A névoa contraditória

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
E no fim, como numa opereta que a meio não cativava já o coração das mulheres na plateia, nem o riso dos homens (e vice-versa), um espectáculo sem alturas artísticas, dos que fazem escorregar os intérpretes em lamaçais de sem-talento, o caso acabaria com legumes, frutas e ovos pelo ar, atirados para cima do prato, do palco, quero dizer.
Nesta violência doméstica só se conseguiu provar: uma testemunha viu um saco de compras de supermercado no ar, mas até o pobre saco de plástico surgiu indefinido na “névoa” contraditória (palavras da procuradora) entre a alegada vítima e as testemunhas, pois nem uma lista completa das mercearias chegou aos autos.
É um tipo de violência doméstica que tem aumentado nos tribunais: homens que se queixam de ser maltratados por mulheres, mas a verdade é que, sendo hoje maior o número de vítimas masculinas (já contei casos nesta coluna), é sempre minúsculo comparado com o de mulheres humilhadas por homens, espancadas por homens, roubadas por homens, assassinadas por homens, todos os meses em Portugal.
A mulher estava no banco dos réus, sentada ao lado do genro, também acusado no episódio do saco de compras, mas, alegara ele, só porque tentara proteger a sogra.
A juíza pediu à mulher para se levantar e dizer mais alguma coisa. Ela saltou para a frente como uma gata com dores.
– Eu queria explicar as coisas.
– Mas já explicou da outra vez. De novo, não tem nada para me dizer, pois não?
– De novo, quer dizer… o que eu quero dizer é que estas pessoas estão aqui com uma carrada de mentiras e eu sinto-me injustiçada com isto.
– A senhora já tinha explicado isso.
– Os factos não correspondem à realidade, pronto.
A realidade nunca a gente sabe bem o que é. Aliás, desde sempre que há filósofos que nos asseguram que nunca a conheceremos, pois o mundo externo, a própria experiência, é uma ilusão da alma, isto é, a única coisa que poderemos conhecer realmente é o nosso próprio eu solitário. O que é aborrecido quando o nosso eu não tem interesse nenhum, digo eu.
E também já eu divago na névoa do caso. Dada a palavra para alegações, a procuradora lembrou que o homem queixoso quase não conseguia assinalar uma data, nem sequer o dia em que a sua namorada terá pegado numa faca e dito que o ia matar. Ou a semana, estação do ano em que ela lhe gritou “corno” e “banana!” E por que razão estas palavras, com todo o seu potencial ofensivo, não tinham sequer entrado no auto inicial de acusação.
– Expressões que poderiam ficar mais marcadas, no fundo, acabam por vir aqui sem que tivessem sido assinaladas como ditas pela arguida contra o arguido. Relativamente às questões físicas, o ofendido acaba também por ser um pouco evasivo, que ela lhe bateu na cabeça, mas nada de muito concretizado, que no fundo se consiga perceber efectivamente, ou visualizar, numa acusação de violência doméstica, os episódios descritos.
Depois lembrou que ficou mais ou menos percebido o voo do saco das compras – uma testemunha disse que tinha “poucas coisas” e que viu pontapés e chapadas algures. Mas uma segunda testemunha – pela vítima chamada – relatou coisas diferentes do que a vítima explicara… (Isto é, deviam ter falado melhor antes de chegarem a tribunal).
De súbito, havia uma cadeira envolvida, mas devia ser a cadeira invisível, porque pessoas que lá estavam nunca viram cadeira nenhuma.
– Tudo isto está aqui envolvido numa névoa de depoimentos contraditórios, disse a procuradora.
Claro que, ao ouvir isto, o advogado só teve de pegar na nebulosa, nevoenta palavra, multiplicar por dez vezes a expressão “névoa” que fora superiormente escolhida pela douta procuradora e, com mais uma ou outra nota, pedir a absolvição da mulher.
Assim, no olvido de uma nuvem cinzenta, terminou esta história de amor.
Mas pensando agora: um saco de mercearias a voar, espalhando-se pelo passeio, amolgados os pacotes, rebentadas as frutas, rolando solitária uma lata para a sarjeta, que excelente imagem de uma separação.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)