. Há muita coisa que pode ser evitada.” Na prática, o documento traduziu-se no Guia da Cidade Amiga do Idoso, que arrancou em 35 localidades e que, agora, já mais de três mil estão a usar.

É fácil perceber porquê. Kalache põe os olhos na janela de casa, a praia de Copacabana ao fundo. “No Congresso Internacional de Gerontologia, em 2009, perguntei ao público em que é que pensa quando se fala em Copacabana. Mulheres de biquíni, rapazes fortes a correr, carnaval, reveillon, mas ninguém pensou na velhice.” Copacabana é hoje um bairro envelhecido e “tem que se preparar para ser amigo do idoso”. Viaja até à Europa e aterra em Inglaterra, que criou o Ministério da Solidão, pelas mãos de Theresa May. “Tinha um ministro, funcionários, e ao mesmo tempo 800 bibliotecas públicas foram fechadas, quando a biblioteca também ajuda a quebrar a solidão.”

Certo é que cada vez mais as pessoas vão envelhecer em cidades, muitas vezes hostis, num mundo que tem pressa. “Os transportes públicos não são adequados, as paragens não têm cobertura nem bancos, a calçada tem buracos, não há jardins, bancos para as pessoas se sentarem na rua, pequeno comércio, casas de banho porque muitos idosos são incontinentes, menus nos restaurantes para seniores como há para crianças.” O guia ainda sugere escadas rolantes nos edifícios, mais passeios, melhor habitação. São as cidades desenhadas à medida do combate à solidão. E aqui também entram serviços de saúde mais bem preparados. “A minha ex-sogra teve um problema respiratório há uns meses, passou horas em observação e a médica disse à filha que iam enviá-la para um centro de recuperação intensivo, onde não teria visitas. A ansiedade de estar sozinha ia matá-la. E foi preciso assinar um termo de responsabilidade para não ir.”

Kalache já visitou vezes sem conta cidades portuguesas, de Lisboa a Viseu, ainda não conseguiu que o guia entre em nenhuma. Talvez o palco do RIR Humanorama não só abra as portas ao público jovem como desperte o poder político para a urgência de preparar as cidades.